DE JABUTICABAS E OUTRAS VICISSITUDES
É por causa do tempo; tudo culpa dele. Esse
gentil fidalgo, não assusta: age em silenciosa quietude e nos cabe vigília se o
queremos entender, ou não o perder. Nada se perde, afinal, descubro na altura
de meio século de experiências que as coisas se transformam imperceptivelmente
quando as estamos olhando, e, repentinamente, quando, por breves momentos, o
olhar vaga por outros alvos. A transformação acontece, seguidamente; a
percebemos, entretanto, de acordo com a distância que estamos dela.
Vi que algumas coisas mudaram na pequena
fazenda do tio que visitei meio tortamente ontem. Tortamente porque eu vinha de
outras paragens, de passagem, e não havia me preparado para aquela visita. A
casa é a mesma; é o mesmo o matinho duro que acompanha a grama rasteira; isso
não mudou. Não, e, ainda são os mesmos o pé de mangas docinhas do quintal da
cozinha e os de jabuticabas. Agora, o pomar mudou de lugar e há outra cerca,
apesar de que a de agora parece tão velha como a de antigamente. O curral
sofreu cirurgia remodeladora completa e foi construído um galpão que parece
muito velho, acho, desse não me lembro. Ele não esteve sempre ali?
Lembrança é coisa esquisita: a gente olha o
que pode ver hoje, mas a imagem do passado se sobrepõe e daí não há como
separar o real do lembrado. Me contento em saber que lembro de coisas que
existiram um dia e mesmo que não existam mais, há coisas muito boas também que
existem apenas hoje e que fazem desse dia que acontece um dia bom também. Por
que não? Não é somente o passado que pode nos trazer doçuras e conforto. O
presente de tão eternas coisas sempre diferentes pode trazer alegria; e ainda,
de quebra, o doce sabor de ter vivido coisas muito especiais.
Não foi diferente o carinho do tio depois que
ele se levantou de um cochilo. Tinha tido visitas por todo o final de semana e
o cansaço bateu, claro, domingo de tarde, bem de tarde mesmo, já na penumbra
das sombras compridas de noite célere. Ele foi me encontrar ao pé da
jabuticabeira para onde corri assim que cheguei. E como antigamente, me
misturei ao zumbido de besouros, pernilongos, borrachudos. Como sempre, levei
picadas de aranha e ataques em massa de mosquitinhos Maruins.
Enquanto saboreava as deliciosas “pretinhas”,
o pensamento pulava de canto a outro e eu esticava o olhar por paragens que não
estavam mais ali. Em criança e já mocinha, vinha para os feriados e férias.
Não fui criança fácil: desgrenhada, mal
cuidada, ignorante, dava um trabalhão danado à tia para trocar meus lençóis
quase todas as manhãs; sim, há também lembranças ruins. Me lembro também de
ajoelhar, a noite, sempre que acordava molhada e bater a testa no chão,
implorando silenciosamente que aquilo parasse. O médico do colégio disse que eu
não tinha doença física nenhuma. Além disso, sentia frio; podia fazer o calor
que fosse, dormia com duas cobertas grossas de tear; acho que por isso tenho
uma guardada para ser usada na casa da Serra, quando ela mudar de ser sonho
para ser real. Mais tarde, já adulta, um Psicólogo sugeriu ser “carência
afetiva”, o problema. Rio disso, mudo de jabuticabeira e pergunto pro tio como
vai de saúde.
Enquanto ouvia que estava bem, escolhia as
jabuticabas maiores, por entre a fartura delas grudadas nos troncos. Falei que
tinha maravilhosas lembranças dali: as noites eram mágicas, no sentido literal,
porque ele contava história de assombração e a criançada fixava os olhos na luz
da lamparina do centro da mesa com medo da penumbra do resto da casa. Ir para o
quarto era preciso coragem: passo a passo, com a mão em concha para evitar que
lufada fantasmagórica de ar entrasse por uma das grandes janelas, apagasse a
língua de fogo e nos deixasse aos caprichos das almas penadas. Mas ao redor da
chama, ainda na mesa, havia sempre cada um a seu tempo, ou mingau de milho
verde e pamonhas ou peneiras de pipoca, uma de doce outra de sal. Meu tio ria
de mim; era minha vez de contar histórias.
Relembro que em meio à criançada comendo
pipoca e ouvindo histórias de arrepios e sussurros as noites de minha infância
não eram noites vazias. Seja pela comida saborosa da tia, de panelas fumegantes
transbordando de comidinhas cheirosas, seja pela especial sensação de aconchego
e proteção, aquele sítio foi um dos paraísos entre os quais tive o privilégio
de crescer. Amei com todas as forças de meu tão tenro coração as pessoas que
faziam parte daquele mundo: tia, tio, primas; que, lamentavelmente, hoje estão
dispersos em razão de vicissitudes que acontecem a todos nós.
Naquele lugar eram sagrados os passeios à
mina d’água, a travessia do Marmelada, as caminhadas poeirentas até a porteira.
Eu não tinha muita habilidade com os animais, tinha medo deles ao contrário. Um
dia, estávamos catando macaúbas pelos pastos; éramos quatro meninas. As vacas
foram soltas do curral depois da ordenha e, acho que porque estávamos fazendo
muita algazarra, uma delas veio bufando diretamente pra nós. Foi aquela cena de
“salve-se quem puder!” voou menina pelo pasto todo e me sobrou o rumo da cerca
do terreiro. De madeira, em ripas sobrepostas, a cerca deveria ter umas cinco
tábuas que galguei usando apenas os pés. Como um trapezista, acho que minhas
mãos estavam ocupadas com os cocos ou o vestido porque não lembro de usá-las
para me segurar enquanto escalava as tábuas e pulava, segura, do outro lado. A
vaca ficou lá decepcionada, sozinha, olhando pra mim. Logo depois, as meninas
se reuniram, tremendo que nem varas verdes, embaixo do mesmo pé de manga da
porta da cozinha. Lembranças que contei, rindo, pro tio nesse domingo
entardecente.
Voltando pra cidade logo depois, cada passo
que dei rumo à saída foi saboreado; não havia o que lamentar, descobri, eu
estava ali, e meu passado junto; ainda me voltei umas duas vezes olhando a casa
e o quintal de longe. O que havia de mais novo era um cimentado ao redor do pé
de manga, mas tiveram o cuidado de deixar os balanços, agora um pouquinho mais
modernos, pendurados nos galhos antigos. Ah! Esse está lá, murmurava baixinho
enquanto me prometia fazer mudas de suas sementes quando as mangas estivessem
maduras... já estava escuro quando abri a porteira do alto; essa diferente,
amarrada com uma corda de modelo que não existia naquele tempo. Meu irmão
encostou o carro para que as visitas passassem na frente.
Se aproximam as chuvas, mas ainda não
chegaram de verdade, então, há poeira ainda. Foi gentileza dele já que o jipe
iria levantar uma nuvem suja por cima do carro menor. A mesma estrada, penso, a
mesma curva para a esquerda e daríamos na cidade... Engraçado como me lembro
dos limites: à esquerda o caminho era conhecido, à direita, entretanto, não me
atrevia a imaginar aonde ia dar; infinita incógnita; aterrorizante caminho
estranho, e sobre o qual jamais perguntei coisa alguma.
Agora é que me bate essa reflexão: aonde esse
caminho me levaria se tivesse seguido por ele? Bem, acabou-se o tempo de
aventurar a descobrir caminhos ainda que esse que tomo agora parece menor, mais
estreito do que me lembro. Antigamente o matagal se fechava no alto das
passagens dando calafrios nas espinhas infantis.
Ah! Isso, no fundo, não importa. O que importa é que o caminho que escolher, de agora em diante, seja aquele que me levará aonde quero ir; fui pensando pela estrada afora enquanto ainda sentia na boca a doçura das jabuticabas.
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