sábado, 6 de novembro de 2010

ENTARDECER

Uma coisa é você imaginar.... montar imagens ... que talvez nunca se realizem. Outra coisa é você tocar o fato, ver, passar perto, apalpar, participar do que está acontecendo, mesmo que seja algo que você jamais quis que acontecesse. Seu coração sempre soube, a razão muito mais. O fato era assim, mas era só imaginação, poderia nunca vir a ser uma verdade. É diferente demais quando é um fato, que você vê, realiza, acompanha...
Um sábado de tarde, quase crepúsculo. As luzes se misturavam entre as dos postes e as do por do sol. Podia-se ainda ver as pessoas ao longe, a luz era suficiente ainda. Vi o movimento de um homem despreocupado – a camisa de listras brancas sobre fundo azul eu conhecia... ajudei a escolher... faz muito tempo. Anos... o movimento, um homem de cabelos brancos, dá uns dois passos... sai da beirada do telhado no boteco perto do supermercado onde eu fazia compras com meu neto e minha incansável amiga: à noite minhas filhas, os namorados e amigos iriam assistir a filmes. Eu comprava milho de pipoca, chás em promoção, cinco long necks de cerveja – para acabar com aquele queijo gostoso que durava há duas semanas. Me distrai com um rapaz vendendo abacaxis, provei um pedaço, o rapaz um moreno bonito arreganhava os dentes tentando me vender as frutas. Estava boa, mas eu já tinha gastado tanto dinheiro... “Não, obrigada!” me virei para seguir a vida, as compras já guardadas no porta-malas pela amiga e o neto. Ela fez o comentário. “Fulano e Sicrano estão ali ...” “Onde? Eles viram a gente?” “Não...”
Olhei, foi aí que vi os passos do homem despreocupado que alongando os braços fortes e peludos em direção ao balcão do boteco deixou algo com o atendente. Não vi o que era, não vejo bem à distância. Aliás, vejo muito pouco de qualquer distância. Eu sabia que estava com a chave do carro na mão... sabia que tinha algo a fazer... titubeei por alguns segundos... vi os cabelos brancos se afastarem... e eu me obriguei a abrir o resto do carro para meus acompanhantes entrarem. Íamos para casa...
Meu coração estava em algum lugar que não sei ainda agora onde. Eu respirava, mas não tinha razão nenhuma para isso. Me obriguei a fazer o que tinha que fazer: entrar no carro, dirigir para casa... poderia ter seguido o caminho à direita, virado na rua de cima, mas então, vi. O conhecido homem de cabelos grisalhos de camisa listrada de azul e branco segurava algo pela mão. Ele caminhava tranqüilo como se a rua lhe pertencesse e não parecia dar muita importância a muita coisa além daquele passeio numa direção qualquer. Eu poderia ter pego a rua de cima, mas ao contrário, dirigi o volante, concentradamente, determinada, para a esquerda.
Seguia um casal caminhando devagar como se tudo o que fosse esperado no mundo fosse aquela caminhada sob o por do sol.... tudo o mais não parecia existir para eles. Tanto que andavam no meio da rua, como se a segurança que sentiam fosse tão poderosa que nada os afligia ali, no asfalto cujo negrume já anunciava a noite próxima. E o que oferecia a noite? O que será que fariam ... juntos... naquela noite? Num átimo de segundos pensei: “Ah, desta vez ela veio... ele vai todo final de semana e no único que não, ela vem. É sério assim...num relâmpago imaginei o pequeno apartamento ali tão perto onde um dia habitaram outras pessoas... mas nele hoje se regalam um homem grisalho e uma mulher que vem do interior. ..”Ah, tão irônica a vida. Nem se iguala ao filme de mais fértil imaginação! Coisas como essas deviam ganhar prêmios de “melhor roteiro original”. Ah, que não me enganem nunca dizendo ser a vida justa!
Quando virei o carro à esquerda, me coloquei atrás do casal. Queria, de alguma forma, chegar bem perto. Para ter certeza; queria provas. Queria esmagar minhas esperanças, quase ri pensando assim, ou o que quer que pudesse ser assim chamado. Queria eliminar qualquer sentimento remotamente parecido, esfregar na minha própria cara aquilo que falei um dia ... que a vida nos levaria por caminhos incontroláveis. E queria ver de perto, daí avancei devagar, o carro na banguela, em silêncio, o mundo parecendo paralisado. Passei pertinho dos dois, buzinei de leve, repeti, daí o homem viu, se virou, pareceu indiferentemente surpreso e balbuciou um “Oh!! Olá,...” joguei uma mão espalmada em sua direção como se lhe jogando um monte de beijos. Não olhei para a mulher... era algo indefinido naquele cenário... me lembro de ter visto alguém segurando aquela mão de homem com total direito de propriedade... parecia usar uma blusa branca, poderia ser uma túnica amarrada na cintura. Parecia ter cabelos escuros... a única certeza que tenho daquele ser era que talvez pela luz da tarde parecia muito à vontade percorrendo aquele caminho, possivelmente conhecido. E aquele entrelaçar de mãos era antigo, nada recente, nem inaugural... Corriqueiro, familiar.
Vir para casa não pareceu mais real do que aquela miragem; o caminho, as árvores, as pessoas, tomaram um colorido espectral. Tudo parecia em sépia como se sombras, memórias vagas, distâncias. Tirar as compras do carro, organizar na geladeira pareceram ações tão surreais como se eu estivesse vivendo o Avatar.
Quando liguei para a filha mais velha, longe, como havia combinado, lhe contei o que tinha visto como se tivesse sonhado. Algo estranho, eu disse, fora do lugar. Inacreditável, apesar de saber que era o natural. Natural.
O que é natural? Você amar alguém tanto e por tanto tempo e tão eternamente que um dia você se senta na varanda com uma garota e lhe anuncia que está pedindo para o pai ir embora porque ele não sabia o valor que a família tinha? Foi isso o que disse: que não conseguia sentir nele que dava valor à família ... ah, mas isso já faz tanto tempo; sim, muito tempo!
Mas se isto está acontecendo agora, se essa visão atravessou meu caminho assim, essa conversa na varanda também aconteceu e tudo que restou foi que prometi para minha querida filha morena que se o pai dela um dia dissesse que nós éramos a família dele e que por nós estaria disposto a lutar contra qualquer coisa; se dissesse que queria viver com a gente para sempre, que éramos importantes para ele, então, poderia voltar sem medo.
É que ele parecia tão indiferente a tudo que vê-lo daquele jeito era doloroso demais! Preferia vê-lo longe tentando achar o próprio caminho do que ali perto de nós, perto de mim, claro, porque das meninas ele nunca se apartou tanto. Ah, gostaria que isso fosse verdade! Ah, que pelo menos isso fosse verdadeiro: que ele não se afastaria das meninas! Só que a vida é muito mais forte que isso; pensar que não seria tentar tampar as estrelas com véus!
Ah, nem o maior amor do mundo poderia vencer a distância, o afastamento de todos os dias, seguidamente. Não! Eu mesma escrevi um dia que a força da vida é muito maior do que nossos vãos sentimentos de esperança! Ah, como queria que ele estivesse, por elas, ao redor, sempre...
Como poderia? Passar uma manhã, arranhar uma tarde para xícara rápida de café, se sentar na mesma cadeira que ainda está desocupada por algum minuto seria presença? Como se poderia nominar, então, as pequenas coisas diárias que tão sem importância, são, afinal, as mais importantes? O "boa noite" ou o "bom dia" de todos os dias?
Ah, nem sei dizer quantas vezes me perguntei o que faria se as coisas fossem diferentes! Ainda o amo? O amei um dia? Qual é o real sentimento que tenho por ele? São perguntas que martelam minha cabeça dura e que parece só meu coração conseguirá responder um dia.
Então, mesmo que a conversa na varanda tenha sido prova de muito amor, ninguém poderia saber o que o futuro traria, ou o tamanho daquela decisão. É, apesar disso, é quase engraçado que há poucos dias, tenha pensado algo do tipo: "e se ele chegasse de repente e pedisse para voltar?" Respondi a mim mesma, rindo, imaginando a cena ao dizer a ele, serenamente: “Por que demorou tanto?”...
Agora, depois que tentei me distrair com um filme, com a cerveja, em conversa com meu filho, vejo que essa é pergunta que jamais será feita; e que não haveria como ser diferente... penso com o coração enquanto olho minha imagem no espelho.
Carinhosamente apalpo os sulcos do rosto e do pescoço, passo a mão pelos cabelos enluarados, suspiro: "não sou mais uma menina...e aquela moça parecia tão mais jovem!" Esse era o sonho dele, alguém jovem e bonita... "será que ela é bonita?". Procuro a escova de dentes, empurro os pensamentos até a cama, um conforto branco em noite de véspera de verão... tanta coisa boa para acontecer. Seguir em frente, um dia depois do outro. Uma lágrima, mas que seja discreta porque ninguém mais espera que eu chore... nem eu. Passou esse tempo e "você não achou que a vida fosse sempre agradar, achou?"
Vestindo o leve pijama verde ainda insito: "é que a vida não é como imaginamos; a vida é como ela quer ser..." "Paciência", respondo aos meus botões e teimosamente resisto: continuarei a viver mesmo assim, mesmo que não seja fácil, mesmo que doa, mesmo que tenha que me arrastar em alguns momentos porque sei, disso tenho certeza, tudo se acabará um dia, então, mesmo que não seja a minha verdade, algo real deve existir. Também para mim deve haver, em algum lugar, uma mão para segurar num por de sol.
Além do mais, ainda existo, ainda respiro, mesmo que não seja perfeita, mesmo que tropegamente, seguirei a minha estrada do jeito melhor que puder fazer. E, mesmo que eu não espere, amanhã será domingo. "E, olha, moça, já faz muito tempo, tempo demais, aliás, que esse homem é totalmente indiferente a você! Cuide-se, boneca, porque ele vive a própria vida e nem se lembra que você existe! Vê se enxerga isso de uma vez por todas!"... repito, e repito, enquanto desligo a luz mortiça do pequeno abajur de cabeceira.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 07 de novembro de 2010.