terça-feira, 26 de julho de 2022

ROMANCE

Inebriada pela música destilando notas de pianos, resolvo abrir as grades de uma das janelas. Espreito com cuidado a cena que entrevejo meio na penumbra: árvores ao longe, uma espetacular mangueira irrompe ao fundo carregada de flores, espatódeas, abacateiros, figueiras desenham o horizonte do meu primeiro olhar. Está tudo tão quieto que crio coragem e escancaro as persianas. Estico o pescoço pra direita, depois para a esquerda: telhados, tantas cores, paredões ou casas simples misturadas às sofisticadas com cara de arquitetos modernos. De novo a democraticidade do lugar permite esse convívio espontâneo. 

Silêncio. A rua todos os dias barulhenta não tem, nesse momento, nem latidos. Ouvi andorinhas, piados que desapareceram na imensidão rapidamente. Ergo os olhos para o alto, talvez conduzida pelas notas mágicas, num desejo irrefreável de oração. Domingo, poderia ir a missa, sim, poderia.

Um carro avança devagar pela direita, passa rateando pela minha janela, segue seu rumo ruminando talvez pesares. Volto a olhar o céu claro da manhã azul de infinito com traços raros de nuvens brancas. Essas, talvez nem naturais já que os caças já rasgam os céus em treinamento para o setembro que deve chegar logo.

Fico quieta apreciando o sossego deixando a música celestial me envolver ternamente. Quero chorar? Tudo tao maravilhoso!

Uma folha se arrasta pelo asfalto possivelmente se despedaçando levada pelos ventos de agosto que não esperaram seu tempo. Assim é tudo no universo: todos os seus fenômenos vão acontecendo sem pedir licença. Rio comigo: pedir licença a quem, aliás?

Universo, tempo presente, tempo incerto de futuro, imensidão; aqui, quietude, tanta, eis que é manhã ensolarada de domingo invernal. Tantos milagres; definitivamente pega muito bem uma oração num dia como esse. E de joelhos.

 

DA PERDA

Nossa razão sabe que acontecerá, em um dia, ou dois, ou muitos dias à frente de nossas vidas. Um objeto útil  que se perde irrita pelo trabalho que dá repor; e objetos, em geral, é possível substituir. O casaco preferido, o brinco que ficou um: perder coisas é comum, pequenas ou grandes, as chaves, o lenço, o celular. Perder o caminho da festa, o endereço onde há muito não se ia, perder a estação correta para plantar sementes de certa flor, perder a vista sobre montes mágicos, perder  o tempo de colher, perde-se de tudo todo tempo. 

É natural irmos deixando coisas pelo caminho, e o que ainda levamos em nossa bagagem vai nos fortalecendo para a viagem, na maioria das vezes, nos deixando mais leves para apreciarmos a jornada.

Se aprendemos que a perda pode significar a chance de conhecer outras paisagens, sentir amores mais plenos, a perda é essencial para a evolução de nossas almas. 

Da perda de pessoas amadas, entretanto, essa compõe cicatrizes indeléveis que nos entristecerá mais profundamente e para sempre. Mesmo que não choremos em prantos soluçantes, a perda de pessoas que fizeram parte de nossas vidas até o café da manhã de ontem não tem conforto verdadeiro. o que fazemos é seguir com o riso no rosto e o corte no peito. Essa perda fará parte do resto do caminho e o lamento mais profundo deve acontecer somente depois que o coração aceitar. a lágrima pura poderá lavar o machucado, mas não retirará a ferida do lugar.

Perder quem amamos é a mais cruel das naturalidades nesse universo: seremos, para sempre, menos felizes.


 INVERNO

No meu tempo de menina pequena passeando na roça, me lembro como era difícil a jardineira subir e descer colinas pelas estradas vermelhas barrentas; mesmo assim, depois de apear da condução, tínhamos que caminhar alguns quilômetros até chegar ao destino, à impecável sede da fazenda de meu avô paterno. No tempo do “inverno” quem ia chapinhava os calçados no barro misturado a estrumes. Essa caminhada, às vezes debaixo de chuva, era uma das minhas alegrias; gostava de ir catando muricis, cagaitas e arrancando hastes de capim pra cheirar a seiva fresca. E era morro abaixo até quase na porteira do quintal, desse jeito, não me lembro de canseiras.

De um desses “invernos” me lembro mais por causa da enchente borbulhante que cobria a ponte que dava acesso aos pastos ao redor da casa. Área plana depois de ladeiras, ali meu avô cultivava arroz e enchia as tulhas no porão. Fartura, farturão, como ele dizia orgulhoso. Bem, num desses “invernos”, o ribeirão da divisa transbordou por muitas léguas lavando capinzais, pomares, arrozais e tudo que achava pelo caminho. Foi a primeira vez que tive noção do que era mar. Tínhamos acabado de descer uma colina mais íngreme e ao virar um curva com barranco, demos de cara com o aguaceiro. Me assustei, mas não me lembro de ver se mamãe se assustou. Se foi assim ela disfarçou bem. Acostumada com boi bravo, cobras, galinhas chocas e gente de todo tipo, mamãe não pareceu estar com medo da água de barro que encobria a ponte e parte da porteira do outro lado. Determinada, me lembro que parecia, ela arrancou um ramo grosso de assa-peixe e desceu devagar tateando o caminho submerso. Dava um passo à frente, tateava de novo, outro passo, outra tentativa. Assim foi avançando pra corredeira do meio do redemoinho. Foi então que comecei a gritar de longe, da margem segura, em pé no seco. “Vai não, mamãe, a enchente vai te levar! '' Quando ela achou que eu estava exagerando na gritaria, me deu uma bronca: ”Tem dó, menina, você acha que uma aguinha dessas vai me impedir de chegar em casa?” E voltou pra me buscar. Puxada pelo braço com firmeza, fui seguindo atrás da mulher intrépida medindo a altura da água com um ramo torto até alcançarmos a porteira do outro lado. A água era tanta que não conseguimos abrir a taramela, foi preciso subirmos as ripas e pularmos a cerca. Pouco mais à frente já conseguimos ver o capim debaixo da água e estávamos em segurança pra seguir o traçado da estrada de pedregulhos sob os nossos pes; Estamos salvas, pensava eu aliviada até alcançarmos o chão batido do quintal do casarão.  

Memórias eternas, essas, que esse tempo de verdadeiro inverno traz nítidas em noites cismarentas. O inverno que sei hoje é esse de frio e poeira e não aquele do meu avô que chamava assim os dias de chuvaréu.

Inverno. Sei o que é. mas não o prefiro, respeito sim, em todas as suas cores e dores, mas não digo que gosto, tolero. Porque quando termina o Inverno, irremediavelmente, inexoravelmente, começa a Primavera.


segunda-feira, 16 de maio de 2022

DETALHE ENCANTADOR

Nesse ano, 2022, comemoramos o dia das mães muitas vezes. Começou com o almoço com a Clara que durou a tarde toda de sábado: o menu? Sushi, evidentemente; ela iria viajar na manhã seguinte cedinho. À noite, eu e mais duas amigas, fomos jantar no Verona, o restaurante que tem a fonte do amor eterno de Romeu e Julieta, ouvindo a Amanda. Alegria em penca até aqui.

O domingo começou ao amanhecer, claro, não poderia ser de outro jeito, mas para mim foi de jeito diferente: levei a Clara ao aeroporto de madrugada, quase, para ela curtir praia ainda de manhã que o tempo urge. Em casa de volta, cuidei do cachorro, joguei estapafurdiamente água num vaso ou outro de plantas, daquelas que não tem água que chegue, tomei banho e me vesti de domingo,

Amanda me pegou pelas 8 horas e partimos pro Café do Fred, Meet and Coffee, onde Amanda se apresentaria de novo. Ah, imagina a delícia de um cappuccino com quiche sob sombra de esplendorosas sibipirunas! E ouvindo a voz  doce de minha cantora predileta.

Bem ali, andando sobre folhas e gravetos foi  que fiz a vídeo-chamada para minha primogênita que mora no lado frio do Brasil. Mesmo que o dia já tivesse acontecido em boa parte ela ainda estava na cama. Se levantou sacudindo os cachos e fez um tour pela casa nova. Vida nova, minha Carolina, que seja muito melhor do que imaginou porque você batalhou empunhando espadas, digo, canetas e livros, para viver essa vida que escolheu. Lágrimas? Jorrando de contentamento, as minhas. Alegria em penca continuando.

A manhã já ameaçava virar tarde quando juntamos os equipamentos, Amanda, Danilo, o namorado e eu, e partimos para o Meliá 21. Outra apresentação, e eu, junto. Nem preciso falar do lugar, todo mundo sabe o que é um Meliá, mas o que me deixou maravilhada foi ver que o terraço onde ficamos dava de cara para o céu de Brasília, incomparável esplendor com nuvens brancas, juro que vi um coelho, espalhadas em fundo azul infinito. 

Quando Amanda começou a cantar, e o Beto na guitarra, hóspedes vieram cumprimentar, elogiaram muito; havia conhecidos comemorando a data e fomos apresentados a pais, mães, avós, filhos: alegria e carinho, muito disso.

Enquanto durou o show, andei pelo terraço, visitei a horta de manjericão, hortelã, pimentas, alecrim. Chequei o buffet que iríamos almoçar juntos depois e finalmente me sentei sob a sombra do pergolado esperando, e apreciando. Foi aí que um garçom botou uma taça, dessas esguias de cabo longo, borbulhando de champanhe rosé na minha frente. Olhei sem dizer nada, muda da surpresa,  e ele foi embora sem dizer nada. Uai, menino, peguei a taça e beberiquei o conteúdo pouco a pouco até não sobrar única gota.

Mais tarde, ao final do show, os frequentadores do restaurante vieram cumprimentar e se despedir dos músicos. Foi quando um homem simpático me disse: "mãe que acompanha a filha talentosa pra comemorar o dia especial merece celebrar com champanhe.”  “Obrigada.” foi tudo o que me coube dizer. Tim, tim!

Brasília, DF, maio de 2022.