MEMÓRIAS DE TERNURA
Antigamente, vivíamos nesta casa, dez
pessoas. Espalhados entre os quartos na hora de cada um sossegar, o
lugar predileto de nos reunirmos era a mesona da copa-cozinha. De oito lugares,
tamboretes completavam a conta e nos espremíamos uns aos outros pra saborearmos
a comida gostosa demais que a Déda ia trazendo. Acho que por isso, terraço,
varanda, salas eram inúteis nesse momento: a proximidade com o fogão, e a Déda,
nos mantinha ali juntinhos. Era uma algazarra de gente falante; claro que eu
falava mais que era a hora do sermão porque não se deixava nada pra depois
naquele tempo tanta correria pra todos. Mesmo assim, eram momentos de ternura e
apreço. Ali, pai e mãe tinham lugares marcados, e apenas; quem chegasse
primeiro escolheria onde se sentar.
Hoje em dia, que todos escolheram outros
caminhos, faz tempo que já somos um. Vez ou outra, dois; mais raro ainda é sermos três. E isso aconteceu ontem:
com o tempo anunciando tempestades, a copa-cozinha acolheu grata três alminhas
pr’um almoço caseiro. Não que eu saiba cozinhar, mas botar água no feijão, sei,
mesmo porque a comida não era o motivo do encontro. Espalhadas pela cidade,
essas alminhas arrombaram a porta dos fundos num ultimato à saudade que vem nos afligindo há mais
de ano. Ato de revolta, diria, com os devidos cuidados, a mãe de hoje se senta
o mais longe possível das duas beldades encantadas que acordam as paredes com
gargalhadas. Uma delas atendeu ao celular da outra e fez de conta que era a
namorada do moço que chamava. Duas irmãs tão diferentes hoje que costumavam
pregar peças até no pai tão parecidas eram as vozinhas de criança; ao que
pareceu não ser tão mais assim agora.
O moço telefonador desligou na hora que
achou tinha ligado errado; ligou de novo rapidinho: a namorada ensinou pra irmã
como deveria atender ao telefone para enganá-lo. O rapaz titubeou, mas
continuou a ligação enquanto as risadas se misturavam uma às outras. De risadas passamos a gargalhadas:
uma mostrava dentes perfeitos na bocarra escancarada, eu escondia os dentes
partidos, a namorada soluçava de rir. Até que se identificaram corretamente,
rimos a bandeiras despregadas; e o namorado entrou na festa assim que foi
colocado a par de toda a história.
Depois de comer, cada uma voltou ao próprio
canto ainda na correria pra chegar em casa antes da tempestade. Eu, no agora silêncio
de novo esperava que meu coração se aquietasse pra retomar às rotinas de alma solitária. Alma solitária,
repito, não penada, muito menos infeliz. Impossível sentir algo diferente de felicidade
quando memórias de passado e presente se sobrepõem tão perfeitamente; tanta
ternura!
Brasília, DF, 11 de março de 2021.