sábado, 27 de fevereiro de 2021

DE JABUTICABAS E OUTRAS VICISSITUDES

É por causa do tempo; tudo culpa dele. Esse gentil fidalgo, não assusta: age em silenciosa quietude e nos cabe vigília se o queremos entender, ou não o perder. Nada se perde, afinal, descubro na altura de meio século de experiências que as coisas se transformam imperceptivelmente quando as estamos olhando, e, repentinamente, quando, por breves momentos, o olhar vaga por outros alvos. A transformação acontece, seguidamente; a percebemos, entretanto, de acordo com a distância que estamos dela.

Vi que algumas coisas mudaram na pequena fazenda do tio que visitei meio tortamente ontem. Tortamente porque eu vinha de outras paragens, de passagem, e não havia me preparado para aquela visita. A casa é a mesma; é o mesmo o matinho duro que acompanha a grama rasteira; isso não mudou. Não, e, ainda são os mesmos o pé de mangas docinhas do quintal da cozinha e os de jabuticabas. Agora, o pomar mudou de lugar e há outra cerca, apesar de que a de agora parece tão velha como a de antigamente. O curral sofreu cirurgia remodeladora completa e foi construído um galpão que parece muito velho, acho, desse não me lembro. Ele não esteve sempre ali?

Lembrança é coisa esquisita: a gente olha o que pode ver hoje, mas a imagem do passado se sobrepõe e daí não há como separar o real do lembrado. Me contento em saber que lembro de coisas que existiram um dia e mesmo que não existam mais, há coisas muito boas também que existem apenas hoje e que fazem desse dia que acontece um dia bom também. Por que não? Não é somente o passado que pode nos trazer doçuras e conforto. O presente de tão eternas coisas sempre diferentes pode trazer alegria; e ainda, de quebra, o doce sabor de ter vivido coisas muito especiais.

Não foi diferente o carinho do tio depois que ele se levantou de um cochilo. Tinha tido visitas por todo o final de semana e o cansaço bateu, claro, domingo de tarde, bem de tarde mesmo, já na penumbra das sombras compridas de noite célere. Ele foi me encontrar ao pé da jabuticabeira para onde corri assim que cheguei. E como antigamente, me misturei ao zumbido de besouros, pernilongos, borrachudos. Como sempre, levei picadas de aranha e ataques em massa de mosquitinhos Maruins.

Enquanto saboreava as deliciosas “pretinhas”, o pensamento pulava de canto a outro e eu esticava o olhar por paragens que não estavam mais ali. Em criança e já mocinha, vinha para os feriados e férias.

Não fui criança fácil: desgrenhada, mal cuidada, ignorante, dava um trabalhão danado à tia para trocar meus lençóis quase todas as manhãs; sim, há também lembranças ruins. Me lembro também de ajoelhar, a noite, sempre que acordava molhada e bater a testa no chão, implorando silenciosamente que aquilo parasse. O médico do colégio disse que eu não tinha doença física nenhuma. Além disso, sentia frio; podia fazer o calor que fosse, dormia com duas cobertas grossas de tear; acho que por isso tenho uma guardada para ser usada na casa da Serra, quando ela mudar de ser sonho para ser real. Mais tarde, já adulta, um Psicólogo sugeriu ser “carência afetiva”, o problema. Rio disso, mudo de jabuticabeira e pergunto pro tio como vai de saúde.

Enquanto ouvia que estava bem, escolhia as jabuticabas maiores, por entre a fartura delas grudadas nos troncos. Falei que tinha maravilhosas lembranças dali: as noites eram mágicas, no sentido literal, porque ele contava história de assombração e a criançada fixava os olhos na luz da lamparina do centro da mesa com medo da penumbra do resto da casa. Ir para o quarto era preciso coragem: passo a passo, com a mão em concha para evitar que lufada fantasmagórica de ar entrasse por uma das grandes janelas, apagasse a língua de fogo e nos deixasse aos caprichos das almas penadas. Mas ao redor da chama, ainda na mesa, havia sempre cada um a seu tempo, ou mingau de milho verde e pamonhas ou peneiras de pipoca, uma de doce outra de sal. Meu tio ria de mim; era minha vez de contar histórias.

Relembro que em meio à criançada comendo pipoca e ouvindo histórias de arrepios e sussurros as noites de minha infância não eram noites vazias. Seja pela comida saborosa da tia, de panelas fumegantes transbordando de comidinhas cheirosas, seja pela especial sensação de aconchego e proteção, aquele sítio foi um dos paraísos entre os quais tive o privilégio de crescer. Amei com todas as forças de meu tão tenro coração as pessoas que faziam parte daquele mundo: tia, tio, primas; que, lamentavelmente, hoje estão dispersos em razão de vicissitudes que acontecem a todos nós.

Naquele lugar eram sagrados os passeios à mina d’água, a travessia do Marmelada, as caminhadas poeirentas até a porteira. Eu não tinha muita habilidade com os animais, tinha medo deles ao contrário. Um dia, estávamos catando macaúbas pelos pastos; éramos quatro meninas. As vacas foram soltas do curral depois da ordenha e, acho que porque estávamos fazendo muita algazarra, uma delas veio bufando diretamente pra nós. Foi aquela cena de “salve-se quem puder!” voou menina pelo pasto todo e me sobrou o rumo da cerca do terreiro. De madeira, em ripas sobrepostas, a cerca deveria ter umas cinco tábuas que galguei usando apenas os pés. Como um trapezista, acho que minhas mãos estavam ocupadas com os cocos ou o vestido porque não lembro de usá-las para me segurar enquanto escalava as tábuas e pulava, segura, do outro lado. A vaca ficou lá decepcionada, sozinha, olhando pra mim. Logo depois, as meninas se reuniram, tremendo que nem varas verdes, embaixo do mesmo pé de manga da porta da cozinha. Lembranças que contei, rindo, pro tio nesse domingo entardecente.

Voltando pra cidade logo depois, cada passo que dei rumo à saída foi saboreado; não havia o que lamentar, descobri, eu estava ali, e meu passado junto; ainda me voltei umas duas vezes olhando a casa e o quintal de longe. O que havia de mais novo era um cimentado ao redor do pé de manga, mas tiveram o cuidado de deixar os balanços, agora um pouquinho mais modernos, pendurados nos galhos antigos. Ah! Esse está lá, murmurava baixinho enquanto me prometia fazer mudas de suas sementes quando as mangas estivessem maduras... já estava escuro quando abri a porteira do alto; essa diferente, amarrada com uma corda de modelo que não existia naquele tempo. Meu irmão encostou o carro para que as visitas passassem na frente.

Se aproximam as chuvas, mas ainda não chegaram de verdade, então, há poeira ainda. Foi gentileza dele já que o jipe iria levantar uma nuvem suja por cima do carro menor. A mesma estrada, penso, a mesma curva para a esquerda e daríamos na cidade... Engraçado como me lembro dos limites: à esquerda o caminho era conhecido, à direita, entretanto, não me atrevia a imaginar aonde ia dar; infinita incógnita; aterrorizante caminho estranho, e sobre o qual jamais perguntei coisa alguma.

Agora é que me bate essa reflexão: aonde esse caminho me levaria se tivesse seguido por ele? Bem, acabou-se o tempo de aventurar a descobrir caminhos ainda que esse que tomo agora parece menor, mais estreito do que me lembro. Antigamente o matagal se fechava no alto das passagens dando calafrios nas espinhas infantis.

Ah! Isso, no fundo, não importa. O que importa é que o caminho que escolher, de agora em diante, seja aquele que me levará aonde quero ir; fui pensando pela estrada afora enquanto ainda sentia na boca a doçura das jabuticabas. 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

DESPEDIDA DE SOLTEIRO

A festa do tipo “boca livre” com fartura de comida boa e cerveja gelada comemora quarenta anos de casamento dos pais de quatro jovens ali nascidos e criados conhecidos companheiros de fugas para o rio, de galinhadas na madrugada, de times de futebol e vôlei, passeios pelas redondeza.

O salão está apinhado de amigos, parentes, políticos, fazendeiros, celebridades, anônimos, todos parte da família. As janelas até o teto alinhadas às longas paredes escancaram a noite quente do alto janeiro. Mesas redondas estão decoradas com vasos de mini rosas naturais e botões coloridos. Toalhas de cetim adamascado seguem as cores das tiras largas penduradas do teto ao chão imitando tenda de circo.   

A banda toca músicas de todos os tipos e casais tentam acompanhar a sucessão de diferentes ritmos, numa mistura de risos, batidas de instrumentos e pisadas no chão encerado. Um som mais romântico leva para a pista maridos e esposas; a balada traz dançarinos que começam em duplas e terminam em bandos desarticulados, e felizes. Qualquer música mais conhecida faz com que a pista se transforme num pandemônio de pessoas se divertindo; juntos, dançam sem constrangimento ou coreografias avós, pais, filhos, primos. Sempre que uma música termina, as palmas fazem eco com gritos de "Mais! Mais!".

Vez ou outra, aparecem brincadeiras como as danças do chapéu e da vassoura. De feltro marrom escuro com fitas em azul e vermelho terminando em bolas douradas tilintantes, o chapéu passa de cabeça em cabeça. O homem que o recebe cede a dama com quem dança; alguns fazem de conta que estão zangados e todos saem rindo e dançando.

Na dança da vassoura, as mulheres escolhem o par; proibido recusar convite. Dessa vez, até as mais recatadas puxam para o salão jovens e cavalheiros, casados ou não, de preferência, um "pé de valsa".

Comida boa, salão lindamente decorado, música inebriante, bebida com fartura e o calor da noite não deixam espaço para que ninguém fique de fora da festa.

Recostado a uma das pilastras redondas, um rapaz moreno de olhos verdes encravados no rosto de ossos grandes e salientes observa o burburinho segurando displicentemente uma tulipa alta pelo meio de cerveja gelada. Veste camisa polo marrom de riscas horizontais, o que quase lhe confere um ar ameaçador. Parece tomar fôlego das brincadeiras quando dançou sem parar; e repensa detalhes. Em especial, o da moça que o convidou: esguia, rosto com suaves marcas, encantadoras, de acne, longos cabelos negros cheirando a flores, vestido azul com pequenas estampas geométricas indecifráveis à meia-luz. Os braços roliços e fortes seguraram com firmeza o rapaz nos muitos passos e o casal pareceu outro enfeite da festa, tanto, que os demais dançarinos deram espaço e evitaram incomodá-los com vassouras ou chapéus por várias danças.

O rapaz se lembra que se separou dessa dama apenas no intervalo pedido pela banda; e do olhar direto e firme que recebeu em silencio na despedida. Sorri para si: “tão bom isso tudo!” Contente, dá voltas pelo salão lotado. Cadeiras sendo arrastadas, murmúrios de cansaço, pessoas se abanando, risos: o jovem abraça e beija mulheres ou crianças, faz elogios, dá tapinhas nas costas dos homens. Circula desenvolto: está em seu lugar, aqueles são os seus amigos e aquele é o mundo ao qual pertence.

Anunciam o discurso do marido agora casado de novo. Emocionado, o homem sobe ao palco e já embalado pela cerveja, fala, ri e chora. A cada frase, gritos simulam vaias para disfarçar a emoção. Ele chama a esposa, se ajoelha, pede-lhe perdão e jura amor eterno. Com olhos brilhantes, ela o acolhe num abraço roliço e enrugado parecendo conter toda a paz do mundo; todo o abrigo do mundo.

A emoção quase vira lágrimas, então, um dos filhos passa a apresentar os nomes dos presentes e dos ausentes: todos que fazem parte da história de amor que agora se renova. Um ou outro convidado também parabeniza os novamente recém-casados até que alguém chama para o bolo; a banda volta ao palco e a festa recomeça.

O rapaz moreno é envolvido por matronas e moçoilas que o conhecem como bom dançarino. Enquanto a música toca, mal consegue surrupiar alguns copos de cerveja. Por duas dessas vezes, vislumbrou a moça de azul dançando com um rapaz bem vestido parecendo muito à vontade. Mais tarde, no caminho para o banheiro, ao sentir o perfume de flores, ouve uma voz: "você é casado?". A resposta e firme, rápida: "não"; e a voz desaparece.

Distraído pela alegria, pelas brincadeiras e flertes, o jovem fica na festa até o ultimo acorde. Sai sozinho dirigindo o carro por ruas vazias. Se sente feliz tanto pela festa boa quanto pelo final de noite silencioso.  “Ah, vou dormir até o meio dia amanhã; tão bom estar de folga!” Lembra-se que tinha telefonado para o pai dizendo que viria e esse disse que ficasse a vontade: ia pescar. Perguntou da família “Não, vou sozinho.”

Sim, não falou pra ninguém em casa sobre a festa: queria se divertir, fugir da rotina. Estava cansado de problemas, queria ficar livre naquele fim-de-semana para fazer o que bem entendesse.

Rastros de luz do amanhecer pontuam o céu quando o rapaz para o carro em frente à casa do pai. Os faróis fazem contraste com o resto da escuridão: a penumbra não lhe permite ver o vulto que se aproxima; sente perfume de flores. Ainda no carro, recebe um beijo no rosto e outro na boca. O vulto se esgueira ate pequena varanda; espera em silêncio que o rapaz trêmulo estacione o carro e encoste o portão.

A porta da casa é aberta por dois corpos de lábios colados com pausas apenas para respirar; do lado de dentro, um pé a arremete com estrondo ao portal.

O sexo, o primeiro, acontece entre a mesinha de centro e o sofá duro e quente em meio ao lusco-fusco da manhã. Não há tempo para pausa: os lábios continuam percorrendo corpos nus e suados entre gemidos e gritos. A segunda vez acontece na cama mais próxima. Num frenesi, tudo se repete muitas vezes até que adormecem exaustos.

“Que calor!’ Pensa o jovem acordando. “Será que é meio dia já?”. Se lembra imediatamente da noite anterior: vê que está sozinho na cama estreita. Raios de sol atravessam fenda discreta da janela basculante entreaberta. Recosta-se aos travesseiros suspirando satisfeito ao lembrar-se das últimas horas, em detalhes.

Talvez tenha cochilado mais um pouco porque num dado momento ouve o pai chamando da porta: "Filho! Acorda! Seu carro ficou a noite toda com os faróis ligados e talvez dê problema para ligar. E olha! Não demore! São quase seis horas da tarde e como você tem que ir embora hoje, vai ter que viajar à noite, coisa que não gosto”.

O rapaz se surpreende e isso o desperta de vez. Toma banho, enfias as roupas de qualquer jeito na mala pequena, daquelas para coisas de academia de ginástica e só ao colocar a escova de dentes na abertura lateral é que vê o bilhete.

O coração dispara: "a mulher da minha vida me deixou o telefone!". Agarra o papel minúsculo, já imaginando como faria para se separar da mulher com quem vive e começar nova vida ao lado daquela deusa. Para aproveitar mais a alegria da boa expectativa ainda abraça o pai e toma café; coloca a mala no banco de trás do carro. Com o bilhete numa das mãos, apaga os faróis e dá partida ao motor: a reação parece uma pessoa com raiva; ele entressorri.  Desliga, pisa e solta o acelerador, gira de novo a chave: o motor ronca forte.

Enquanto deixa o carro recarregar a bateria, tranca a porta e, devagar, como a espreitar do buraco de fechadura, desdobra o papel. Não compreende imediatamente. Dobra de volta, devagar, o bilhete, se recosta no banco, respira fundo: não acredita nas palavras escritas. Se esforça para ler de novo e só então assimila a mensagem: "Obrigada pela minha despedida de solteira!".

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 VESTIDA DE DOMINGO

A oração hoje foi mais longa e a terminei enquanto abria parte das janelas. Hoje não abri todas nem liguei a música: dia de recolhimento e silêncio.  O universo conspira: o mundo se cala, não porque está chovendo, ao contrário, o dia é de muita luz. Por que é domingo? Pode ser.

Separo o que vestir. Vestido leve, clarinho, com flores e renda. Perfume. E chinelos que não haverá visitas. Desço as escadas tentando não fazer barulho, clep, clep, em vão, e corro abrir a porta pro cachorro sair; da minha caçula que pediu ontem pra cuidar, custa nada.

Passo os olhos pelas plantas: vou trocar o vaso daquele antúrio que já passou de hora. Cuido do cachorro, das plantas, tomo café e remédios. O vento está muito forte, silva pelas frestas, balança as pedrinhas do jardim de inverno. Estranho! Vai levar a chuva embora... ou trazer?

Checo a comida do dia, ainda há frutas, boto água no filtro de barro. Então, aboletada na cadeirona do canto predileto da casa, me ponho a cismar: tem um passarinho cantando longe, mas fora esse, e o barulho do vento, escuto mais nada. Nem a música liguei. Tao bom o silêncio!

 TERÇA-FEIRA DE CARNAVAL

A terça-feira de Carnaval amanheceu silenciosa: parece todos os gritos, passos de dança, risos, encontros e desencontros aconteceram até a véspera. O mundo, aqui pertinho, e além, parece envolto em neblina e quietude. Portas e janelas ainda cerradas, as ruas vazias, os pássaros e cães quietos como se esperando o rufar de um tambor para os despertar de sonho. Sonho ou pesadelo? Reflito, também quieta, e o coração aos saltos, que o sol ainda vai espantar tantas sombras.

À mesa do café, aos cochichos, Déda pergunta: “alguém já se levantou?” Ela tinha chegado há pouco do mercado com sacola de frutas e um saco de pão fresco, o melhor da cidade. Respondo: “ainda não, ninguém além de mim”. Ela: “gracinha, ainda estão dormindo”. Repito o “sim, gracinha, todas ainda dormindo”.

TARDES

Falo muito de manhãs iluminadas, de dias em começos. Bom que só, cheia de expectativas pelos milagres que viverei. Gosto muito também dos afãs das “voltas de meio-dia” quando não paro pra ver o que está bom ou nem tanto. Vou vivendo o que tenho que viver e o dia vai acontecendo assim, eu, de roldão, quase empurrada.

Quem vê pensa que não, mas gosto muito também de tardes. Os dias desmaiando, expectativas descansando, doçuras de coisas feitas com tudo o que tinha que ser feito. Nessa hora, quando as horas não precisam mais ser vigiadas, gosto de ir fechando janelas uma aqui outra ali, trancando portas, botando o lixo na rua; e cuido de novo daquela mudinha de flor.

Nas tardes, vou guardando a louça usada, a roupa enxuta, os restos de comida; e esperanças. A vez de banho, vestido largão, pês no chão limpinho... estendo a colcha na cama, ajeito os travesseiros. Espreito pela veneziana entreaberta, às escondidas, o sol fazer a curva do céu sumindo por detrás das mangueiras gigantes. “Esse ano não foi de tanta fartura como no ano passado”...mas “tem ‘portância não, vem outro ano aí que vai ser bom”.

Fecho devagarinho a persiana, os sons amenizam, me volto para a penumbra de minha ilha agora fora do mundo. “Ah, obrigada, Senhor, pelo dia bom”, resmungo pras paredes caladas enquanto faço o sinal da cruz. 

 SOU TÃO FELIZ!!!

Essa ideia me ocorreu enquanto atravessava a casa, vindo da varanda. Estava regando as plantas do pátio da frente, tardiamente porque acordei tarde, desci tarde, abri a porta da sala tarde. Me surpreendi quando liguei o tablet: 11:40. Uai, tarde mesmo, mas na hora que deveria ser; e foi.

Reguei as plantas do pátio, do jardim de inverno, da garagem dos fundos. Algumas estão belíssimas, outras ainda indecisas, mas há já flores pipocando para todos os lados. Acho que por isso entrei na casa depois dessa tarefa e achei bom demais o ambiente fresco que me acolheu. Parei, olhei pras janelas grandes, as paredes altas e claras, a luz, o perfume suave de madeira.

Comecei a rodopiar contente enquanto soltava os cabelos. Vi que não havia ligado música ainda, companhia de todo dia. Percebi o silêncio: não há carros na rua? Nem buzinas? Nem cachorros latindo? Os vizinhos ainda estão dormindo? Tirei os chinelos, pisei mansamente atravessando corredores, apenas sentindo coisas boas demais! Num domingo espetacular de primavera, o silêncio. E eu, eu e minha história, eu e minhas cicatrizes, juntas para sempre. Nunca imaginei que me encontraria num momento como esse. Sou tão feliz!

 SOMENTE EM TARDES DE VERÃO

Amanheci tarde hoje, fui dormir tarde, ou cedo se digo que era 01:47 da madrugada  quando desliguei o computador e fui tomar banho. E dormi. E sonhei. Daqueles sonhos bagunçados sem pê nem cabeça. A sensação que fiquei no coração foi saudade. Nem me perguntei do que, sonho assim bagunçado.

Acordei tarde, ainda de camisola corri acudir o cachorro aproveitei pra acudir umas plantinhas meio perrengues, tirei parte do lixo. Uma pessoa só e tanto lixo e olha que reciclo, faço compostagem, mas mesmo assim tem lixo, fico contrariada que ainda não posso aproveitar cada resto. Tomei café e remédios, voltei ao meu quarto pra me arrumar pro dia.

Mesmo assim o dia estava tímido tanto que desci deixando tudo fechado, depois de tomar outro banho, esse mais caprichado. Vesti um vestido comportado, com flores, forro e mangas compridas que a chuva parecia ter vindo pra ficar. Liguei minha playlist no máximo da caixinha de som e desci preparada para completar as tarefas já quase meidia.

Ia cozinhar que tinha visitas, uma confirmada, outra desejada. A chuva despencou aconchegante, botei o cachorro pra dentro que ficou me cercando pelos caminhos da cozinha aproveitei pra limpar a geladeira enquanto ia fazendo a lista de compras prum futuro distante que tem comida em penca pela casa.

Almoço pronto, a visita confirmada marcou presença, fiquei observando o rosto lindo muito sério na outra ponta da mesa. Sob os acordes de Julio Iglesias, Tim Maia, Frank Sinatra, Barbara e tantos outros, comemos, conversamos, rimos e ela se foi de novo mascarada enquanto a outra visita despencava mensagens no WhatsApp que tinha ficado presa no trânsito da vida, não viria, falei que não precisava pedir desculpas que o almoço fica pronto pra amanhã, tudo bem nem tinha prometido mesmo coisa de mãe doida.

Cozinhar dá nisso de pias cheias de talheres, pratos, panelas etc. que levei quase uma hora para guardar comida, lavar... Só depois que subi de volta me lembrei das janelas fechadas. Parti abrir tudo que a chuva já tinha desaparecido talvez em viagem pro Saara que o céu espetacularmente iluminado fazendo jus ao verão se exibia entre nuvens de algodão e o vestido já parecia um pouquinho quente demais.

Mesmo assim, estiquei as pernas sobre travesseiro macio em frente ao computador e me dispus a descansar, finalmente. Foi aí que a playlist selecionou a Voa Liberdade do Jessé. Depois de ouvir pela segunda vez foi que descobri que eu não estava cantando a letra da música mas a letra de uma oração.

Isso assim por ser, talvez, belíssima tarde de verão?


SILÊNCIO 

Ha uns dias, não sei quantos, não os contei, que estou muda. Fora uma palavra ou outra para dois ou três endereços do WhatsApp,  e parei. Dia desses, me peguei rindo quando falei meu nome, gostei, falei de novo, mais alto, mais alto, e cai na risada. Parei de rir porque fiquei com medo de alguém ouvir. Ah, como poderia?

Os quartos brancos, os corredores infinitos, vago por eles descalça. Sempre pela manhã abro janelas e portas, por minutos, e as fecho de novo; o ar fresco entra, o sol, quando há, ilumina frestas no piso ate que a penumbra invade de novo; e eu, corajosa por um instante, avanço rumo ao pátio. Finjo que ali tem algo pra cuidar, mas, assim que escancaro a porta, ah, não carece ser hoje...

Da cozinha, lavo e guardo uma xícara, um prato, um garfo, um copo. O que vou comer hoje? O que tiver mais a mão, mais fácil.

De  música, me esqueci, quase, vai que me lembram coisas. De sons, tão longe, indistintos; de perto, dois cachorros de vizinhos: um nos fundos outro na frente, tão alto latem a qualquer hora do dia ou da noite rasgando a quietude do meu coração. 

 SEXTA-FEIRA

Essa sexta-feira amanheceu de sol brabo! E fez calor desde a madrugada, começou ali pelas 4 da manhã, tanto que o edredom ficou a um canto, inútil, diferente das últimas noites.

A casa acordou já animada para arrumações, limpezas, comidas, como se a energia solar tivesse se misturado à urgência das tarefas e compromissos. Pela janela do meu quarto, mergulho no mar azul parecendo me deslocar silenciosamente rumo ao infinito. E nesse universo misterioso os pensamentos pululam junto à claridade da manhã: sobre o que penso hoje mais amiúde? Ah, nem demoro: penso em meus amores. Num átimo de segundo, passam todos eles na minha frente, talvez, tentando, inebriar o espetáculo iluminado. O que concluo sob o amor, o que vivi dele e por ele? Sempre, sei, escolhi primeiro por amor mesmo quando eu nem sabia o que era. Hoje sei menos ainda disso, de amor, apesar de ter entendido que ele não existe em razão de quem amo, mas em razão de quem sou.

Tão libertador aprender isso; tão libertador o esplêndido dia de sexta-feira! E, quantas possibilidades prometem as horas seguintes?  Olho para o céu de anil coalhado de nuvens carneirinho: nada pode dar errado num dia como esse, nada mesmo. carpe diem!

SEGUNDA-FEIRA COM CHUVA

Segunda-feira. Acordo com o barulho do escolar das 6. Pulo da cama, abro uma parte da persiana pra conferir. É mesmo o escolar das 6. Vejo que o asfalto tem marcas de chuva, uai, nem vi. Dormi bem. Vem subindo uma sombrinha verde pelo beco, de longe, e parece tem um cachorro. Observo, vendo o mundo acordar. Uma mulher de vestido longo vem driblando entre segurar o vestido, a coleira e a sombrinha. Ao chegar à rua, ela rodopia, por quê? Abro um riso calado. Passa mais um escolar, esse, menor, mas o barulho é o mesmo.

A chuva aperta, a bica da casa vizinha deságua barulhenta no meio do asfalto. Ah, as goteiras daqui de casa vão aparecer hoje, tá, mas não vou precisar regar as plantas...plantei sementes daqui pralí ontem; tempo de verão é bom pra fazer brotar sementes. Acho.

Vou ao banheiro, mas volto pra cama; tão gostoso meu travesseiro! Checo o celular, atualizo as mensagens, jogo uma partida de freecell. Vou dormir de novo? Dou uma vasculhada pelo mundo pra checar onde estão meus tesouros. Pelas últimas notícias estão todos bem. Ah, o celular diz 19 graus ensolarado... outra risadinha. Ah, a bateria reclamou; boto pra carregar.

Me levanto, me visto, penteio os cabelos, amarro fita; ajeito brincos e vestido. Desço as escadas em meio à luz branda do dia indeciso. A chuva aumenta, entra pelas janelas do jardim de inverno, as fecho. Troveja. Na penumbra da cozinha silenciosa, boto a chaleira no fogão. Vou fazer café. 

SEDUÇÃO

Flores de um tipo que nunca vi: pétalas como folhas, redondas, verdes, se espalhando entre as hastes novas: nasceram às pencas num vaso delicadamente pintado a mão. Muitas hastes, as pétalas/folhas se sobrepondo. Chamei você para mostrar que falava com alguém não respondeu.

Toquei as pétalas e, quão rápido se transformaram em triângulos rosáceos apontando pro céu! Tocaram a companhia, entregaram as chaves; disse que ia passá-las pra você. Caminhei sobre o piso acinzentado e toquei seu braço. Você se virou sem me ver, balancei as chaves. Quando estendeu a sua, minha mão lhe tocou a palma; apenas por um segundo.

Sem identificar muito bem o que senti, fui me sentar numa poltrona de veludo verde sob a luz do teto de vidro. “Flores estranhas!”. As pessoas continuaram conversando. Não vi quando você veio. Tocou levemente uma ponta de meus cabelos, sentou-se no braço da poltrona. Eu podia sentir o calor passando pela camisa branca, o cheiro; podia ouvir o coração. O seu. E o meu.

“Flores estranhas...” 

 SACUDINDO A POEIRA

Hoje acordei pensando no quanto é difícil se recuperar de uma porretada. Achava ser fácil quando observava o esforço de alguém fazendo isso, buscando uma saída. De longe não se vê lágrimas ou gotas de suor, nos outros. Então, levei uma porretada, melhor algumas. Na primeira, me ergui rapidamente, sacudi a areia e segui o sol. Na segunda, já sentia mais medo e tinha mais dúvidas, custei a colocar os pés de volta na estrada, mas um dia de chuva redentora me salvou. Na terceira, me desintegrei em minúsculos pontos pairando sobre o mundo: “o que mesmo estou fazendo aqui?” Na quarta paulada, ah, bem, não vou conta-las mais, o sopro impiedoso de algum grande amigo espalhou as partículas através do universo: deixei de existir. O milagre foi que uma ou duas almas iluminadas insistiram em juntar os pequenos pontos tremulantes. E hoje acordo num quarto limpo, completo, numa cama macia, quentinha nessa manhã de chuva indecisa. Posso receber um beijo a qualquer momento, uma mensagem de bom dia, tomar um café em boa companhia. Bem, se acordei pensando, ainda existo.

SÁBADO

Cinco e quinze da manhã: silêncio, canto de passarinho apressado, rumores distantes de um transito que começa aos poucos. Espreito o clarear através dos vidros da janela, me aconchego ao cobertor: está frio, e não tenho pressa. Há um dia inteiro para fazer tudo que preciso. Devaneio, penso no que é mais urgente, penso na minha mãe, penso em quem vai chegar, em quem vai partir. Preciso podar as roseiras... Mamãe, tenho foto dela com uma rosa, única, Red, plantada em lata de tinta, Mamãe, escorada numa pilastra, usa um vestido de renda azul claro que ela mesma costurou. Ela costurava meus vestidos de menina-moça, daqueles de xadrez com sinhaninhas, camisolas de tergal com bolinhas coloridas e a calcinha franzida combinando...acredita não? Eu usava isso para atravessar a cidade, a Pracinha, a Praça da Prefeitura e chegar ao Cinema, perto da Matriz. E desfilava, contente...Ah, peraí: “que essa paz de cedinho impere no coração dos homens de todos os lugares, que as palavras ditas tenham sempre doçura”: minha oração pra começar o dia, é que meu estômago começou a roncar. 

 PRECISO DIZER QUE TE AMO

Ah, bom demais você aqui. Chega mais! Limpei a casa, preparei o almoço: do jeito que sei você pode comer. Sente-se à mesa, no lugar que escolher: acabei de trocar a toalha. Só um minuto, só vou passar o peixe na frigideira. Veja o pratinho com a pimenta fresca, boa pra dar ideia de satisfação, só que tem que ser sem conservantes e sem sementes, só a polpa... Tem um pratinho com cebolinha picada bem pequena, a salsa, adstringente para os rins, o galho de manjericão é para perfumar, mas você pode comê-lo também. A salada é simples, mas tá fresquinha: tomate e alface, preparados com cuidado, bem lavados, picados em pedaços bem pequenos. A alface está crocante, deliciosa. Batata, cenoura, sinto muito, sei que você gosta temperadas só com azeite e orégano, mas sabe, só completei a que fiz de manhã, então, tem maionese, mas vez ou outra não faz mal. O feijão e o arroz, preparados agorinha, têm bastante alho, agora, sal é só miragem, mas deixei o saleiro à mão, caso queira inteirar. Também está na mesa, a garrafa de azeite, mas nem foi aberta, faz esse favor? Então, como estão as coisas pra você? Conta aí. Ah, o suco! Lembra como você gostava de suco quando criança? Não passava sem. Bom, você não toma mais liquido às refeições, mas tá aqui um suco bem gostoso: de polpa de maracujá, tem açúcar, mas é pouca, melhor que adoçante. Bom apetite!

PERDOE-ME

Perdoe-me porque você me traiu. Você, logo você com quem dividi comida e abrigo, e sonhos, pra quem contei segredos. E ouvi segredos, perdão porque os guardei no fundo do coração, sagrados que são os seus para mim; e não os revelarei nem mesmo sob tortura.

Perdão porque me distrai de nós dois e deixei que vozes de maldade chegassem aos seus ouvidos; e porque não lhe expliquei meus motivos. Devia, devia ter quebrado a barreira de seu castelo e invadido para lhe explicar por que. Perdão porque me calei quando, surpresa, vi que seu olhar não me via. Eu devia ter me descabelado, corrido nua pela rua, chamado a polícia, sei lá, devia. Ter feito você me ouvir, ter aberto uma estrada com meu desespero para que você soubesse. Perdão por ter me refugiado na minha dor, e chorado em bicas em noites estreladas, por ter visto você me odiar aos pouquinhos, e eu, quieta, com medo de piorar tudo. Perdão por não ter lhe dito que entenderia qualquer coisa que quisesse me dizer, qualquer verdade sangrenta seria mais doce que o ódio que você vi  nos seus olhos da última vez; e permitir que você visse em mim algo que não era eu. Eu devia ter gritado e chorado mais ainda.

Perdoe-me por ter deixado você me trair.

PRIMEIRO DIA DE OUTONO

O dia, menor, friorento, me faz lembrar blusas quentinhas guardadas em enxaguantes cheirosos contra mofo. Acabou o Verão. Huumm, bom demais, mais uma estação se vai. Virá outra(o), rememoro um complexo de Poliana. Tá tudo tão bem, penso enquanto subo e desço a calçada perto da Faculdade. Tá tudo bem... mesmo? Ah, claro tudo pode ficar bem, por que não? Ah, credo, mas tudo pode dar tão errado também; ah, pode sim. Poder, pode, mas tenho essa mania de me esconder a portas fechadas esperando o coração se acalmar depois de paulada. Fico quietinha, você pode saber disso, não me importo, sou assim, não consigo matar moscas... nem elefantes. Fico quietinha quando qualquer ato adiante, ou palavra errante, pode piorar o que já está ruim. Tem hora que dá vontade de fugir. Para onde? Essa é a questão: meu coração despedaçado vai, junto, pra qualquer lugar que eu vá. Daí o quarto escuro ajuda a evitar que atitudes infantis coloquem fogo na lenha.

Nada que um almoço, primeiro depois de abismo, não alimente forças sobrenaturais: amizade, carinho, belezas; comida, pavê de abacaxi. Então, tá tudo bem, digo prum coração verdadeiro que qualquer tempestade, ou má intenção, não vá quebrar, mas que, fortalecido pelos dias de bonança vai seguir o riso que nasce entre aconchego de cobertores, ou de abraços.

Tá tudo bem, repito pra me convencer, e ergo o rosto para o tímido sol da primeira manhã de Outono, afinal, se ontem foi Verão, amanhã será Inverno: movimentos naturais que acompanho com serenidade, afinal, o que importa, se estou onde estou é, definitivamente, onde devo estar. A paisagem ao meu redor pintarei com as cores que meus olhos escolherem, amigos que são, do meu coração.

Tá, daí, ao passar esses devaneios para o Word, no computador de casa, percebo que, mesmo que eu escolha as cores do Outono, laranja, dourado, vermelho, vou ver tudo no mais profundo azul: outra pane do monitor. Mas insisto, não é tão ruim assim, é o primeiro dia de Outono, afinal, está tudo, muito, prometo, está tudo muito bem. É o que ando dizendo, distraída que sou! 

 PARA HOJE

Flores. Música. Paixão. Sol. Passos de dança. Perfumes. Risos. Chegadas... Champanhe? Porque amanheceu um dia lindo demais!!! Quero anjos, me mande um? Quero magia; acreditar que o que meu coração quer é verdadeiro, puro, natural. Quero sinos anunciando: a primavera começa hoje. Quero acreditar, com força, que posso, ser, querer, ir. Acreditar que posso viver a vida do jeito que meu coração acredita.

Por que hoje amanheceu um dia Ímpar, como esse não haverá outro. E como eu não existirá outra. Porque o dia amanheceu, e lindo, quero que seja mágico, só isso...

Ah, bem, quero dizer, uma cachacinha com torresmo também não faz mal, né?

 O QUE (DES)APRENDI COM A IDADE

Quase todos os dias recebo um texto de alguém se dizendo velho e o que aprendeu com a idade. Alguns são bem originais, alguns têm até assinaturas de celebridades, outros são apenas repetição. De todas essas lições, algumas sei, são verdades, outras, pura invenção.

Tanto estardalhaço porque se é velho... O que mais se repete é: aprendi a me amar. Uai, gosto mais de mim hoje não porque sou velha. Gosto mais porque cansei de me trocar para ser o que os outros queriam, mas se tivesse sido mais esperta, teria aprendido isso mesmo quando moça. Essa coisa de aprender hoje porque estou velha não funciona pra mim, ao contrario, descubro, todo dia, algo que devo desaprender.

Desaprendi a amar incondicionalmente, hoje quero um pouco de amor para mim. Desaprendi a rir a bandeiras despregadas, o que me custou um noivado quando jovem. Desaprendi a ver a aparência: há cobras de todos os formatos escondidas sob máscaras maravilhosas. Desaprendi tudo que sabia de Geografia, o mundo tem mudado mais rápido do que consigo acompanhar!

Desaprendi coisas que meus pais e avós me ensinaram, como acender o fogo com lenha molhada, porque isso não é mais útil no tempo de agora. Sobretudo, desaprendi a falar. Meus sentimentos mais dolorosos não podem ser expressos em palavras conhecidas. Minhas maiores alegrias pareceriam frescura, ou loucura, de mulher velha, então as guardo bem protegidas. E desaprendi de barulhos, ao contrário, me permito agora o silêncio. Isso, aprendi.

NO QUE ESTOU PENSANDO

Pensar, nesses tempos meus, é o que mais faço. De todas as ações típicas de seres viventes, hoje em dia, penso mais que nunca. E isso me leva a concluir que pensei muito pouco em outros tempos mesmo porque nem tempo tinha pra isso. Tinha que fazer, o que quer que seja, pra ontem, antes que a casa caísse, digamos assim.

Depois de tanto fazer, hoje penso como desfazer o que fiz sem pensar. Algumas coisas tive a chance de fazer de novo? Uai, nada, Sô, faço nada de novo não. O que faço hoje em dia, poucas coisas,  tento pensar antes de fazer. De passado, as coisas estão onde e como deveriam estar.

Assim, hoje em dia o que mais faço é pensar, por isso, descobri que esse meu tempo, é tempo mais de aprender que ensinar, o contrário do que um dia acreditei.

 IRRESISTÍVEL

Manhã de sol a pino que parece o mundo virou de vidro. A luz empurra para algum canto remoto todas as sombras, impossível não pensar em sair pra rua, levantar os braços em bandeira, virar o rosto pro céu e rodopiar como pião; e deixar que um abraço quente envolva o corpo todo. E respirar profundamente, devagar, o ar doce trazido pelo vento suave. Irresistível manhã, irresistível, a vida.

 I’LL FOUND YOU IN THE MORNING “SON”

Estava marcada para as 10 noras, aconteceu às 9 e 23: a casa se esvaziou, e, por um momento, até desliguei a música. Me sentei, tomei um resto de café frio. A fruteira está cheia de bananas maduras, ainda tem iogurte e suco na geladeira. Brinquei por último: “vou deixar a cachorra sem comida até você voltar”. Você concordou, a voz cristalina, como um raio de luz que você mostrou todos os dias, um dia. Sentada na cozinha silenciosa, deixei meu coração sentir o que quisesse. Cansei de racionalizar... que sinta o que sente. Não vou chorar, não precisa, tudo foi dito, tudo foi feito quando teve que ser. Fomos inteiros quando éramos outros de nós, fomos tudo um para o outro quando éramos, o que não somos agora. Não sentirei saudade, você não partiu de mim... E o verei nas manhãs ensolaradas, e nos dias de chuva, e “quando olhar para a lua em noites novas”. Pelo resto da minha vida.

 MEU ULTIMO AMOR ETERNO

Nem era porque eu acreditei; nem era porque estava esperando. Nem era porque tudo convergia, as estrelas, a lua, o inverno, a primavera, nem era isso. Acho que porque foi, talvez, mais, o vento. Aquele que sussurrou antes que eu pudesse ouvir. Aquele sussurro que já habitava as colinas despidas, eternas, aquele vento que ora balançava, ora açoitava as macaúbas solitárias ou espalhava, suavemente, as sedas das paineiras gigantescas. O vento, sim, mas pode ser também a areia fina, imaculada de caminhos sem passos, apenas traços de passado lacrado em veios de pedra, caminho incerto, pedras imóveis se gastando apenas com gotas e chuvas, não mais tempestades, agora, mais, silêncios.

Ou, talvez, o capim rasteiro se segurando a raízes mortas morro acima nos trilhos de ribanceiras; agarrado a barrancos, o capim teimoso, tanto, esse, de sussurros, ou uivos, do por do sol de todas as tardes se desfalecendo, de todas as manhas tímidas, frias, mudas. Acho que o capim, não? Então, talvez o negrume da grota funda, inexpugnável de onde sempre ouvi aquele rouco chamado.

De algum lugar, ou por causa de alguém, ou alguma coisa, aquela ternura irrompeu, não como a cachoeira, mas trazida, levemente, pelo vento da colina mais singela. Nem me assustei, não reconheci, não sabia, nem acreditava, muito menos esperava. Assim, só por isso, misturado às pedras, aos sussurros da brisa mais suave, ao esvoaçar de raízes e sementes, talvez por isso, foi tanto. Grande demais; para saber, tive que pegar carona nos pássaros habitantes das copas milenares e olhar de longe. E só, no alto, distante, entendi seus contornos, sua forma e seu jeito de ser. E era. Só que voei alto e longe demais, e não consegui mais voltar.

 

 MEMÓRIAS ESQUECIDAS

Uma das lições que recebi por último foi que podemos mudar nossos sonhos. Teve um que morou no meu coração por anos: morar numa casinha sem varanda com a porta dando direto pra chão de terra. Um trilho que me levaria a um jardim/horta bem pertinho. Tão pertinho que eu o admiraria todas as manhãs quando abrisse a primeira janela. Daí o dia se estenderia infinitamente. Dessa janela, também veria o céu, as estrelas de noite, o horizonte longe. Amanhecendo, eu sairia pro “tempo” e andaria sobre chão fresco de orvalho ouvindo todo tipo de passarinho.

Esse sonho se transformou nisso: sonho. Mesmo que eu tenha tentado realizá-lo um dia, desisti dele. Decisões equivocadas, sei lá, desisti.

O bom é que sonhar se pode sempre. Arranjei outro sonho: morar numa casa gostosa com todo conforto moderno, e ter um jardim/horta bem pertinho, num terraço que abro todas as manhãs de onde vejo o céu e um monte de telhados, e dou bom dia aos pardais nos fios de eletricidade. Ontem ouvi um bem-te-vi; o vizinho, Sr. Nicanor, disse que tem uma coruja morando no muro dele.

Não tenho sonhos assim, esse eu o vivo. E tenho muitas outras coisas pras quais eu nem ligava antes: carro na garagem, casão na capital, telefone celular que faz tantas coisas que nem sei, Internet, blogs, Word, viagens, passeios em shoppings. Agora quando me canso, me recolho à quietude desse canto que nunca saiu do lugar. Eu, sim, rodei mundo, fugi, quis me transformar em poeira; não consegui, não se consegue tudo que se quer, acho. Mesmo assim, me recolho contente a esse sonho que não sonhei, ganhei sem muito querer, e por fim, escolhi. Não vivo o sonho que sonhei, vivo um que não sonhei, mesmo assim, o sonho que vivo agora o vivo de coração leve e faceiro.

MANHÃS DE SEGUNDA-FEIRA

É inevitável a alegria encher meu peito quando o pequeno carro pega a saída Norte da cidade nessas manhãs milagrosas. Depois de passar a ponte do Torto, o primeiro viaduto, e imbicar pelas colinas seguintes, a visão se amplia a ponto de juntar o verde vibrante, permissão do outono ainda com chuvas, ao azul do céu radiante de luz. Aqui e ali, respingos de nuvem de flocos; enfeites ao que já é lindo.

Nessas manhãs de muito sol a coisa é ainda mais séria: dá vontade de chorar ver tudo iluminado em muitos matizes como cristais esculpidos. Vejo o movimento do mundo nas serpentes metálicas de carros tentando avançar pelo trânsito. Tenho pena, mas estou no contra-fluxo e posso me entregar à paisagem. A sensação é de que fiz o dever de casa da melhor forma que pude; e agora posso ir para o recreio.

É uma segunda-feira, um dos dias que faço essa pequena viagem e subo e desço colinas e fico mais feliz ainda. É que dá um gosto danado de bom ver que o caminho para trás estará sempre à disposição para minha volta, mas também sentir a liberdade de acelerar adiante e alcançar outros infinitos.

Boas demais essas manhãs ensolaradas de segunda-feira que subo e desço colinas...  Bom demais!

Em 10/04/2017

MAGIA

Tarde de chuva prometida depois de almoço tardio, ela chega carregando o cesto de roupas sujas. “Onde boto, mamãe?” Jogue no chão da área e empurre pra baixo da passadeira... já vou ver ...”Quero almoço, café, lanche, tudo o quanto há, tô com fome, muita!” Preparei uma pratada de comida, pus no forno; enchi um tabuleiro de pão-de-queijo congelado, botei água pra ferver. Pode ser café solúvel? “Pode.”

O canto de sempre na mesa da cozinha se encheu de comida pouco depois. Belisquei um café, enquanto esperei. O que você pretende fazer? Perguntei me referindo a mudanças recentes da vida dela. “Vou ficar com você um pouco, tenho um compromisso a noite. E você, o que vai fazer?” Vou continuar assistindo a uma série coreana que está no pause...Respondi pensando que a pergunta não teve a intenção de ser tão imediatista, mas valeu assim mesmo.

Fomos pro escritório depois que ajeitei a cozinha; ela se sentou na cadeira de ouvinte e me esparramei na costumeira cadeirona, estiquei as pernas sobre um puf, abri o computador... e fiquei admirando a moça ao meu lado lendo o livro que trouxera. Ela tinha marcador de páginas, marcador de texto, régua...e estava concentrada, tanto...Ah, bora pro meu quarto? Cansei.

Ela se jogou sobre a colcha desarrumada assim que amontoei as roupas recém recolhidas do varal. Ajeitei os travesseiros, peguei o tablet, botei o telefone perto... e me voltei para o rosto concentrado na leitura. ‘Tá gostando? “Tô amando. Um dos melhores que li em toda minha vida...” Foi como se a tivesse tirado de um transe. Falou do autor, da ideia básica “fato que aconteceu na Segunda Guerra Mundial...” leu os pontos marcados, “criatividade”, “profundo”... Tem filme antigão com esse tema não tem? “A ponte do Rio Kwai?” Não sei...

E a tarde se foi, veio a noite, a moça ajeitou com cuidado a roupa limpa no porta-malas do carro e saiu gritando muitas vezes, “te amo”. Fechei a porta da rua com precisão, atravessei a cozinha agora imersa em quietude, subi as escadas sem acender as luzes, devagar, degrau por degrau, saboreando a delicia de uma tarde de chuva que nem veio.

2020 

 HOJE

A manhã começou discretamente só com os passarinhos cantando. De debaixo das cobertas, três, que se me sentir com frio não durmo bem, percebo que o tempo refrescou desde ontem. O “clima” do Google tinha avisado...

Ah, me lembro, preciso trocar as cebolinhas: ‘tão lindas, mas a terra muito úmida nestes tempos de “inverno” não está segurando as hastes esquias; tombam desanimadas sobre as beiras do vaso.

Me espreguiço rapidamente saio a procura de vestido, o que quero vestir hoje, e um casaco meia estação. Visto vestido verde, trespassado, mangas três quartos, esse, inteiro pra variar; e casaco bege de tricô furadinho. Vejo que minhas coisas todas têm o defeito do tempo como eu, ah, mas funciona, foi o que um dos médicos me disse. Tudo, quase, funciona aqui no meu planeta, dificilmente inteiro, rio sozinha, mas vamos seguindo que assim também está bom.

Depois começo a abrição de janelas. O sol ilumina os telhados quietos, um homem com celular chama dois cachorros pequenos... A floreira da janela do meu quarto exibe brotos de mini rosas vermelhas e rosas, e uma espetacular rosa amarela, de que de mini não tem mais nada. Ah, culpa das cascas de banana?

 FIM

Taí uma coisa com a qual não sei lidar: fim. Ah, passo a mão na minha cabeça: e o que tem de errado nisso? Bem, se está errado não querer finalizar nada acho que é quando isso começa a atrapalhar os inícios. E tem coisa melhor do que, finalmente, depois de muita fuga, indecisões em penca, você começar alguma coisa? Começar uma viagem, a pintura da casa, um curso, um emprego novo, um namoro...

Num dia desses passados, uma amiga me perguntou por que eu não escrevia um livro. Entre tantas desculpas esfarrapadas descobri uma que fazia sentido: não sei escrever os finais. Acredita não? Deve ser cinquenta o número de cadernos que tenho com histórias iniciadas. Vou anotando as ideias pro começo, mas tudo fica branco quando chego perto do final: paraliso qualquer risco de criatividade.

Daí, resolvi começar pelos finais, coisa tão propícia nesses tempos inimaginados. Ficou na mesma: tá lá o final lindo, choroso, enternecedor... sem começo. Seria uma bela ideia juntar esse fim a algum dos muitos começos que tenho, mas ainda não colou.

Então minha amiga perguntou: “porque você acha que não consegue escrever finais?” Eu, profundamente: “tenho medo de morrer depois disso”. Explico: já plantei árvores e tive filhos, o que falta? Escrever o tal livro com um fim. E FIM!!

Ah, gente, desculpa, é que estou gostando tanto de viver esses tempos nunca antes imaginados que quero ficar por aqui, ou por ali, o máximo que puder. Quero virar semente...

Brasília/DF, 27/04/2017

 

ESPELHO

“Você é romântica…”. Tá, assumo. Antes tinha vergonha de dizer...  “Cabeça de vento”... Como assim? Pago minhas contas, assuma as responsabilidades que me cabem, amo cumprir minhas promessas – mesmo que raramente as faço sabedora que sou de minhas falhas –. Até sábado passado achava ser defeituosa sendo romântica; ah, hoje, quer saber? Vou me revoltar, rodar a baiana e assumir que sou romântica, fui, e sempre serei. “Você vai fazer o quê, assumindo isso?” Ah, vou reler Machado de Assis, Madame Delly, Victor Hugo, Tomas Mann. “Tomas Mann? A montanha mágica? De novo? E isso é ser romântica?”... Acho. “Isso é um endurance que termina com os burros n’água”. Mas amei, fazer o quê? “Ah, vá ver de novo o vídeo do Tim Maia que você quase furou já. E o Fagner? Perdeu aquele CD, në? Baixa da Internet, ora. Daí você pode me dizer que está praticando ser romântica...” Uai, se assumo que sou romântica ainda tenho que provar? Quero ser romântica do meu jeito... só uma vez... ”Tá , vou te mostrar o que é romance, peraí, me tira daqui da parede que te mosto já, já...”

 





DO SILÊNCIO, de vozes e de almas

Na minha rua, se eu acordar de madrugada ou bem cedinho, posso curtir silêncio. Coisa boa demais! A ausência de ruídos me permite ouvir pensamentos, ajeitar emoções, refletir no que posso, e preciso, fazer, ou dizer, melhor. O silêncio me permite, me descansa, me fortalece para a vida. Tomo, vez ou outra, decisões pra poder ficar no meio do silêncio. O mundo caladão parece em paz, ou no caminho reto para ela.


 DO COMEÇO PARA O FIM

Das rotinas da manhã, eu já estava lá pela quinta: cuidar das plantas. Comecei preparando um recipiente para as cascas de frutas e legumes, passei para a terra, cavoucando, tenho sementes de flores pra plantar. O sol estava escondido, eu ouvia uma playlist que o Spotify preparou pra mim, zero seguidores, das músicas que mais ouvi em 2017.

Concentrada na tarefa, e prestando bastante atenção nas letras, me assustei com um bem-te-vi estrilando no fio acima de mim. No primeiro gesto que fiz ele voou pra longe. Observando seu voo, tinha virado o rosto pro céu sem sol, céu nublado, vento pouco...quando uma das músicas que mais ouvi ultimamente começou a tocar: “From the beginning until now”, piano e orquestra, de Park Joung Won. Foi um segundo apenas e eu já me descobri rodopiando sob a cortina de nuvens de chuva, os braços estendidos, o coração aos pulos. Minha alma voava pelo infinito acima checando onde estavam meus amores...

Longe, muito longe, alguns, perto outros, geograficamente, gravados a ouro cada um na minha pele, nos meus ossos. Chequei cada um, imaginei vivamente o que estava cada um fazendo, enquanto rodopiava pelo pátio branco cheirando a terra e xixi de cachorro, e acalmei meu coração repetindo comigo: “estão todos bem”, “estão todos bem...”, todos estão, definitivamente, bem. Rodopiando, tentando acompanhar a música com passos indecisos, a repeti muitas vezes, até cansar. Por fim, soluçando e rindo ao mesmo tempo, guardei os óculos no bolso do vestido embaçados que estavam pelas lágrimas ... de felicidade. Obrigada, Senhor!

 

Brasília, DF, 06 de dezembro de 2017.

 DIAS DE VERÃO

Esses dias de verão começam assim nesse esplendor de luz e calor... rimou? Mas de tarde chove. Se a manhã foi quente chove bem. Se muito quente chove mais. Agora se foram quentes manhã, tarde e noite pode esperar tempestade. Tempestade de tremer janelas, arrancar telhas, derrubar galhos, ou árvores inteiras. Assim é com o tempo, assim é com a vida. O dia de chuva, não se evita. E, então, de repente, sem nem se esperar muito, o dia de sol chega, ou de mansinho se já havia tempo bom, ou de repente se os dias foram mais bravios.

O tempo de agora, de risos sem conta, gargalhadas compartilhadas, abraços aconchegantes, substituem os tempos difíceis, tanto, que deles nem se fala mais. Não é mais preciso, não há mais espaço para caras feias amassadas de chuva porque esses dias de agora começam assim, e terminam assim como dias de verão de alegrias sem conta.

 DIA DE SÁBADO

Sábado bonito, o vejo através das persianas semicerradas enquanto estou espalhada em lençóis limpinhos enrolada numa colcha branca de piquet. Poderia não me levantar, não quero ou preciso. Apanho o celular e respondo às mensagens de ontem, as de hoje e mando outras para amigos cotidianos, aqueles que se lembram de mim todas as manhãs e aqueles dos quais me lembro em todas as manhãs, ou pelo dia afora.

Já não é tão cedo; o cheiro de café alcançou meu quarto e olho as horas: 08:06. Passo uma pincelada de pensamento revivendo a semana, o mês passado e até além distante no tempo. Me lembro, com ligeiro calor no peito e um riso calado, da ligação que recebi ontem à noite: personagem de minha história, belas lembranças. Uma conversa pontuada de alegria, emoção, falamos de momentos vividos com sinceridade, intervalos entre vidas atribuladas e destinos cerrados. Pessoa linda e inteligente que fez parte do caminho que percorri e que volta agora no simples alerta de um telefone. Um passado que vem se encontrar com o presente com gratidão. Pessoa querida que estava por perto quando eu cumpria promessas e não pude tocar; pessoa especial que já não está ao alcance de meu carinho: cumpre promessas que não fez a mim. Falamos dessas circunstancias de desencontro e acabamos rindo delas, rimos mesmo, eu como há muito não fazia, afinal, tivemos chance, breve, sim, e a vivemos enquanto foi possível, somos gratos, portanto, sei disso por você e por mim.

“Estou indo para uma festa, você poderá vir?”. “Ah, não, não irei.” ”Podemos ser amigos”. Eu, rindo e emocionada com a possibilidade de ver de novo alguém tão querido: “Não, já decidi que não quero ser sua amiga. Não quero ficar espreitando calada a felicidade alheia. Não preciso disso mais, não passarei mais por isso. Vamos deixar a nossa história como está: linda! Você tomou sua decisão, sustente-a agora, vai ser bom pra você. Se cuide”. “Você tem razão”, foi a resposta. “Se cuide”. “Se cuide”. “Beijo”. “Beijo.”

Daí, não resisto ao cheiro do café, afinal, é sábado e o sol estrala mamona lá fora.

 

DELÍCIAS

Um amigo querido não diz delícia, diz diliça; amo muito esse amigo. Delícia de amigo, dos de orgulho, confiança. Dá água na boca a delícia de receber convite de amizade de quem o coração sentia saudade e nem sabia: UAU...  

Delícias são abraços de meus filhos, nem falo; meus netos chamando vó precisa contar não. O sol em manhãs de inverno quando os pés estão molhados porque regou plantas, delicias...

Delícia é pisar o chão de tábuas fresquinho quando o tempo esquenta... aconchego de cobertas depois de dia inteiro correndo que nem barata tonta; biscoitinhos de nata e coco, cumprimento de pessoa desconhecida na rua, cebolinhas brotando e flores e pimenteiras...

Delícia é o sussurro do vento nos capinzais, é o silêncio em madrugadas gentis...

Delícia é seu sorriso, de você caminhando para mim.

 

DE RAIVA

“Mãe, você está com raiva de mim?”, escuto a voz vindo do banheiro. Interrompo a arrumação dos livros sobre a mesa e, num átimo de segundo, enquanto alcanço a moça, penso na resposta: “Sim, estou com raiva de você. Só por isso, disse pra você ficar na cama mais um pouco que cuidaria da cachorra e lhe ajeitei as cobertas. E já fiz seu almoço com cuidado lembrando os temperos que gosta, que não come carnes. Foi porque estou com raiva de você que já tirei o lixo do banheiro, estiquei sua toalha pra enxugar, tão bom toalha sequinha, te ajudei a dobrar a colcha vinho e enchi sua gaveta de calcinhas limpas. Foi porque estou com raiva de você que perguntei sobre seus compromissos, que disse ia lavar seu vestido de festa. E chego nela, a abraço forte, a seguro, enquanto olho o rosto pálido, os olhos de resquícios de criança, e vejo uma pequena pinta, herança minha, e respondo com a ternura de todo o coração do mundo: “Sim, estou com raiva de você...” pausa... “porque hoje te amo menos que amanhã...”

 

DE PROMESSAS CUMPRIDAS

Quando adolescente no interior de Minas Gerais, li todos os livros que pude, às vezes lia um em metade de um dia. Sentada na calçada da caixa d’água no fundo do quintal, à sombra do pé de manga carlota mais gostosa que existiu, me lembro ter lido “A entregadora de pão”, de Xavier de Montépin‎, começando no almoço – comendo na panela arroz com carne moída enquanto lia – e terminando no momento exato do Ângelus.

A biblioteca do colégio só deixava a gente pegar livros de quinze em quinze dias. Então, minhas colegas os pegavam e eu os lia. Vivia rodeada de personagens, no mundo da lua, como mamãe dizia. Mesmo depois que a realidade me afastou quase totalmente dos romances, aqueles personagens me acompanharam de alguma forma. Eu acreditava ser o personagem da mocinha boa.

Agora, o personagem do meu pavor sempre foi a madrasta. Pedia a Deus o tempo todo que não me deixasse morrer enquanto meus meninos fossem pequenos de modo que não fossem criados por madrastas. Esses meninos, hoje, são adultos driblando os próprios personagens em seus mundos encantados. Sou grata, e mesmo assim, confusa, de tanto a vida me deu. Como diz escritora famosa, “dou por vivido tudo que sonhei”? Não mesmo, vivi muito mais do que sonhei em minha limitada filosofia literária.

Essas são conjecturas de agora, na velhice. E esse talvez seja tempo triste para alguns, mas no meu caso, enquanto desembrulho teias de aranha por corredores vazios, limpo estantes empoeiradas, me quedo relendo os clássicos da juventude; e me encanto de novo. Deliciada, reencontro personagens, releio contos, revivo épicos. E volto ao mundo da lua, tão bom!

Tão bom, sim, mas descubro que a madrasta, encarnada por amedrontadoras bruxas, esteve disfarçada de mocinha bondosa aqui ou ali. Sim, vejo agora, os personagens que pululam por meu mundo real são muito mais surpreendentes que os da mais poderosa trama de ficção.

 

Brasília, DF, 12/08/2019.

 

DE GUARDIÃ DE MEMÓRIAS OU DOS HÁBITOS DOS MOSQUITOS

Das coisas que venho refletindo, já que ainda penso, é no que me tornei. Uma senhora aposentada, sem nenhum compromisso imediato sobre o que nunca perdi tempo sequer imaginando. Qual é o meu papel no mundo agora? Profissional produtiva.. não mais...mulher, mais que nunca...mãe, sempre. Não mais esse mãe no sentido de cuidar de menino pequeno. Porque não é mais cuidar. é vigiar de longe, torcendo de corpo e alma, pra dar certo. Se cumpri corretamente minha obrigação de educar pro mundo, meus filhos, isso fiz com tudo que eu tinha, então, agora é confiar neles.

Então, nessa manhã  singular de mundo lavado, a chuva de ontem foi digna do nome, quando acordo cedinho, abro as janelas pro céu azul, pro universo que acorda com brisa fresca e passarinho cantando, faço café, boto pão de queijo no forno, me sento no meu canto na mesa da copa e me ponho a descobrir meu novo papel no mundo. Ah... e um mosquito sobrevoa a toalha branca, os vidros de biscoito, as frutas na travessa branca de porcelana decorada com flores azuis que era da minha mãe...

Os mosquitos daqui de casa sentam praça: escolhem onde morar e por mais que eu os espante, eles voltam pro mesmo lugar. E não morrem com inseticida de supermercado: mais valem panos de prato e palmas estraladas. Os espanto na maioria das vezes, mas me distraio e eles voltam...

Mas sobre meu papel no mundo, está decidido: sou guardiã de memórias. Guardo caixas e pacotes delas pelos armários e gavetas da casa. Fora os ecos no meu coração que os levo aonde vou, as lembranças físicas de cada um, dois, três, quatro, cinco, e minhas, aguardam caladas até que os legítimos donos as venham resgatar. Enquanto isso não acontece, preparo com capricho meu café da manhã . Aliás, o timer do forno acabou de avisar que o pão de queijo está  pronto.

 

Brasília, DF, 21 de outubro de 2018.

 

DE FLOR

Tava eu atribulada com o que fazer com a calçada do fundo da casa porque é onde passa o cano que leva a água da chuva que cai do telhado direto pro asfalto... fiquei  uns dias observando o movimento de carros na rua e, pensando, pensando no que fazer.

As casas são geminadas com seis metros de distância, mas há uma área para movimentação de pedestres e carros para cada casa antes da rua. Só que todos os vizinhos se apropriaram dessa área e o espaço de manobra que sobrou rente a rua foi só o meu, daí, carros, caminhões, camionetes, motos, bicicletas sobem na calcada da minha casa. O piso caprichado, mas barato, que foi colocado lá não aguentou nadinha o sobe e desce de carros, assim, o consertei muitas vezes.

O último conserto foi agora em dezembro, o piso havia cedido e obstruía as caixas de esgoto e gordura que vão pra rede pública e já estava até perigoso tamanho o buraco. Esperei o décimo terceiro pra consertar, consertei as caixas, troquei canos quebrados e arrematei de cimento grosso. Ah, foi só tirar a proteção de cimento fresco que os estragos recomeçaram.

Certa manhã, eu estava à janela, cuidando das mini rosas, quando o motorista de um jeep manobrou em cima do cano e quebrou um pedaço do piso novo. Gritei do segundo andar pro motorista usar apenas a parte da manobra, a mais baixa da calçada, mas ele apenas me olhou enquanto fazia sinal obsceno com o dedo e foi embora acelerando.

Eis porque eu estava pensando, pensando. Sem grana pra fincar um cano com corrente, sugestão dos vizinhos, ou colocar um banco, minha sugestão, pra proteger o lugar, me lembrei da mensagem que fala mais ou menos assim: “de onde você está agora, com o que você tem agora, faça o que puder fazer agora...” Tipo isso.

Juntei vasinhos de plástico, preparei porção de terra bem adubada, uma tábua velha, resto de tinta azul piscina e montei tudo na beirinha da rua. O pedestre continuaria com o espaço e os motoristas teriam que manobrar só na parte destinada às manobras mesmo, o cano ficaria protegido.

Tudo preparado, vasos azuis sobre tábua, terra nos vasos, fiquei uns dias observando os vasinhos sem semente: “vou ver no que dá...” Ficaram lá os vasinhos em silêncio, debaixo de sol e chuva, de dia e de noite, por quatro dias e nem se moveram do lugar. Ontem resolvi colocar sementes de flor, botei mais terra, o envelope de sementes espetei num palito de churrasco e finquei bem à vista, “anão de jardim”, e escrevi, FLOR, no que sobrou da tábua em azul piscina.

Até agora estão lá, do jeitinho que coloquei. Vez ou outra dou uma olhada... “vamos ver no que dá”...

Brasília, DF, 31 de dezembro de 2017

DE FLOR – 3 DIAS DEPOIS: réquiem para os vasinhos

O evento se deu entre 17 e 20 horas de ontem. Sei disso porque olhei pela janela antes de descer pra preparar o lanche da tarde, eles estavam lá, agora, 8 da noite quando subi de volta e olhei pela janela de novo, oh!!! Eles não estavam mais lá. Meu cérebro não conseguia administrar a informação negativa: NÃO ESTÁO lá!!!

Tive q que repetir até inverter pra: OS VASINHOS SUMIRAM. Desci correndo... juntei os restos de terra, coloquei a tábua pintada FLOR em azul piscina de volta em cima do cano de escoamento da água de chuva que cai no telhado enquanto repetia: OS VAZINHOS SUMIRAM!! OS VAZINHOS SUMIRAM... com semente e tudo. Ponto. Fim.

Brasília, DF, 03/01/2018

 

DE ABELHAS, COLINAS E CARROS

Não me importo com luxos, marcas, excessos, ostentação. Tenho o necessário de tudo para viver bem, mesmo assim, não me importo de morar num rancho de capim, capinar o mato, não tenho frescura com lixo. Vivo bem desse meu jeito. Tenho tudo, afinal, livros, comida, livros, roupas, sapatos, livros, livros... e um carro. Carros devem me levar aonde quero ir; e só isso. Vejo carrões ao redor, pelas avenidas de Brasília, um povo apressado comendo um pedacinho da minha pista: e tenho dó. Quanto estrago no meio ambiente esse carrão fez, e faz? Meu carro já não está sendo fabricado mais. E nem sempre me leva aonde quero ir: já pedi socorro a carrões para subir uma serra de areia, por exemplo.

Meu carro é especial: gasta pouca gasolina, baratinho de consertar e o melhor: é invisível. Quem repara num carrinho a meia velocidade sendo dirigido por uma mulher de óculos e cabelos brancos. Invisíveis, somos, o carro e eu. Jeito meu de viver, gosto assim. Nada contra quem tem, ou é, alguma coisa diferente. Daí foi que detonei a roda do meu transporte descendo de Sobradinho para casa batendo num buraco. Parei num posto de combustíveis e o Cláudio, pai recente da Isabela, procurou uma chave de roda, que descobri não ter uma, e trocou o pneu. Tá, volto pra casa, já tarde da noite, vou dormir, claro, que de manhã tinha compromisso cedinho, antes das 8. Carro parado, sem estepe, solução? “Mandinha, você tem compromisso amanhã de manhã?”- ”Não, mãe, o que você precisa?” – “Preciso do seu carro.”

De manhã cedinho, pistas secas, alívio, sol brilha: manobro o carro, bem maior que o meu, na porta de casa: descobri que as ruas se estreitaram por aqui. Ufa! Depois de seis manobras, pego a BR pra Sobradinho. Se der na doida, posso chegar a Fortaleza, num carrão daqueles daria – risos. As pistas externas também se estreitaram e parecia que o mundo se acabaria em carros. Eu, ali, tentando não andar devagar demais, e os carros me empurrando pra lá e pra cá; e era um susto pisar no acelerador: o carro dava um arranco e saia na carreira sem que eu pudesse impedir. Freava, freava? O freio desse automóvel funciona e, diferente do meu bastava tocar o pedal, levemente. E minha cara ia pro painel...

Ah, tem que andar com as luzes acesas: onde elas estão mesmo? Ah, vai sem, a lei está suspensa. Sobe colina, desce colina, gosto de apreciar a paisagem, que isso, mal conseguia olhar a linha no asfalto pra não andar de lado. E pensava: “Mulher, você fez uma cirurgia enorme, deveria estar em casa, de cama, não numa aventura dessas. Mas compromisso é compromisso e fiz alguns dias desses: vou cumprir, que posso, ora, não morri! E não estava contando que iria trocar de carro, o meu é tão mais confortante!!

Sobe colina, desce colina, penso que poderia mexer no rádio pra aumentar o volume que o que estava ouvindo mais parecia uma cachopa de abelha. Onde está o som mesmo? Nesse botão? Ih, aquecedor? Não, não preciso disso. Ah. Ali, naquele sinalzinho colorido. Né não. Bora seguir assim, amo abelhas. E segui no acelera pula e no freio meto a cara no volante. Cheguei ao meu destino ilesa e acho que o carro também. Depois do compromisso, já que para casa todo santo ajuda, eu estava menos apavorada. Claro que não guardei a coisa na garagem: o portão também tinha sofrido um encolhimento misterioso. A calçada nos fundos da casa pareceu um bom lugar para apear. Guardei as chaves me achando corajosa, mas burrinha que só: “Mandinha, tá aqui seu carro”- “Foi tudo bem, mãe?” – “Foi, filha, foi ótimo. Obrigada,” – “Ok; sempre que precisar, mãezinha.”. Tá, fui consertar as coisas que me pertencem sem nem almoçar. Despreparada!!

Magda Castro – Brasília/DF, 16/02/2017

 

DA MAGIA

Só a mágica explica. Pessoas incríveis, descobertas inimagináveis, castelos e pontes, e pirâmides, construídos da areia; rosa perfeita que nasce de botão misterioso, frutas que colho no pé, me explica? Os picos tão altos, os rios seguindo pro mar, os oceanos, o gelo nas cordilheiras, o vento nas árvores, a amiga preciosa, o amor inesquecível, alguém me explica?

O engraçado é que, só rindo mesmo, tento entender esse caminho que percorri: procuro os resquícios de sonhos soterrados, os rascunhos de planos tímidos, traços de fátua vontade, consequências de minhas escolhas, mas melhor, busco as razões dessas escolhas.  Como é mesmo que vim parar aqui? Num tempo em que eu deveria estar plena de respostas, o que mais tenho são perguntas. Magia, digo, pura magia.

23/10/2020

CONTO DE FADAS CONTEMPORÂNEO

Era uma vez... uma mulher que perguntou pro companheiro de muitos anos: “você é feliz?” Da resposta, vai daqui, vai dali, a essência foi que “não”. A mulher sugeriu que o homem partisse pra buscar a felicidade, no que ele concordou. Feitas as malas, já na saída, a mulher entregou uma chave ao homem: “se acontecer de você descobrir que a felicidade está nesse lar, nas pessoas que vivem aqui, você pode voltar.” Dez invernos substituíram dez verões, dez outonos coloriram de ouro os caminhos, a primavera encantou o mundo dez vezes... e, não se sabe se foi o destino, as vicissitudes da vida ou a piedade de Deus, mas, de repente, não mais que de repente, descobriu-se que a chave não servia mais  na fechadura. Foi aí que todos foram felizes para sempre.

Brasília, DF 24/11/2020

 

CONFISSÃO

Oi, Mamãe! Hoje troquei um dos vasos de cebolinha. Fiz tudo como você me ensinou: cortei as cebolas com cuidado sem deixar que sujassem de terra, coloquei num saquinho pra usar no feijão. Também afofei a terra toda antes de furar novos buracos, acrescentei cascas de ovos que vinha guardando, observei as distâncias, nem perto nem longe: perto demais uma planta tira a energia da outra; longe demais sentem falta, arremedo da teoria que gosto muito de plantas companheiras...

Também dei aquele aperto com os dedos ao redor da muda plantada pra fincá-la bem mas não muito apertado pra não quebrar as hastes frágeis. Joguei terra solta depois por cima do murundu, um a um. Cada muda nova recebeu um gole de água, apenas no pé delas pra não aguar pragas, né? Você me ensinou assim. Regar a planta bem rente a ela também economiza água, outra coisa que sempre me lembro você me ensinou enquanto segurava todos os pratos com uma das mãos e os enxaguava num fio de água com a outra. Isso aprendi, e assim faço.

Também mudei o vaso de lugar. Descobri que as cebolinhas amam o sol, olha só, assim como eu. O coloquei bem no meio do pátio branco perto de um vaso de manjericão com flores em penca; gosto de tocar nas folhas macias pra exalarem o cheiro doce. Tão bom se o mundo tivesse sempre cheiro de manjericão.

Agora, Mamãe, confesso, uma coisa fiz diferente de você: ao invés de replantar apenas as mudas graúdas e viçosas, distribui todas entre grandes e pequenas fortes e raquíticas, todas que tinham um fio de raiz. Quis dar chance a cada uma de usar a própria energia pra driblar as intempéries que viriam a seguir. Claro que tomei o cuidado de cobrir as coisinhas lindas com um tabuleiro velho assim que vi as nuvens negras no céu. Tudo demais estraga.

E o vaso ficou lindo, fiquei ali, parada, cismando: não é assim, Mamãe, o mundo dos homens? Creio que muitos que nascem recebem “terra, água e sol” o bastante pra aprenderem das próprias forças e seguirem pela vida afora quando chegasse a hora, é assim?  

Pensei assim, Mamãe, depois que vi como ficou lindo o vaso de cebolinhas: se fiz tudo que aprendi como sendo o jeito certo, tenho a garantia de que as cebolinhas vão crescer fortes e sadias?

 

Brasília, DF, 13 de dezembro de 2020.

 

COME CLOSER TO ME/SE ACERCA DE MIM

Enquanto a panela de pressão chiava a todo vapor, eu fazia de conta que dançava pelo chão branco da copa/cozinha ouvindo Ben E. King. Vez ou outra bebericava numa taça de Martini dry.  “Indo”, foi a última mensagem... eu encarava, a cada rodopio, os vidros da parede dos fundos estralando de luz da tarde de inverno. Chegou... não...chegou? Não.

Chegou. Como sempre, fazendo bagunça, buzinando, brincando. “Cheirosa”, eu disse ao abraçá-la enquanto descobria que tinha derramado feijão no vestido azul. “Nem estou com muita forme, comi uma tapioca pelo meio-dia...” ”Não comeu cedo, né?”

“Feijão e arroz nas panelas no fogão, o cozido vou botar na mesa, gosta de costela de boi?” “Não muito...” Experimentou, encheu o prato. “Coma à vontade. Se preciso, faço de novo pra sua irmã... já mandou duas mensagens pedindo pra guardar pra ela“.

Comeu, comeu, apelou: empurrou o próprio prato, puxou a tigela pro meio do peito, empunhou a colher de arroz e mergulhou no caldo com legumes...” Isso tá muito bom!!!”, repetia, de boca cheia. Se eu estava rindo é piada...

Resultado: a panela de pressão voltou ao trabalho... e eu, vigiando pacientemente, fazer o quê, botei de novo o Ben E King pra cantar... O sol da tarde de inverno já se arrastava baixinho, mesmo assim, ainda inundava de luz tudo ao redor. Menina malcriada, sempre foi assim, meu coração feliz repetia.

Brasília, DF, 30 de junho de 2018.