quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

UMA ORAÇÃO AO INFINITO

Poderes todos de alegria, felicidade, contentamento, hoje vim lhes pedir algo muito especial: levem ao meu filho mais velho, ao meu primogênito amado, o meu espírito de bonança e paz. Que todas as formas de comunicação existentes entre os mundos, conhecidos ou desconhecidos, possam transportar meu carinho e que ele sinta esse carinho enternecido porque não sei como levá-lo até onde ele está.
Ele está muito longe de mim hoje, que é seu dia de aniversário; nesse dia que, há muitos anos atrás, foi para mim, o escancarar da felicidade mais sublime: me tornei mãe. A mãe inexperiente, desinformada e tola que não sabia existir tamanha alegria até que um choro de neném invadiu o espaço e fez badalar como um sino aquele jovem coração.
De parto, não tinha nenhuma informação. Fui descobrindo o que tinha para descobrir a cada novo estremecimento e as colegas da enfermaria é que me foram dizendo “faça isso, não faça” até que a faxineira achou que eu estava na hora de ser atendida, de verdade, e chamou as enfermeiras. Eram tempos difíceis aqueles, mais difíceis dos que os que ainda passaríamos juntos; só não tão difíceis quanto os que passo separada dele.
Foi escolha dele, preferiu assim. E são outros tantos anos longe, nos falando socialmente, superficialmente, porque o mundo que ele decidiu ter não permite que eu faça parte, não mais. Não posso atravessar o espectral limite que ele impôs e aí não tenho como dizer a saudade cotidiana e cortante que faz parte de todos os segundos de minha vida. Calar eu calo, a voz, mas meu coração explode de saudade; calo os sons externos mas internamente as vibrações se misturam, se emaranham e formam dolorosa ciranda. Calo, não digo, nem poderia já que não conheço palavras tão extensas, mas meu olhar me trai e busca o infinito inexpugnável e ininteligível na esperança de ver uma certa forma humana caminhar em minha direção.
Nunca pude vislumbrar, tamanha a minha ignorância, que a vida pudesse ser tão friamente cruel. Aquela pobre garota não merecia esse castigo: o castigo de viver longe de quem tanto ama. Penso nisso muitas vezes: meu crime foi amar exageradamente, escancaradamente, tanto que dava falatório eu vigiar tanto os meus pequenos; sou tida como exagerada e dramática, e mãe.
Confesso: o amor que sinto está além desse espaço mesquinho da vida terrena, e, por meus filhos, daria a minha vida. Com o meu filho mais velho então como poderia ser diferente? Eu não precisava falar, ele sabia o que vinha no meu coração. Bastava ele olhar no meu rosto para traduzir meus sentimentos. Quanto a mim, não precisava estar perto para saber dele, eu apenas sabia. Mesmo porque não nos separávamos quase nunca. E ele era brilhante: notas altas, responsável, inteligente, espírito brincalhão. Me dava conselhos, me acalmava em dias de desespero, abraçava, beijava com amor tão fundo; era amigo.
De repente, o dia escureceu. Seu riso aberto, mostrando os dentes grandes, foi guardado. Suas mãos lindas que, ao piano, tocavam “Imagine” vezes sem conta para mim paralisaram. Seu coração endureceu e seu cérebro se recusou a continuar. Não posso explicar como, não sei onde errei, não sei o começo: tenho apenas perguntas. As respostas não me alcançaram ainda, mesmo agora, mesmo depois que continuo vivendo sem ele e depois de tantos anos tentando evoluir minha capacidade de entendimento para desvendar esse mistério. Queria muito isso, mas a sabedoria humana ainda não chegou a esse ponto, muito menos eu. E mesmo que tenha abandonado todas as convenções, modelos e padrões limitantes, ainda busco entender.
E hoje, especialmente hoje, em que a aurora do dia me viu já desperta, que confirmo na tela do computador a data, ainda faço perguntas. Hoje, mais do que sempre, pergunto: “será que meu filho sabe o quanto o amo”? Outra: “como posso fazê-lo sentir esse carinho”? e outras tantas mais nesse dia de aniversário dele. Um número grande de anos, tantos que ele poderia já ser pai. Poderia ser um empresário, um empregado público, um pequeno chacareiro. Poderia ter uma mulher gentil que o amasse, que o cuidasse; poderia ter a alegria de viver tudo o que a vida tem a oferecer... poderia.
Só que ele não vive. Em algum ponto do passado, seu espírito se apartou do corpo e sua luz se extinguiu. A doença que o alcançou não tem volta e a sua alma também se distancia, dia a dia. Com ela vão-se as lembranças de nossos tempos juntos, o nosso amor e a nossa alegria de viver. Éramos, todos nós, quase crianças, e descobríamos juntos cada segredo; vivíamos, juntos, cada aventura. Não é mais assim.
Ele vive longe a vida que achou melhor; e hoje sua capacidade reflexiva não tem mais força para trazê-lo de volta. Ele segue as vontades de quem está por perto. E quem está perto não faz questão de manter viva a minha imagem para ele. Sinto, todos os dias sinto, o nosso amor especial, se dissolver no tempo; tanto mais dói quanto mais em silêncio o coração chora.
O que me resta agora é pedir perdão. “Perdão, filho tão amado, pelo que quer que eu tenha feito que o tenha aprisionado nesse lindo corpo. Perdão por não vê-lo de mãos dadas com uma mulher, sorrindo para mim, ao se distanciar pela alameda de um jardim em tarde ensolarada. Perdão porque minha esperança de vê-lo voltar para a nossa casa se esmaece em cada dia de ausência. Perdão por ainda guardar seus livros, seus discos de vinil, seu caderno rabiscado, seu chinelo torto, sua camiseta predileta. Perdão por ainda ser a mãe tola de tantos anos atrás que sonha um futuro de felicidade para o filho primeiro. Perdão por temer tocar na teia frágil de sua vida e atrapalhar mais ainda.
Sim, tenho tanto medo de magoá-lo que recuo para além de sua visão, escondo meu rosto na distância e minha voz não clama mais seu nome. Mesmo assim, chega outro aniversário seu. Vou lhe telefonar e dizer: “Oi, filho, parabéns para você!” e você vai responder: “Obrigado”. Vou insistir: “O que você vai fazer para comemorar?” E você: “Nada.” E eu, tentando esticar a conversa para continuar a ouvir a sua preciosa voz: “Vai comer algo especial?” Sua resposta: “Não sei.” Ainda eu: “Vai passear?” Você diria: “Acho que não”. Com o coração em retirada, pergunto teimosa: “Está tudo bem com você?” E você vai responder: “Tudo.” Ainda: “Tem chance de você vir por aqui em breve?” Você diria simplesmente: “Não.” Então, faço um discurso para você me ouvir já que o júbilo de ouvir você não demoraria a se encerrar. “Bem, liguei para saber se estava tudo certo com você, se está bem de saúde, se divertindo. Então, tudo de bom, que seu dia de aniversário seja lindo. Te amo, viu? Beijos; feliz aniversário!!” E você: “Obrigado.” – “Tiau, filho” – “Tiau”.
E nem “Mãe” eu ouviria; se é essa a sua vontade, que "assim seja".

Magda R M de Castro
Abaeté, MG, 10 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

MANIA DE FAZER PERGUNTAS

Dia de domingo, começo de tarde, calor; um mau gosto em tudo, nada servia. Assim, quando a música começou estridente, do outro lado da rua, atrás dos muros da Vila Vicentina, o jeito foi tomar um banho caprichado, botar um perfume e pegar um trocado emprestado com a Mamãe – o salário estava atrasado – e me juntar ao barulho.
Não foi fácil me colocar na porta de saída, abrir o portão, dar cinco passos até a calçada em frente, caminhar mais um pouco, entrar pela portaria pagando cinco reais e levar um carimbo fosforescente no pulso; mas entrei. Havia dito a minha mãe que estava constrangida de ir sozinha, mas ela me animou: “as pessoas são todas simples”. Assim, mesmo em dúvida, fui e logo no começo encontrei pessoas sorridentes me dando boa noite; já estava bom.
Uma vez dentro dos muros do asilo, fui seguindo o primeiro corredor na direção da música e cumprimentando as pessoas com necessidades especiais sentadas às portas de seus cubículos, ao longo do piso vermelho, muito limpo. Limpas também estavam as mesas e cadeiras brancas que salpicavam, como neve, o espaço ao ar livre. O lugar da dança não poderia ser mais simples: um cimentado debaixo de centenário pé de manga.
Um dos pavilhões é composto por casinhas iguais, uma em seguida à outra; o pavilhão da frente, que dá para a rua de entrada, é formado de casas de modelos diferentes. A um canto do pátio onde aconteceria a festa, as barraquinhas de bebidas e as de caldo de mandioca estavam juntas; o palco tinha sido improvisado na carroceria de um pequeno caminhão, mas o som já balançava os galhos empencados de flores. Era começo de final de inverno e o calor já se preparava para entrar em cena.
Quando cheguei, a música era eletrônica, mas depois dois cantores subiram à carroceria e as pessoas começaram a se aproximar. As mesas foram sendo puxadas daqui e dali, casais começaram a circular de mãos dadas, rapazes carregando cerveja; e então, a festa se fez.
Da mesa que escolhi, nem longe nem perto da pista, pude observar os casais dançando: a maioria era de meia-idade, muitos homens de cabelos brancos, muitas senhoras já rechonchudas, “dois prá lá, dois prá cá”. Algumas músicas depois, algumas curiosidades, duas idas às barraquinhas para comprar guaraná e comecei a sentir frio; a razão era o vestido muito leve, de costas nuas; e a quietude. Se estivesse dançando, a coisa poderia estar diferente, mas não aconteceu. Por que? Nem me perco em pensamentos para descobrir; ainda era cedo, me respondi quando pensei em ir embora; a música não me deixaria dormir, de qualquer jeito e a irritação iria aumentar: “não, é melhor ficar mais um pouco”.
Me levantei e fui em direção à dupla de cantores, do outro lado do pé de manga. O calçamento grosseiro e o tamanco de solado redondo me fazia cambalear como se fosse uma canoa ao mar, então, parei à meia distância, em pé, ao lado de bancos de cimento; um estava cheio de homens sentados no encosto.
Um deles me perguntou se eu dançava. Respondi que “arranhava de vez em quando”, coisa mais tola e lá fui eu enlaçada por um braço moreno e sentindo o hálito da latinha de cerveja que ficou no banco. A cerveja estava quente, o moço disse; “o guaraná, não”; o assunto da hora.
De alguma forma, deixei espaço para o moço confessar sua vida depois que perguntou meu nome e respondi o verdadeiro. Falou que era solteiro com quase 40 anos; e depois de duas danças eu já tinha entendido que a culpa era das mulheres. Eu não estava muito inspirada, talvez resto da irritação de mais cedo, e estava com preguiça de raciocinar qualquer coisa mais criativa. Respondi apenas: “você é carinhoso? As mulheres gostam de carinho...” Mais tarde pensei que eu já estava bem crescidinha para andar por aí generalizando minhas concepções: o mundo já não é o mesmo de quando era adolescente.
Por falar em adolescência, assim que vi que a dança não evoluía para o lado que eu assinalava, pedi para parar com a desculpa de ir ao banheiro, agradeci muito e etc. e tal. Ai! Que original eu sou! Bem, mas foi aí que, voltando do banheiro, parei no limite entre a penumbra e as luzes do palco, observando a festa. Foi quando um conhecido de infância, mais de meus irmãos, vizinho de outros tempos, falou comigo de longe. Ah! Cabelos brancos, interessante, pensei antes de reconhecer o rosto conhecido.
Pois é! O rapaz se acercou como se jamais tivéssemos nos afastado e a conversa pareceu começar de onde tinha terminado ontem. No entanto, algumas décadas separavam o último encontro, casual geralmente, na passagem da rua em comum, e o daquele domingo à noite.
Naturalmente, começamos a falar de tudo: da família crescida, do trabalho que finda, a aposentadoria que chega breve, dos sonhos ainda a realizar. Tudo a ver, tudo em comum, parecíamos cópia um do outro; e até conseguimos dançar depois que tirei os tamancos com sola de canoa – sugestão do homem de cabelos brancos com o qual convivi com os cabelos escuros. Juro que me lembrei dele, como antigamente, somente nos primeiros momentos. Depois das confidências nossos mundos pareciam ter se fundido e começamos a nos divertir de verdade.
Ah, “amenidades” foi o assunto que ele pos no e-mail de algumas horas depois, bem, mas deixe-me contar a melhor coisa.
Sei que depois de já estar dançando – desenvoltamente – há algumas horas de pé no chão, já sabíamos tudo o que cada um foi e o que ainda queria ser: muitas coincidências. Eu ria amparada pelo braço ao meu redor e confesso, não contei a ninguém o tamanho daquele gosto para mim; mesmo descobrindo mais tarde, que ele ainda, notem, que ele, ainda, estava casado.
Então, o assunto passou para relacionamentos. Ele perguntou por que eu estava sozinha; comecei a contar a minha história rapidamente porque ela já estava me cansando; o que não evitou que meus olhos se inchassem de lágrimas e eu começasse a fungar muito perto do ouvido do rapaz, até que ele mesmo pediu para eu não chorar. Me recusei a chorar, como já vinha me policiando há algum tempo e, droga, não faria isso, de novo, naquele lugar, e com aquela pessoa.
Acho que esse vexame dei nem por sofrer tanto, mais não, mas pelo que ele me disse quando contei parte do desfecho da minha linda história de amor. Fui sincera contando que amava, com loucura, o homem com quem vivia, mas que não pude mais continuar porque tinha vergonha do que eu tinha me tornado ao lado dele. Foi forte dizer isso, talvez a confiança que senti nele me provocou essa confissão; e mais ainda quando ele me disse: “Caramba! Você gostava mesmo desse homem! E sabe, eu iria ao fim do mundo por uma mulher que me amasse tanto assim!” Foi aqui que as lágrimas abriram caminho por meus olhos até razoavelmente conformados: “que desperdício, né não?” só mesmo fazendo piada para conseguir driblar a emoção.
O momento de confissões não tinha acabado porque, para superar o que sentia, e o que concordo plenamente ser totalmente inadequado, resolvi virar o foco. Perguntei: “Por que vocês homens têm essa mania de deixar as mulheres que os ajudaram a crescer, com as quais construíram histórias fantásticas, que ainda são relativamente atraentes, por outras, geralmente muito mais jovens?”
Ele não pediu que eu repetisse a pergunta: “Você foi sincera comigo e vou ser sincero com você: a maioria dos homens que deixam a esposa por outra mulher pode ser porque teve uma oportunidade, uma chance de viver algo novo; mas se isso não acontecer, sinceramente, está bom de qualquer jeito, com outra mulher é bom, com a nossa mulher também é bom...” Foi surpresa: não foi um discurso machista de alguém que quisesse se mostrar, não foi exibicionismo, apenas a mais cristalina prova de que um relacionamento é algo muito frágil, um barco ao sabor dos ventos.
Ele ainda não havia terminado. Esperou que eu engolisse aquela resposta, que a digerisse e aceitasse: “Outra coisa: considero o meu casamento um bom casamento, mas, se minha mulher me dissesse agora, nesse momento, que eu deveria ir embora, assim como você fez com seu companheiro, não esperaria um segundo. Sairia porta afora, correndo!”
Pois é, talvez seja a rotina, essa eterna desculpa para o casamento que se transformou em “amenidades”, que leva os casais que viverem juntos por mais de vinte, trinta anos, a saírem deixando rastros por toda parte; ou pode ser outra "costumeira" desculpa: incompatibilidade de gêneros. Nossa, essa é mesmo eterna.
Eu acredito ser os sonhos: os diferentes que se desenham ao longo dos anos: ninguém sonha o mesmo sonho junto para sempre: há uma variação que pode ir se alargando pelos anos a fio e um dia você se descobre longe, tão longe do outro, que não dá nem para ouvir o eco. Dá medo isso: essa fatalidade, essa inexorabilidade, essa insustentabilidade do amor, como se ele não fosse suficiente.
Talvez não seja... e talvez por isso a minha resposta ao e-mail do meu mais recente amigo tenha sido: “que bom que a viagem de volta para sua família foi boa...” dava prá ser diferente? Não mesmo, por melhor que tenha sido a noite, por mais “ameno” tenha sido o diálogo, por mais sinceras tenham sido as confissões, não quis "dar pano prá manga". É que depois fiquei com medo de estar parecendo uma “oportunidade”.
Além do que, se aprende sem parar; e a lição dessa noite é que ando com uma mania terrível de fazer perguntas, preciso tomar cuidado: as respostas podem ser muito comprometedoras.

Por
Magda R M de Castro
Abaeté, Minas Gerais, 24 de setembro de 2009.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

FANTASIA

Nem havia começado a viagem e ele já tinha se feito notar. Não um notar de espanto, de súbita consciência de sua presença ou da clara informação de que estava ali; não assim. Ela o notou, não no momento: só mais tarde é que percebeu que o havia notado ali, sentado num dos bancos de cimento. É que ela estava a caminho de comprar uma lata de refrigerante e, como se fosse rainha dando reles crédito a súdito insignificante, passou perto de onde ele, e mais outros três, parece, estavam sentados “vendo o bonde passar”, e cumprimentou sem olhar diretamente nos rostos; havia penumbra. Ela queria uma cerveja, mas achou que se exporia demasiadamente na cidade pequena, sozinha, de viagem, e beberia sozinha também. Não, o refrigerante cairia melhor, muito melhor.
O dia tinha sido de pesado trabalho, muito calor e sede implacável. Água não fazia mais efeito, as pernas viraram balão e apenas caminhava por teimosia: os pés dentro do tênis macio latejavam; mas, “descanso durante a longa viagem". Até lá, nos últimos minutos antes da partida, avisou ao motorista que voltaria rapidamente, que não partisse; “volto logo”.
Foi quase chegando à porta do bar de bancos altos em frente a balcão comprido, que ela o viu; mas não viu de verdade. Sentiu; a observavam, muitos olhos, então, para não tropeçar na própria sombra, deu boa noite. Jogou o boa noite pelo cimentado do chão com o propósito de que o cumprimento, era muito educada, os alcançasse. Nem fazia questão de que respondessem, já havia passado por isso antes, mas faria a parte dela e que aproveitassem se quisessem. Responderam, todos eles e talvez por isso, quando voltou, passou calada. Perdeu a fala, parece. Mesmo porque quem estava ali não correria o risco de se sentar ao lado dela no ônibus: estavam longe do carro já funcionando; provavelmente ninguém ali iria embarcar. E ela já tinha sido benevolente ao extremo de dar boa noite; cumpriu, portanto, sua obrigação.
Estava enganada: ele entrou no último instante; depois até do motorista. Trazia uma mala presa ao corpo e só, nada mais. Os cabelos pareciam ralos na frente, talvez tingidos de antigamente, já deixando transparecer brancos. Nada disso era certo; ela não o encararia; estava com medo de alguma coisa. Não poderia explicar, eram instintos, apenas.
Ela se sentou perto de uma senhora que conhecera em outra viagem. Se reconheceram, lembraram os nomes de cada uma e a conversa se atrelou a assuntos tão diferentes quanto a capital para onde estavam indo, o cultivo de minhocas, mudas de flores, filhos, e a impressionante coincidência das duas mulheres quererem estar em dois lugares ao mesmo tempo. “Quando estou lá quero ficar, mas preciso voltar; quando estou aqui, não quero ir, mas tenho que ir”; isso, na primeira parte da viagem, que durou cerca de meia hora.
Numa cidade próxima teriam que embarcar noutro coletivo: esse vindo de muito longe; antes, esperariam na plataforma ventanosa e solitária. Sendo, portanto, meia dúzia de desenganados viajantes, e o espaço de descanso exíguo, as conversas foram se misturando até que alguém chamou a atenção dela: “Estou ouvindo a conversa e vi que você é irmã de conhecidos, fulanos de tal; é verdade?” “Oh” que interessante! Alguém se acerca, sabe quem sou eu...”, pensa a palradora... Dá ao moço o benefício de sua atenção e responde com outra informação: “É verdade, sou sim. E você é o vizinho que bebe da mesma água que meu irmão, não é? Aquela cacimba é antiga, muita gente fala nela.” – “Isso mesmo. Vocês já mandaram analisar aquela água? Deve ter um 70 de pH.” – “É pura mesmo, não é?” – “Sim, parece que tem gosto próprio.” – “É doce...” ela confessa público segredo: os planos de construir naquela serra especial, um chalé...
Ele, o quarto personagem entra na conversa: “Toma muito cuidado que lá tem onça à beça...”. Homem falante 1: “Ainda tem? Já acabaram todas, não?” – Mulher menos falante: “Cruz credo! Onça não...” Ela: “Pode ser, dias atrás pulou uma no capô do carro de um dos meus irmãos; parda, balançando a barrigona; deu dois pulos e estava do outro lado, no mato”. – “Acho...”, pensa, não foi em um lugar mais longe? Ah, que importa, serve para manter a conversa animada.
“E cascavel também; tem muita cobra naquela serra.” Trovejou o quarto personagem, ele – Foi a vez da tagarela, ela, se assustar: “Muita, é?” – “Demais...” Ela pensa na última vez que tinha subido a serra: correu de canto a outro de um espigão varrido pelo vento por séculos seguidos. Nem uma árvore dali contaria qualquer história: não existiam. Só capim baixo, tombado, como se tivesse sido penteado cuidadosamente...
“Nossa, poderia ter sido picada naquele dia”, pensa ela. Não diz por que seria íntimo demais. Ele continua: “você quer vender sua parte lá em cima? Preciso de terras para reserva; lá em casa são oito irmãos e ninguém tem reserva. Sabe como é, né, desmata-se até na beira do rio...” – “Criam gado...” ela pondera. Ele consente e arremata: me vende que depois você pode continuar lá e fazer o que quiser. Só não pode desmatar”. – “Já disse que não tem árvore lá, moço!” – a mulher meio calada avisa: “ela quer é plantar...” Isso! E quem sabe montar um hotel de ecoturismo; daqueles, por exemplo, para quem gosta de silêncio ou de ouvir passarinho. Tem gente de todo jeito, gosto para qualquer coisa; fazer lá no alto, com a vista que aquilo tem, um lugar gostoso para descansar seria ótimo. Falta grana, mas quem sabe o dia de amanhã?
“Não investe nada lá não. Fazenda não dá dinheiro”. – “Não é só dinheiro que procuro”; ela lembra que quase todo mundo fala isso. "será que só o que importa é ter dinheiro?" Ela tem ganas de desafiar essa lei "geral". Pensa: "Gente, é só um sonho; deixa eu sonhar!" e quem sabe o dia de amanhã? Foi pensando nisso que agradeceu a oferta do moço do cabelo indefinido que entrou no ônibus sem mostrar que ia entrar. “Sei não, tem cada coisa nesse mundo!!”. Ela se afastou, quieta, tinha o que pensar, levou um susto ao receber a brusca oferta. O dinheiro ajudaria em tanta coisa... Não, não poderia abrir mão daquele sonho: o tinha há tanto tempo. O que faria depois, sem ele?
Por via das dúvidas, ela ofereceu, a ele, um cartão. Vendo a profissão, perguntou se ela fazia projetos de instalação de hidrelétricas. Sem saber por que, ela confirmou sem hesitar; nunca fez um. É que nada a impede de contratar uma equipe de outros profissionais para fazerem isso; ela administrando tudo. Daí ele perguntou se ela sabia de pessoas que queriam vender hidrelétrica pequena, num certo Ribeirão, num certo lugar. Respondeu que não sabia, mas que poderia perguntar, tinha contatos na dita região. De raspão, ele fez uma promessa: “se me indicar um bom negócio, ganha um carro de presente”. Ela não acreditou no que ouvia. Estava com a sensação, há dias, de que em breve ganharia um carro, sim, quem sabe porque sentia aquilo? E essa proposta é séria? A quem realmente recorreria para ter informações do dito lugar? Já foi logo imaginando, ampliando a ilusão rasteira.
Ainda esticou a conversa contando iria "lá" no sábado, para uma festa e que especularia a respeito; portanto, precisava do telefone dele para fazer contato, caso conseguisse alguma coisa.
Depois de entrar no ônibus, a conversa foi interrompida: cada qual foi pr'um lado; só os dois homens conversaram ainda, por breves momentos, quase cochichando, mas também eles, como os demais passageiros, se abandonaram ao balanço monótono do veículo avançando rapidamente pela longa escuridão: por cerca de duas horas tudo ficou quieto. Na primeira parada, com caras já da sonolência avançada, ele e ela se encontraram no salão da lanchonete. Ele a olhou com um jeito maroto: “fulana, será que você se acostuma na cidade pequena de novo?” A resposta perfeita seria: “dependerá dos estímulos”, mas ela, talvez por cansaço, só sorriu para o rapaz desgrenhado; e se perguntou como é que um homem que conhecera há poucas horas, lhe fazia pergunta tão pessoal e ainda lhe dava conselhos? Ele tinha repetido: “Não investe em fazenda, não. Não dá dinheiro!”
Depois disso, ele saiu pela roleta da entrada e ela o seguiu, mas, instintivamente, o deixou se distanciar. Algo lhe dizia para manter espaço, deixar vazios entre ela e aquele homem: ele não era nada comum. Sabia seu primeiro nome; lhe bastava. O sobrenome poderia trazer um laço, quem sabe um parentesco, eram da mesma região, ao qual ela não estava tentada a se arriscar. Não, ela não se sentia muito segura com aquela intimidade; e ele desceria adiante, na próxima parada.
Foi o que se deu: telefones anotados, segredos repartidos, propostas insólitas, alguns quilômetros na mesma direção e a sensação indefinida em relação àquele personagem; tanto, mas nada evitou que ele descesse onde disse que desceria. Quando o veículo parou, com o motorista avisando apenas embarque e desembarque, ele se levantou.
Ela aceitaria com naturalidade se ele tivesse se esquecido dela e descesse do carro, em silêncio, discretamente, talvez tão furtivamente quanto havia entrado. Contrariando essa expectativa, entretanto, ele deu dois passos em direção à saída e de repente se voltou: olhou só na direção dela, parecia olhar tateando no escuro. A encontrou e acenou; um único aceno. Ela fez a mesma coisa, com a mão espalmada e imóvel; notou que mantinha o anel de prata enfeitando um dos dedos.
Tudo simples, automático, natural. Ele se foi como disse que ia; ela continuou viagem como disse que faria. Só os pensamentos que a seguiram pelo resto do percurso, e por muitos dias depois, a advertiram de que aquele homem estranho, mistura de atração e assombro poderia ter mudado sua vida para sempre. Sim, se tivesse aceitado vender sua propriedade, estaria embarcando para outras aventuras, nesse momento.
Não, obrigada, pensou ela. Não sabia o que fazer, o que lhe reservava o futuro, mas sabia que aquele sonho, por mais improvável que fosse sua realização, valia mais que qualquer dinheiro. Estava decidida quanto à não venda; só não estava decidida quanto à familiaridade com aquela figura noturna, íntima, tão assustadoramente próxima que fez parte de sua noite por algumas horas; e que esteve à beira de significar tantas diferentes realizações.
Ela, entretanto, era experiente: sabia que aquele rosto se esfumaçaria, se não no amanhecer que chegava, num outro qualquer no futuro. O resto da viagem, entretanto, foi gasto em reconstituir os diálogos, os olhares, os conselhos, a proposta, a promessa. Também foi assim pelos dias seguintes, mesmo ela estando distraída com tantos afazeres. E saber ser pura fantasia tudo que imaginara ser possível acontecer em relação àquela figura não a impediu de vigiar, na viagem de volta, com cuidado, tentando evitar que aflorasse uma réstia de esperança, os passageiros que entraram na parada onde ele desceu. Ele não apareceu, e as razões poderiam encher grosso relatório, ela sabia; mesmo assim, esperou, muito; e disso também ela sabia: esperaria em vão.

Por
Magda R M de Castro
Abaeté, Minas Gerais, 09 de setembro de 2009.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A MULHER QUE VIROU ÁRVORE

Tudo começou quando ela viu que sofria, além da conta, como se tivesse cortes profundos, quando viu aquela carreira de árvores de raízes para o ar, há uns anos. De dentro do ônibus que a levava para o trabalho viu, e sentiu, feridas se abrindo a cada uma das copas frondosas jogadas na terra solta, imóveis, mudas, mortas. Mudas, não; havia um gemido, outro, repetido; um no começo, depois tantos que ela tampou os ouvidos. Olhou ao redor, segurando a cabeça nas mãos, quase perguntou a alguém de onde vinha aquele barulho. Ninguém via a paisagem deprimente, não havia barulho a não ser o do motor do ônibus; daí descobriu que ela podia ouvir os murmúrios mudos das grandes árvores abatidas, jogadas ao chão como resultado de guerra sangrenta.
Guerra sim, injusta, covarde, porque é sabido que as árvores não usam espadas ou atiram balas de canhões. Definitivamente, elas não fazem isso. A qualidade das árvores, a maior, é dar frutos; e todas elas dão. Uma árvore torta, de folhas verde-escuras, casca-grossa, não poderia ser grande coisa... pensou um dia a mulher. Daí quando passou a ver de perto, viu que todas tinham, a modo próprio, suas flores: algumas tão pequenas, invisíveis, imperceptíveis. E se há flores, há frutos; se há fruto há amparo: há abrigo de beija-flor, há o mel da abelha pequenina, há a sombra para o bicho, o ar limpo para o alheio homem.
Que papel tem as árvores! Quão sagradas são em suas tantas qualidades e modelos! E quão caladas são que não dizem a quem as sangra o que poderiam fazer se vivessem. Sim, viver seria melhor do que virar cinza. É tão inútil descolorir suas majestosas ações; mas aquelas, vistas da estrada, não viveriam mais. Muitas delas, em fila, uma, duas, três, cem, duzentas. Não acabava aquela visão, não parava o murmúrio torturante: "Vuu! Vuu! Vuu!...” Seria elas mesmo? Ou seria o vento as tentando levantar? O companheiro fiel passaria ao largo agora, sem tocar as folhas altivas, sem espalhar os suaves perfumes, sem levar as doces sementes? Estaria o vento chorando pelas amigas derreadas? "Vuu! Vuu! Vuu!...”
Daquela tarde de terror, a mulher nunca se esqueceu. Descobriu que não poderia andar por muito mais tempo por aquele caminho: chorava por dentro, emudecia por fora, como as árvores, descobriu essa coincidência entre elas. Depois descobriu que a respiração se tornava difícil em certos lugares: onde não podia ver o céu. Ainda descobriu que também amava a terra, macia, fresca em colorações de arco-íris, e de onde poderia tirar também o próprio alimento. Então, viu que a cidade impermeabilizada a afastava de sua seiva; daí partiu para onde poderia botar os pés na terra e ao mesmo tempo ver o céu. E ainda queria mais: queria silêncio. Mais um arranjo teve que ser feito para que a mulher pudesse ficar com os pés – e mãos – na terra, para que pudesse ver sempre o céu; para que pudesse ouvir o silêncio.
E ainda queria: o vento, o barulho do vento, o frescor do vento, a liberdade do vento. Não para ser um, mas para senti-lo na pele, nos cabelos. Muitos ventos diferentes que a avisariam que amanheceu, que seria hora de se recolher ou hora de sair cantando sob o sol. Taí, outra coisa que a mulher queria.
O sol, trazendo o calor para seus pés frescos de terra; trazendo a energia para lhe dar forças para criar abrigos, sombra e alimento para tantos passarinhos, os próprios e os de quem mais quisesse, ou precisasse. Sim, sem o sol não poderia viver, nem um dia poderia ficar sem o seu abraço estimulante. Daí teve que fazer novos arranjos: para que pudesse tocar a terra, ver o céu, sentir o vento, ouvir o silêncio e roubar a energia do sol. Daí em diante essa mulher não poderia mais, não mais, viver diferente. Propôs diferentes contratos, fez outras viagens, escolheu outros caminhos: a levariam aonde, então, pudesse viver de acordo com suas novas funções.
E foi. Quando a primavera chegou, vieram as flores; e descobriu que tinham perfume, enlevante perfume; e pequeninas sementes, sutis, quase invisíveis; que cairiam na terra e gerariam mais "frutos". Estava completo agora, todo o seu ciclo de vida: voltara às raízes, às antigas, mesmo que trazendo outras, mas estava pronta. Pronta para cumprir a última parte de sua sagrada missão: a mulher estava, finalmente, onde podia repousar na terra, tocar o céu, ouvir o vento e sentir o silêncio. E através da terra, do céu, do vento e do silêncio ela se apoderou, para sempre, do sol eterno.

Por
Magda Regina Miranda de Castro
Abaeté, MG, 02 de setembro de 2009.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

UMA VIAGEM

Hoje cheguei de viagem muito cedinho: o dia já tinha raiado mas eu queria continuar de olhos fechados, embolada naquela poltrona de ônibus. Era um ônibus especial, fretado, para levar a banda à festa; e eu aproveitei a passagem mais em conta pra rever meu povo de longe... fui, voltei, e cansada da longa viagem queria apenas ficar ali, cochilando... acho que nem porque estava cansada realmente, talvez, porque o que queria mesmo era ter ficado lá.
E queria ter vindo para cá. Quanta coisa boa aqui: o sossego, o correr lento do relógio, a comidinha sempre igual, as campainhas caladas. E também queria ter ficado, as coisas boas de lá: os abraços, os risos, as conversas sem pressa, agora rumando para dias melhores, continuar já não é tão difícil. E como a boa a cama que me recebe, o armário que abro em busca de seus cheiros de roupa limpa e macia. A escova de dentes – que esqueci qual era minha. O mesmo pente marrom, alguém tirou meu desodorante do lugar; nossa, minhas roupas estão fora dos cabides.
Admiro a criação da caçula na caixa de papelão. Passeio os olhos pela mesa do ateliê em sua fartura de objetos coloridos... verifico os mesmos quadros; esses estão quietos no lugar. O terraço exibe uma pimenteira exuberante de flores brancas... peço para guardar as proteções plásticas das cadeiras, servirão no fim do ano.
Aliás, alguém reclamou de casa vazia. Não sinto mais essa pena, me parece conformei, acho pouco, não. Não me conformei, mas aprendi a gostar dos dias todos sejam eles iluminados ou não, calados ou não. É que pareço não ter tempo para reclamações agora. Não posso perder tempo de ser feliz, me recuso a gastá-lo em minúcias.
Fui por dois dias, para abraçar, ficar junto, ouvir vozes amadas, sorrir sorrisos sorridentes... não daria tempo de amargar, reclamar, rebelar. Das minúcias não me ocupei. Dos detalhes observei, meu neto está crescendo; meu filho mais centrado; e assim também a filha mais velha. Um sorriso desenhado teimosamente no rosto da caçula: ela se determinou a sorrir, mesmo se sangrar. Parece ter sido um pacto: nenhum mau gosto seria sentido nesses dois dias inteiros, exatos, um começando cedinho e o outro terminando ao pé da noite. Exatos momentos para tomar o café da manhã tantas vezes, chegando um chegando outro. Exatos para falar ao telefone o imprescindível. Exatos para combinar o almoço churrasco, tão raro, nem todo mundo aprecia em casa, mas foi tão bom reunir quatro de nós ao redor do carvão que se esmaecia e ainda saborear um vinho, uma cerveja, saborear, de estralar a língua, as companhias, falando de presentes, de planos, de apertos, de decisões, de amanhãs. Exatos momentos para abraçar, comer pipoca, tomar guaraná. Exatos momentos para falar de amor, fazer cafuné, esquecer qualquer dor; deixa essa prá depois. Exatos dois dias para mostrar, impossível, o amor imenso pela família linda que cresce, acrescenta, segue, se sustenta, mesmo com a mãe longe.
É que me deu na telha e nada consegui fazer para mudar esse chamado. Divino, instintivo, teimoso, o que seja, essa vontade de mudar de endereço foi mais que todos nós juntos. E mesmo que a alegria de viver, a razão de respirar esteja na cidade grande, eu precisava mudar; tinha que mudar. Por mim, pela minha lucidez claudicante ... e, sobretudo, por eles.
Me recusei a arriscar ficar frustrada, tive um medo abismal de me tornar uma mãe torta, meia mulher, meio gente. E mudei. Por dentro, por fora, o meu rosto agora com vestígios de amplidões, meu olhar com destino ao infinito, reflexo de uma alma em paz que pode circular pelas eiras e beiras desse meu lugar de menina. Vim, e me deparei com o passado transformado, apenas fios tênues que não têm como me magoar: não me dizem respeito. E por que não? Poderia alguém perguntar. Porque não têm a minha cara, o meu toque, o meu jeito. Recebo o que existe aqui com olhar benevolente, de visitante, por enquanto, certa de que tudo e todos que aqui estão também têm seus valores, suas angústias, suas montanhas para galgar. Daqui em diante, sim, aí posso fazer um canto, uma cidade, um mundo, o que seja, um novo lar com o que tenho agora, com o que trouxe na bagagem. Será como sonhei? Espero que muito além porque aqui descobri que até sonhar a gente pode, e muito.
Por outro lado, estava de volta, mas queria não ter voltado... É essa gangorra: vai, não vai; fica, não fica. Seria simples se todos viessem junto. Utopia. Então por que não ficou? Que pergunta boba. Agora é tarde, como é que posso deixar as sementes que joguei à terra? Quero ver se elas vingam, ora. E como vou deixar minha mãe só de novo? Ela pode ir junto com você. Ah, pode, claro que pode! Seria do gosto dela?
Está tão ruim assim? Não mesmo!! Está ótimo, o que tira o tempero é a saudade, a falta do convívio sem fim. Mas que tal pensar que afastar-se um pouco pode criar novas perspectivas para todos? Amadurecer um, sarar a raiva do outro, dar tempo de outro testar um pouco de liberdade. Sim, há muito o que aproveitar. Também nesse tempo, há o que aprender...
E esse mundo é tão encantadoramente vasto. E essa fase da vida dá a chance de fazer ainda tanta coisa; por mim e pelos que amo. Ah! Como é bom ter a chance de tentar, de sacudir a poeira, de recomeçar, de tentar vida nova... claro que é uma baita confusão: quero ficar, quero não ficar. O que mais quero é ficar onde? Nos dois lugares; talvez um terceiro ou quarto. Quantas sou? Uma? Mesmo? Que pena!
Então, eis-me de volta, no ônibus fretado, à pequena cidade. Cheguei cedinho, o dia escancarando um esplendoroso sol frio; o vento até que parado dessa vez. Novamente não havia táxis por perto. Uma colega de escola, recém-reconhecida na viagem, encarou a caminhada comigo. Fomos até o prédio dela, que me fez gravar o número do apartamento. Me fez também prometer que a visitaria quando então me re-mostraria a cidade e me levaria aos endereços de outros colegas de antigamente. Fiquei surpresa ao saber quantos tinham continuado no lugar...
Entregue a amiga à casa, retomei o caminho até minha atual residência. Chamei uma vez pela minha mãe – ainda não fiz uma cópia da chave para mim – mas ela ainda dormia. Dormia e resolvi que dormindo ficaria até a hora costumeira dela. Eu, podia esperar. Aconchegada à sacola e à bolsa, recostada na cadeira branca de metal, esperei. Aguardei na varanda até chegar quem tivesse chave. Isso durou uns vinte minutos, apenas; depois, entrei aliviada de poder tirar os sapatos.
Por
Magda R M de Castro
Abaeté, MG, 17.08.2009

sexta-feira, 31 de julho de 2009

REVOADA

Não. Não poderia escrever aquilo para ele; não poderia transferir a responsabilidade que era minha, então, apaguei a mensagem, melhor, parte dela; ficou apenas o “obrigada por tudo” brilhando no escuro, na tela do celular. Não poderia pedir socorro assim tão diretamente: iria parecer dramático demais, mais teatral do que a simplicidade da vida exige. Sim, simples, tento me convencer de que sair de casa para ir morar longe é simples, a gente é que complica tudo.
Me convenço que sim, que se complica tudo, quando misturamos a necessidade de trabalhar para ter a dignidade de viver à própria custa; quando temos a ultrapassada idéia de que pais devem ficar em casa até que os filhos resolvam sair; quando nos pomos a ruminar “até que ponto somos necessários aos filhos”? "Quando devemos parar de vigiá-los para que comecem a crescer?" Acho que essas são dúvidas de todos os pais e não sou diferente disso, por isso, me vi nessa encruzilhada quando descobri em que pé estavam as coisas entre o namorado e minha filha morena. Daí pensei em enviar uma mensagem, olhem até onde pode ir a interferência de uma mãe. É porque coincidiu minha saída com crise de namoro e fiquei sobre brasas quentes imaginando que minha filha enfrentaria duas grandes batalhas ao mesmo tempo. E aí vai minha imaginação... fico preocupadíssima com a menina frágil. Hum! Menina frágil, essa aí quando cisma de fazer ela faz mesmo, sem dó!
Então, na primeira vez que voltei em casa, vi que o namoro, de mais de três anos, estava balançando e que minha filha poderia estar muito só – como se isso fosse coisa que eu controlasse, olha a pretensão! - Não me senti bem de imaginar que justo agora eu me afastava – fui para o interior por uns tempos juntando que eu precisava esfriar a cabeça e minha mãe precisava de um pouquinho de atenção, e outros detalhes menores. Então, eis que, nesse caso, fiquei com medo de que fossem coisas demais para ela lidar. Achei que o namorado atencioso iria estar por perto para apoiá-la nisso; assim, o contrário me deixou apreensiva. Comecei a rever minhas razões para ir viver no interior: ir a tudo caminhando sem ter que dirigir um carro; plantar um jardim ou um pomar ou uma floresta para marcar minha passagem; ficar com minha mãe por uns tempos coisa que não fazia em razão de tantos compromissos na cidade grande. Taí outra razão: a cidade grande de stress de trânsito, de correria, de precisar ter grana para viver decentemente. Vida cara essa hoje em dia de cidade grande, e há oportunidades para os jovens, mas nem tantas para o não tão jovens e daí senti que poderia tentar...
Essas são algumas das razões de partir para o interior, armar a tenda, arrumar emprego. Virei a minha história do avesso: agora ao invés de passar férias no interior vou para a capital, encontrar meu povo querido. Nada de mais não é? Simples assim. Mas não, nunca é simples assim.
A minha é uma família linda, e por muitos anos, ficamos o mais perto possível uns dos outros. A vida nos dividiu um dia e, ultimamente, na casa, agora, só moravam quatro mulheres cheias de esperanças. O dia a dia nos mostrou, entretanto, que não teríamos como pagar o preço de vivermos todas na Capital Federal ao custo que isso representa. Devagarinho, meu coração foi acreditando que sair poderia mostrar diferentes oportunidades, então, quando fiz contato com a faculdade da cidade de minha mãe, fui convidada a trabalhar nela. Aceitei, pedi demissão do emprego na capital e fiz as malas.
Então, eu não estaria no dia a dia, para as pequenas coisas; o que acho ser uma vantagem, talvez um tempo em perspectiva para nós, para nos vermos diferentemente, para nos respeitarmos mais até, pensei. A realidade não é simples assim, percebo agora. Isso porque o que parece ser mesmo fato é a família se desintegrando com os pedaços se perdendo na imensidão da história humana. Como uma nebulosa que se esfacela no espaço, nos distanciamos, nos dispersamos, nos soltamos do centro; como partes se dirigindo, tremulamente, para o vazio. Talvez cada parte consiga se aproximar de fragmentos diferentes e daí possa nascer outra estrela; quem sabe haverá novos encontros e se forme novos núcleos.
Por outro lado, vejo agora, que se um dia tudo dependia de mim, hoje não: essa é a ordem natural das coisas e é mesmo simples, basta deixá-la acontecer. Além disso, se fiz bem o trabalho, meus filhos estarão prontos para se soltarem de verdade do núcleo, aliás, estarão ansiosos por isso confiantes que deverão ser em si mesmos. Se ensinei o suficiente, meus amores estarão se soltando alegremente desses galhos já não tão poderosos e alçando seus vôos solos; estarão fortes o suficiente para buscarem seus próprios roteiros, suas próprias galáxias. E ainda serei também suficiente para me cuidar, viver bem e apreciar isso tudo.
Uma visão dessas só é possível, entretanto, se o amor estiver muito claro, se a confiança foi construída com sólidos elementos, e com a convicção de que o amor não está sujeito aos rigores da geografia, aliás, para ele, o “longe é um lugar que não existe”.
Além disso, me lembrei da história da borboleta: estava tentando tirar a segunda asa do casulo, cujo esforço faria com que fosse possível voar. Um garoto passando por perto achou que a borboleta precisava de ajuda e quebrou o casulo. A segunda asa não estava pronta e isso impediu que a borboleta voasse para sobreviver. Moral da história: até a ajuda, fora de hora, pode atrapalhar o bom desenvolvimento das coisas.
Foi por essas reflexões que apaguei parte da mensagem. A parte que dizia “não desista dela; ela vale, e muito, a pena.” Teria sido uma interferência lamentável, uma total falta de confiança, e de respeito para com a moça, atrapalhando-a na busca pela solução, a seu modo, dos próprios problemas. Não poderia fazer isso, nem com ela nem com seus irmãos que também têm suas dificuldades, mas confio que têm suficientes recursos para “voarem com as próprias asas”; além do que me permite usar o que resta das minhas para suportar apenas meu próprio peso agora. Mesmo porque, nada nos impede de voarmos juntos sempre que os ventos nos permitirem.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 25/07/2009.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

INVERNO

As painas tornam os gramados caminhos de neve esvoaçante. Amontoadas, as fibras de seda ora formam alvo tapete, ora sobrevoam silenciosas com as leves brisas, ora saem em disparada sobre o asfalto levadas por rajadas intermitentes de vento.
É um vento gelado, gélido, para esse clima tropical e fica mais frio ainda quando o sol desponta no lento amanhecer: a neblina ainda encobre os topos dos prédios mais altos; poucos. Até que o sol se faça presente, o dia é só amostra; as veias das ruas solitárias ainda têm silêncio de noite, sossego de vazios.
Paisagem surreal entre o despontar do sol e o dissipar das sobras da noite e da fria neblina. Orvalho se poderia dizer não fosse a secura que chegou há alguns dias; cerração se fosse olhar um vale do alto, mas aqui já se está no alto, no plano alto. Então, essa neblina pode ser mistura de orvalho e poeira tantas as obras que expõem as estranhas da terra vermelha do Cerrado agonizante. Todos os elementos expostos, açoitados pela ganância humana, pelos valores retorcidos de nossas sociedades, se confundem, e confundem a todos. Sol, noite, manhã, neblina ou poeira, neve ou paina se confundem e se misturam na manhã brasiliense, precisamente uma manhã de inverno.
Começaram as férias escolares, que muitos pais fazem coincidir com os muitos recessos pelos órgãos públicos; por isso as ruas quietas nas primeiras horas da manhã; ainda mais silenciosas quando o sol começa sua subida por entre as árvores enregeladas. Seus raios se entremeiam às sombras e formam tiras de energia serpenteando pelos gramados. Tiras entrecortadas, aqui luz e ali sombra que, aos poucos, como o pequeno movimento do trânsito, se esvaem.
Ao virar uma das curvas, também raras, o sol se mostra deslumbrante mesmo ainda tão baixo, rastejante quase. Sua luz invade o rés do chão enquanto a noite persiste nas alturas. Enquanto se passa por uma descida de avenida, arremedo de, aliás, pode-se quase apalpar as intenções do astro-rei; e aí vem o dia. Exuberante luz, de deslumbrante despertar talvez pelo contraste com a escuridão, talvez porque o céu nu lhe dá plena passagem.
É verdade: não há nuvens no céu tão cedo. Talvez essa abóbada inteiriça, o convergir de todos os azuis para o cinza-gris; talvez tenha se vestido diferente então o céu em um único espaço liso, sem dobraduras, sem matizes: todo igual. Como uma redoma de vidro, o céu cobre o dia que desperta, exibe sua esplendorosa luz e se infiltra inexoravelmente por entre as criaturas e as coisas.
É interessante observar esse contraste: as frias marcas da noite e o poderio total de um sol deslumbrante. Talvez seja esse o momento mais frio do dia. Talvez os elementos disputando espaço, talvez um resistindo ao outro, querendo cada um ficar e aproveitar a vida.
Talvez, e enquanto isso, despertam outros seres, como o vento; esse vem cantar sem pudor sua cantiga de fazer imaginar assombrações. Como as fileiras de ipês roxos e rosas que coalham os canteiros laterais do Eixão; como as mangueiras que se cobrem de flores ferrugem; como os pássaros que se agrupam para aproveitar a seca e voarem livres da chuva.
É Inverno, que bom! Falta tão pouco para a Primavera agora!

Por
Magda R M de Castro
Brasília – DF, 06 de julho de 2009.

sábado, 20 de junho de 2009

BRASÍLIA... QUE TE QUERO BRASÍLIA!

Não passou tanto tempo, parece, mas passou porque o outono se despede. Sei que se despede porque a paineira da minha rua se recobre de folhinhas novas, verdinhas-claro. Elas se misturam aos frutos pendurados, imitação de pequenas cabaças amarradas em cordões, fazendo os galhos se curvarem até bem pertinho da terra. Acho que, se me esticar um pouco, consigo pegar um casulo daqueles para debulhá-lo em painas brancas. Esse pensamento me leva à infância quando minha mãe achava o máximo rechear os travesseiros da filharada com paina; mas vou esperar que caiam de maduros, na hora certa.
Isso vem durando uns dez dias e vigio com tanto afinco que quase posso contar tudo que é novo em meus tantos caminhos. Um desses é a saída no rumo do Eixo Monumental; daí vou dar de cara com a paineira que namora o ipê na frente do Fórum. Se ela estava resplandecente dias atrás e agora só ensaia pequenas folhas, por sua vez, o ipê, rosa, desabrocha, mesmo meio espremido; tenho que passar com o carro em marcha lenta para ver cada flor que se ilumina. Ainda são poucas flores...mas estou vigiando o dia em que ele se empertigará todo, orgulhosamente.
Se pego a saída da BR 040, pela Via EPIA, quase como Roma, observe-se, vou encontrar as paineiras do canteiro central despedaçadas com a obra de ampliação da pista. Não só paineiras, mas também jamelões, goiabeiras, figueiras, amoreiras, pedem socorro em meio à poeira e aos maus tratos. Para melhorar a sensação, imagino o lugar com plantas novas, imagino o cheiro de suas resinas, se abrindo em flores, a volta dos pássaros... descobri uma quaresmeira florida, mesmo com flores empoeiradas, na última quinta-feira, quando desci de Sobradinho de dia; temporona essa, já que a quaresma se foi...
Se pego para o rumo do Hospital das Forças Armadas, vou encontrar as jaqueiras, essas sempre verdes, sempre vivas, palmas para elas; se preparando para parir enormes rebentos, interessantes frutos gigantes que mais enfeitam que alimentam, pelo menos, aqui em casa ninguém gosta. As preferidas são as mangas, essas, em fileira comprida e compacta, alinham os limites entre os dois Cruzeiros e fazem do fim do ano, com suas frutas coloridas nas grimpas das árvores, concerto musical, resultado de ataque de todo tipo de passarinhos; bom demais canto de passarinho.
Nos canteiros de cada quadra do Plano Piloto ou das cidades satélites próximas, como o Sudoeste e o Cruzeiro, há muitas plantas diferentes, e numa das curvas dessa semana, modo de dizer, dei de cara com uma pata de vaca cor de rosa. Nos meus caminhos as encontro sempre brancas, flores discretas em meio a folhas robustas, mas dessa vez, dei de cara com uma rosa. Estava carregada, as flores, vitoriosamente ocupando maior espaço que as folhonas verdes. Estava linda: assim disse meu coração.
Agora, o melhor de tudo é que já contei uns dez ipês por onde andei. Floridos rosamente, mas estou espreitando os amarelos. Vi um, na Esplanada dos Ministérios, tamanho médio, poucos cachos, amarelo, mas só esse. Se os rosas abriram a linha de frente, os amarelos os espero sempre por agosto, e torço para que nenhum outro invente de desabrochar temporonamente. Mas é quase inverno, coisa esquisita, não deveria haver flores se abrindo, ainda não. Penso que deve ser porque as chuvas duraram tanto, mas me preocupo porque se todas as flores florirem agora, antes do tempo, podem não estar aqui quando devessem estar, na primavera.
Essa é questão: o tempo, o lugar, certos. Sim, esse lugar: cidade de milagre pensada há décadas, mas com a visão de milhares de anos à frente; sem limites intransponíveis quão grande ficará? Resultado da idéia maluca de um Mineiro – de novo com letra maiúscula e já expliquei porque – essa cidade será uma das maiores do mundo. Fincada num planalto com rios pequenos, não tem o limite de um mar ou de uma cordilheira e a fronteira com outro país está muito distante. Povoada por pessoas de diferentes origens, querem, todas, se abrigar nas “asas” de sua proteção, Brasília será muito mais do que pode imaginar o seu criador; muito além do que pode imaginar mesmo quem vive aqui.
Brasília, ímpar, inigualável, com seus segredos expostos, se oferece em dádiva para quem a escolhe. Suas amplidões envolvem como abraço de mãe, sem distinção de raça, cor ou conta no banco; doam a quem tem capacidade de enxergar, o que há de mais belo na existência humana: a liberdade.
Não há como não se contagiar de liberdade quando se busca o céu de Brasília, escancarado. Seus horizontes se misturam aos seus gramados dando a quem os espreita a perfeita sensação de eternidade. Se de alguma forma, ela se contamina com quem chega e se rende a algumas influências – tem satélites que já tem nome de santo, por exemplo, como em outras cidades – sua atmosfera de infinito arrebata a respiração de quem a fita com a alma.
Silenciosa em seu esplendor monumental – aqui se pede aos motoristas para não buzinar – ela se deixa conquistar e ainda oferece suas dádivas, mas que essas sejam respeitadas. Sim, que se respeite mesmo esse singular lugar, diferente urbe, que se ergue mais com idéias do que com concreto; que nasce primeiramente na reflexão, na escolha espontânea de cada um. Que se dê o devido valor à permissão de suas obras; essas não segregam, não isolam, ao contrário: se espalma o parque em verdes oferendas; se espraia o lago em ondas serenas; se publicam aos passantes as frutas em seus pomares; se purificam os andarilhos em suas águas cristalinas, inacreditáveis.
Inacreditável, para quem apenas ouve falar de Brasília; tantos os seus mistérios; inacreditável sua extraordinária exuberância; ininteligíveis seus códigos e símbolos: para os desavisados. Não pode entender mesmo, quem a quiser comparar a outros formatos; ela é única. Se essa unidade pode assustar primeiro, viver Brasília é viver como ninguém mais vive; entender Brasília é para quem tem muita imaginação, para quem entende um pouquinho de História e de Filosofia e para quem quer muito mais do que o trivial e o igual.
Brasília, que assim é e assim que seja sempre, porque o seu inigualável esplendor é a prova de que o ser humano pode muito mais do que supõe a sua pequenez, porque Brasília se constrói, primeiramente, nos corações; Brasília, primeiro se aprende a amar; depois, então, é que ela se deixa explicar.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 20 de junho de 2009.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O ÉDEN

A casa sede não comportava tudo: tantas pessoas e tantos cacos de mobília. Então, a mobília foi amontoada numa das casinhas de agregado que meu avô mantinha na beira de um brejo. Havia muitas casinhas, todas ligadas por um trilho de carro de bois: escolhemos uma mais perto da casa grande.
Dormiríamos parte na casa grande, pelo menos os menores, outros na casinha porque nem ali cabia todo mundo. E o avô tinha família: mulher e enteada e cozinheira. Na casinha, ficariam os rapazes ou quem mais precisasse de cama.
Mesmo com o rebuliço da mudança, com tudo tão diferente, desse tempo nada recordo como doloroso. Cada dia foi uma celebração, de vida, de alegria, de esperança, de segurança. A abundância podia ser vista e podia ser tocada e, melhor, podia ser comida. As frutas se espalhavam por todos os lados e nada era proibido, exceto o quarto do avô, sempre trancado com enorme chave. Mas o canavial podia ser degustado a qualquer momento, as goiabas eram abundantes, os jambos tinham as cores do arco-íris, as mangas de muitas espécies eram doces e suculentas. As laranjas viam nos balaios dentro do carro de bois ou no lombo de burros. O leite era servido em copos gigantes, feitos do zinco das latas de óleo e polidos com esmero. Os doces enfeitavam o guarda comida da sala e a ordem era que fossem comidos o mais rápido possível. Ainda tínhamos o creme fresco, o melado, o milho verde. O engenho chiava puxado por musculosos bois curraleiros. As tuias transbordavam de café, feijão, arroz. As sacas de farinha de trigo e açúcar se amontoavam pelo chão grosso do porão. As braúnas, as maiores que existiam, vivam abarrotadas de banha de porco e carne cozida. Pelos jiraus balançavam rodilhas de lingüiça, chouriço, carne seca. As cestas de ovos enfeitavam as prateleiras da despensa, essa sim, cumprindo a finalidade de guardar as maravilhas que meu avô mandava vir da cidade, como, batatas, macarrão, bolachas Maria; tudo em sacos ou em grandes caixas. Nada ali era minguado: os capados se amontoavam na seva, as galinhas coalhavam os quintais, o gado era um assombro espalhado pelos espigões que cercavam a sede.
O fogão, gigantesco, tão grande que se podia dançar em cima, borbulhava de enormes panelas negras, essas não mais assustadoras, mas redentoras. Havia de tudo: legumes frescos, batata inglesa, omeletes, paçocas, mandioca, feijão bem vermelho, arroz de pilão. Amontoada toda num prato fundo, a felicidade existia finalmente.
Desse tempo, não tenho lembranças. Tenho magias espalhadas pelo meu coração, gravadas no meu cérebro e na minha alma. Nada do que vivi ali naqueles meses pode ser esquecido. Nenhum detalhe. Afinal, eu era uma mocinha deslumbrada com o paraíso.
Ali podia subir nas goiabeiras, podia brincar nas enxurradas que desciam pelos grotões, subir nos pés de manga ou caminhar livre pelas colinas até mudar de horizonte e podia subir pelos moirões dos currais construídos morro acima. Quando o gado todo era reunido para vacinação ou para os negócios do avô, a poeira podia ser vista muitas léguas além. Eu me equilibrava em cima das ripas fortes e protetoras, tentando tirar os pés do alcance dos chifres. A briga entre os peões e as reses era de dar medo, os laços voando baixinho por sobre as cabeças nervosas. A cada rês laçada, os urros e gemidos me faziam adormecer as canelas, sensação que tenho sempre em caso de perigo. Havia uma parte do curral entelhada, a coberta. No centro dela, um tronco robusto, alto, liso de tanta corda abraçá-lo, onde os homens, montados em seus cavalos inquietos, subjugavam cada rês e a deitava por terra. Fosse para tratar um berne ou carrapato, fosse uma vacina ou um remédio para os males tantos que rondavam naqueles tempos, o tronco segurava o bicho até que o serviço fosse feito. Era uma algazarra quando a corda afrouxava e o animal saía coiceando e pulando no meio do rebanho. Gritava bicho, gritavam homens, meu avô e eu.
Dava gosto ver o riso na bochecha do meu avô, a satisfação e o prazer pelo exemplar bonito que ele mandava de volta ao pasto. Era sua diversão favorita: ver o gado nos pastos. Era tão ativo ele que costumava comer, andando pela varanda da cozinha, indo dum canto ao outro porque de cada ponta ele podia ver um dos pastos. Em tardes de preguiça, raras, se sentava em um tamborete feito especialmente para ele, bem grande, e ficava cismando olhando o mundo verde, brincando com os dois polegares, alisando um com o outro, ora de direita para a esquerda, ora da esquerda para a direita. Ali ele ficava horas contando suas aventuras – de desventuras ele falava pouco comigo. Era um homem sábio o meu avô: um dos maiores. Para falar a verdade, sinceramente, até hoje, meu avô foi o homem mais sábio que conheci. Quem dera fossem assim os professores que me ensinariam mais tarde, de quem ele até era amigo...
De modo que ele se levantava cedo, bebia meio litro de leite fervido na hora, com a nata, tomava quase uma garrafa de café, misturado numa xícara grande – que a gente chamava de média – comia quase um bolo inteiro e saía para ver o mundo que construiu com a força do próprio braço, de perto. O cavalo, enorme, bufava quando ele lhe caía em cima. Castanho, era o nome, e era castanho mesmo. Um quarto-de-milha especialmente treinado que aceitava como cavaleiro somente o meu avô. Sempre lustrado, crina aparada, o trote curto e macio, lá iam os dois pelos pastos afora inspecionar a fazenda: bichos, roças, aguadas.
Quando voltava, com a tarde desmaiando, a janta já recendia pelo terreiro de terra batida; de secar o café e feijão recém-colhidos. Nessa hora era um milagre de cheiros aquele mundo: os jasmins explodiam do barranco na porta da sala, os laranjais novos irradiavam seu perfume inebriante, o cheiro da cana adoçava o da comida que descia pelos degraus ao encontro do dono da casa que chegava.
Uma das coisas mais conhecidas do meu avô era a sua paixão por gatos. De manhã ou de tarde, depois de suas voltas pela fazenda, ele gostava de entrar pela porta da sala. Pelo menos uma vez de manhã e uma vez à tarde ele entrava de mansinho e parava na porta entre a sala de visitas e a de jantar. Parava, espreitava. Sem o dono “feroz”, mais de trinta gatos se espalhavam pelos cômodos, pelas janelas, pelas cadeiras, pelas mesas, ao pé do fogão. Ele chegava pela porta da sala, tirava mansamente o chicote de couro trançado da correia da cintura, pisava passo a passo o assoalho e pegava todos os gatos de surpresa. Uma lapada sonora no assoalho da sala do guarda-comida, bem pertinho da porta que a separava da cozinha, fazia um estralo assustador tanta força ele punha ali. Voava gato para todo lado. Essa história era conhecida até muito longe, por pessoas de todo tipo. Ele explicava dizendo que preferia os gatos aos cachorros. Tudo bem, cada louco com sua mania.
Do casarão, a varanda era uma obra de arte: ladrilhos em duas cores, desenhando triângulos, tinham vindo de muito longe. A balaustrada de proteção era feita de ripas de madeira, encaixadas em duas vigas horizontais que terminavam em pilastras trabalhadas. Na mesma linha dos parapeitos, junto ao madeiramento do teto, havia um rendado de madeira, como que um véu de coroação sobre a obra. A casa, muito alta, de paredes de quase meio metro de espessura ficava numa ladeira suave e a parte inferior era apoiada sobre fortes troncos de aroeiras. A porta da cozinha, de duas folhas largas, encimada por três caixas de vidros trabalhados e coloridos, vivia escancarada para dar passagem aos gatos e a quem mais chegasse. Para o quintal e a cisterna, se descia pela escadaria emoldurada com os mesmos enfeites da varanda da frente: cerca romântica de ripas alinhadas perfeitamente.
Logo em frente à escadaria, desviada um pouco da cisterna de enorme sarilho, havia a casinha. Esse era o nome: casinha. Era uma construção quadrada, e alta como a casa grande, dividida em quatro partes. Eram quatro portas independentes, acessadas todas apenas pelo lado externo. Num dos quartos havia duas camas de solteiro, com cordas amarradas de parede a parede servindo de cabide para as roupas ensebadas dos peões. No outro, fincada no chão de terra batida, havia um tronco, grosso e da altura do umbigo de um dos meus irmãos, que apoiava a desnatadeira. Invenção maravilhosa que retirava o creme fresco do leite para derramarmos em cima de pamonhas amarelas e quentes. Delícia incomparável!! Noutro quarto – tão apropriado esse nome, nunca vi – ficavam os arreios, baixeiros, freios, rédeas, varas de ferrão, baldes, tudo que fosse necessário para a lida do gado leiteiro ou do gado solteiro. No último compartimento, ficavam os venenos para ratos, remédios e o sal do gado. Esse último ficava mais fechado, talvez em razão do risco com tanta criança rondando sem ter o que fazer. Desses, o que eu mais gostava era do quarto da desnatadeira; os outros não me interessavam nada.
Inesquecível era o dia de moer. Cana. O carro de bois vinha trazendo do canavial montes e montes de cana e jogando um monturo perto de engenho. Depois de fora das cangas, os bois iam para o engenho. Rodavam, rodavam e rodavam sob os gritos do peão, fazendo círculos perfeitos, e eternos, sobre a grama úmida. O caldo verde dourado ia escorrendo em canais de latão até cair nas braúnas também de latão. Dali seguiam para a casinha dos tachos, no fundo do quintal. Do dia da moagem eu guardava até o ritmado dos sons: “Vai, Rochedo!! Vai, Trapézio” Eia, boi!!!” e o engenho cantava: “Ai, ai, ai, ai...”
O paiol vivia abarrotado. Vez ou outra meu avô pedia pra gente empurrar as espigas para o alto, para que elas não caíssem pela porteira afora. Eu brincava sobre o monte de milho até sentir que a coceira tinha tomado conta. Ali tínhamos que ter cuidado porque se espalhava ratoeiras para todo lado. O paiol foi construído estrategicamente: por cima do chiqueiro; de forma que fizesse sombra nas horas mais quentes do dia, principalmente para os capados, esparramados em suas intumescências pelo chão lavado com capricho.
Meu avô era um homem além do próprio tempo e todas as tecnologias possíveis usava em sua fazenda querida. A logística das casas, dos currais, das demais benfeitorias e do quintal, com suas bananeiras, canavial, pomar, rego d’água, era perfeita e minimizava os esforços dos trabalhadores. O chiqueiro ficava embaixo do paiol, tinha, naquele tempo, acreditem, torneiras, para lavar tudo. Lavava-se os porcos!! A água usada ia para o brejo perto, mas não tão perto que contaminasse o ribeirão que passava no fundo. Esse ribeirão tinha sido desviado e um canal perfeito desembocava num poço fundo. Sobre esse poço fundo havia uma casa de máquinas, que, acreditem, gerava energia para a fazenda. Pasmem! Nem na cidade deveria ter eletricidade direito, mas a casa do meu avô era iluminada pela pequena usina que construiu no fundo do próprio quintal.
A casa grande também era exemplo admirado por todas as pessoas da região; dela já falei um pouco, mas tem mais: alta, sólida, bonita. Janelões, treliças, vidros coloridos, tábua corrida larga, cozinha de ladrilhos, chaminé até o teto, luz elétrica, quarto de banho. Uma pequena inovação era como jogar a água do banho fora, ainda tomado em bacias: uma saída de água da cozinha que seguia por um cano e jorrava bem em cima dos pés de laranja. As paredes eram muito largas, feitas de tijolos atravessados; as trancas eram de ferro fundido e giravam guinchando quando acionadas. Todos os cômodos tinham muita luz natural, mas à noite, com tudo fechado o breu era total e o sono era profundo. A fornalha, no centro da enorme cozinha, tinha forno excelente e ali eram assados carnes e demais quitutes.
Tudo ali era grande: da altura da casa, ao número de gatos, à quantidade de porcos, aves e bois, às frutas, legumes da horta, às tuias, à chaminé, às cumeeiras, aos currais, ao paiol, ao chiqueiro. Acho que se fossem menores não caberiam o meu avô, homenzarrão forte e alto; nem a sua história toda.
O telhado da casa principal luzia à distância, exibindo telhas francesas avermelhadas, perfeitamente colocadas, dando a impressão de trabalho de artista, nas suas águas encantadoras. Também os telhados das casinhas de apoio seguiam o da casa grande. Outra casinha era a das tarefas mais pesadas, que não eram desempenhadas todo dia como matar porco, fazer sabão, fazer doces e pamonhas. Era a casinha dos tachos: grandes, enormes, tanto que podíamos tomar banho dentro. Tachos ou tachas, nunca entendi esse feminino. Tinham sido construídas trempes muito firmes para acomodar a tacha do doce, a que fazia sabão, a que fritava os toucinhos. Separadas. Todas de cobre e tão pesadas que não saiam do lugar. O avô exigia que fossem lavadas com limão e sal até que todo o zinabre desaparecesse, então, todo o cuidado era pouco para não derramar água nas cinzas e ficar difícil acender o fogo. Também tudo tinha que ser lavado depois de usado.
Ele inspecionava. Ensinava. Cobrava. Mas tudo na calma. Nunca tive que ser castigada por ele e nunca o vi zangado com ninguém. Isso não quer dizer que ele não ficava zangado, quer dizer que nunca se mostrou zangado para mim. Pelo contrário, vi ternura nele em muitos momentos. Comigo, de forma mais distante, sei, mas sempre ternura e mais tarde, eu já moça, teve a liberdade de expressá-la mais claramente. Era terno também com a enteada. A menina fazia uma arte qualquer, ele conversava, mas não maltratava. Aliás, a menina e a mulher viviam vestidas de fitas e cetins. A menina, então, era uma boneca. Toda serelepe para baixo e para cima, a garota tinha coisas que jamais sonhei, mas aquilo para mim era natural: era a família dele. Tudo o que conseguia perceber é que ali, naquele canto do universo, existia um homem ao qual tudo era permitido; e eu era grata, até o chão em roda, pela parte dele que tocava para mim.
Mas tinha uma coisa proibida: cruzar a soleira da porta do quarto dele. Sempre trancada a chave, a porta enorme para meus poucos anos, assombrava. Nas noites caladas, com medo de fantasmas, me enrolava até o pescoço nas cobertas de tear, imaginando o que poderia ter naquele quarto: um esqueleto de alguém que ele matou, um monte de diamantes, uma mulher prisioneira, muitos revólveres. Ainda não me tornara a leitora esfomeada de livros como me tornei depois de modo que a imaginação não tinha muito para onde ir. Das histórias conhecidas então, a maioria vinha das que ouvia por ali mesmo e uma das inesquecíveis é que se contava sobre um assassino que esquartejou a mulher, colocou numa mala e foi correr mundo com ela. Isso me arrepiava a ponto de bater queixo e ranger os dentes. Assim, aquela porta era a representação do medo, quase pavor, do desconhecido do outro lado. Assim foi até que, depois já moça, tive coragem de confessar para meu avô sobre nossa fascinação. Digo nossa porque meus irmãos e primos também viviam às voltas com o mesmo mistério.
Éramos uma turma de jovens e crianças: meus irmãos, alguns primos mais assíduos, filhos do outro tio que, naquela altura, já estava de volta à cidade, o filho mais novo de meu avô, os enteados. Zanzar pela fazenda, correr pelos pastos, subir em pés de goiaba e manga, chupar cana e laranja campista, docinhas, nadar no ribeirão: brincadeiras para dias de chuva ou de sol. Nos dias de mais chuva, jogávamos baralho, dama, amarelinha. Eu perdia sempre, mas não me importava. Vez ou outra eu chateava os rapazes porque era uma mocinha atrapalhando as brincadeiras dos “homens”.
Uma das lembranças mais especiais é de uma manhã de neblina. Tinha chovido a noite toda, chuva que já vinha acontecendo há dias, então, o mundo derretia. Eu gostava de me levantar cedo: para ver o sol ir chegando caladinho, para tomar leite quente no curral, para assistir a tudo e não perder nada. Nessa manhã nem a cozinheira tinha ainda feito o café e meu segundo irmão me chamou para chupar cana. Estava frio. Nos sentamos num tronco escuro de tão úmido, ajeitamos as pernas como pudemos e ele se pôs ao trabalho. Cascava as canas com capricho, jogando fora cada nó. Depois cortava os roletes rodando o canivete na carne branca e os partia cuidadosamente em quatro. Ficava com duas partes e me dava duas. Chupamos cana até cansar, calados, sem trocar palavra. A sensação que tenho dessa manhã é que o prazer de chupar a cana doce não era tão grande como a delícia de ter o meu irmão comigo, só para mim. Eu estava contente, era apenas uma menina e não posso afirmar se me lembrei, naquela manhã nevoenta, de que o irmão querido que me oferecia aquele quitute era o mesmo que tinha rolado uma tampa de tambor sobre o meu nariz há alguns anos. Vejam como as crianças são mesmo criaturas de Deus!
Por isso chamo ali de “éden”. Naquele vale entre espigões vivi os dias mais felizes de minha vida. Naquele lugar encantado comecei a viver. Ali podia ir nadar, fora das enchentes, claro. Podia galopar pelas estradas vermelhas. Ali aprendi a amar o campo, a admirar as flores, a curtir o ar puro, a respeitar limites. Tive a chance de ficar algum tempo com meus irmãos que já rapazes, também ajudavam na lida. O éden. O paraíso. O jardim dos milagres. E o homem mais sábio e encantador do mundo. Que eu amei muito.
Só não herdei dele a sabedoria para compreender isso naquele tempo e dizer-lhe tudo que significava para mim. Mas a vida é mais que um milagre e, de alguma forma, escrever essas memórias pode significar a redenção dessa minha incapacidade e sou grata ao universo por essa chance. Me consolo ao pensar que mesmo indo embora, continuei visitando aquele lugar sagrado. Conviver com ele era mais importante para mim do que festas, eventos, diversão de cidade.
Quase todo fim de semana eu pegava a jardineira ou o caminhão do leite e subia as colinas até o ponto da estrada que me levaria até o paraíso. Depois, caminhava cerca de três quilômetros respirando com força o ar amado e me deixava levar pela glória de estar no meio da natureza e indo de encontro aos braços do meu avô. Os braços, representados pela casa de telhado francês, pela cozinha fumegante, pelos risos e enxurradas, pelo abrigo e pela proteção. Chegava, ele ficava feliz, jogávamos baralho juntos, ele mandava vir balaios de frutas para mim, mandava fazer a comida que eu gostava: arroz, feijão de bagos grandes e bem vermelho e ovo frito. Ah! Manjar de deuses!
Tudo que tinha na fazenda ficava à minha disposição. Até o rádio de pilha que ele não deixava ninguém tocar, me era permitido, emprestava para ouvir uma rádio de São Paulo, no programa “Barros de Alencar”. Adorava quando o radialista falava “Alô, Mooca!!” Achava horrível esse nome, mas a voz dele era fantástica. Acho que era porque a puberdade já vinha despontando com suas garras e eu me enlevava com as músicas românticas do Moacir Franco, do Antônio Marcos, do Roberto Carlos, do Gianni Morandi. A voz deles dissipava o silêncio da fazenda, com o rádio de meu avô a todo volume. Eu me tornava mocinha e não me dava conta do conto de fadas que vivia.
É. Eu não sabia, não naquele tempo. Se desconfiasse, possivelmente teria me agarrado a um dos moirões do curral, ou a uma das pilastras dos alpendres, ou a uma das pernas de meu avô, para que me deixassem ficar. Teria vivido feliz eternamente naquele canto de mundo. Ah! Que não duvidem!! Nenhum outro lugar do mundo é melhor do que a fazenda que meu avô construiu e nos abrigou em nossas tantas tempestades. Nunca teve lugar que me fizesse tão feliz!
Por
Magda R M de Castro
Brasília - DF

DE IRONIAS, FATALIDADES, ESCOLHAS... E RISADAS

Penso que se a gente, um dia, conseguir lustrar nossa capacidade de entendimento do mundo até compreender esse infinito universo pode acontecer duas coisas, muito possivelmente: uma, você fica doido varrido; duas, você dispara a rir a bandeiras despregadas... o que afinal, pode-se entender como loucura também. É esse mistério que a vida tem de enredar a gente pelas tantas “estradas” leva prá lá hoje, traz de volta prá cá amanhã. Nesse vai-e-vem sem fim a gente aprende, apreende, lembra, esquece. Mas tem uma constante: as coisas estão acontecendo e muitas vezes você não tem nem ideia disso. Estou nesse preâmbulo todo é para dizer que me dá vontade de rir até engasgar quando me lembro do que queria ser quando crescesse. Olhando para trás, nos momentos em que escolhi o caminho, vi que não era bem o caminho que queria escolher, mas era tudo muito parecido. Algo como instinto mortal ou cheiro de futuro sempre esteve desviando um pouquinho minha visão da realidade. Acho, já disse isso em outros momentos, que sou mesmo sonsa e muita coisa passa por mim e não vejo. Sei que há algo por ali, ronda, rodeia, me olha, ri de mim e vai embora. Talvez sejam as “conexões ocultas”, o nome de um livro que está a minha frente. O fato, agora não é mais imaginação porque posso dizer “fatos”, é sim, os vivi, ora, posso dizer “fato”! Então, o fato passou, está passado mas não foi, mesmo, nada do jeito que eu sonhava. Mesmo com outro livro virado para mim, ali, em pé, na estante, sobre “tomar a minha vida em minhas mãos” continuo com vontade de rir muito. Que negócio é esse de controlar minha vida? Controla-se sim, quando você decide se casa ou não, se muda de cidade, se o carro vai ser azul ou preto. Mas gente, essas escolhas são coisas palpáveis, prováveis. Tem muito mais que isso rodando nesse ar que respiramos. Tem forças invisíveis que circulam à nossa volta e nos devia um milímetro daquele trilho e aí, pronto, quando chega lá na frente, lá longe, você olha pra trás e descobre a verdade: você não está indo no rumo que queria não! E é tarde... Entendo isso como se houvesse duas consciências: uma que povoa minha imaginação, meus limites, impostos ou escolhidos, cuja extensão não consigo alcançar; outra que me faz trabalhar para pagar as contas. Sei que sou formada de forças maravilhosas que me fazem ser esse milagre ambulante com capacidade para pensar e sentir, andar, falar, ouvir, e por aí; assim me assusto quando avalio o espetáculo que é o ser humano, e todas as formas de vida junto! Mas nada disso me dá a habilidade de controlar minha vida, não totalmente, porque não controlo o sol no céu, a chuva no gramado, os ventos, as pessoas e os animais, eu mesma. É força demais girando, tocando, mexendo, revirando, remexendo. Sou um nada, mesmo sendo maravilha, nesse mundão de meu Deus. Quando me coloco na perspectiva do universo, na perspectiva das pedras, na perspectiva das geleiras e dos montes, não me vejo; não significo nada. Mas quando me volto aos “fatos” desenhados no que passei, vejo as ironias da vida brincando comigo. Quando procuro entender onde peguei o caminho diferente do que queria dá vontade de rir até o chão em roda: que pretensão achar que poderia determinar o meu caminho. Que estupidez imaginar que todas as energias desse cosmo estariam submissas a minha vontade. Claro que escolhi coisas e decidi muito seriamente em muitas ocasiões também, mas algo me escapou aqui e ali. Tinha coisa oculta atrás da parede e não era fantasma não. Poderia chamar de anjo, algo mexendo um cordãozinho para eu fazer diferente do que o pagamento das contas exigia que fizesse. Então, dá essa vontade de rir demais quando olho os “fatos” que fizeram da minha vida longo e maravilhoso enredo. E que agora, talvez agora, quando me permito, possa ver, se não tão claro, pelo menos, menos turvo e a nitidez com que vejo as coisas agora as torna todas mais belas. Ah! que linda é aquela cachopa de galhos verdes do manjericão que sempre esteve naquele vaso no canto do terraço! Ah, que delícia é aquele paletó antigo que agora combina com a blusa de gola rolê novinha! Quão belo é o rosto de minha caçula assim de perfil. Ah! Que pele minha morena tem sob esses cabelos lisinhos! Ah! Que coração tem minha princesa... que força tem meu filho advogado... que profunda foi a decisão de meu filho mais velho de ir embora e não mais voltar. Ah, que linda a minha mãe em seus 77 anos de cabelos brancos e rugas profundas, como é suave seu sorriso e quão doce seu conselho!! Ah, como é gostoso abraço de irmãos, de amigo, lembranças de amor. Ah! cantos lindos de pássaros tenho nos dias amanhecidos claros ou nem tanto, mas não importa, amanhecem. Ah! que conjunto espetacular de bens carrego hoje no coração. Tantas dádivas! E isso me torna tão grande, tão especial, tão participante de linda história, afinal! Linda como muitas, sei, essa é a que me compete ter e é a ela que agradeço. Se não foi o que sonhei, deveria ter soltado a imaginação, e sonhado além, mas não importa mais; idealizada ou não, minha realidade é muito maior do que me atrevi a sonhar. Tenha escolhido ou não todos os caminhos que trilhei, foram os mais perfeitos para mim. Se vejo agora tudo tão claro, se os personagens de minha história se mostram em seus reais contornos, devo a esses caminhos que me trouxeram aonde eu mereci. E se tenho, hoje, a capacidade de escolher o que fazer com o resto de minha vida, devo ao que vivi, às lições que aprendi; e posso escolher agora porque posso ver agora. E isso, gente, é tão grande, que já que escolho não enlouquecer, escolho rir, rir, gargalhar, me dobrar de tanto rir, lacrimejar, chorar rios, tanto riso...tanto riso!!

domingo, 31 de maio de 2009

CONVERSINHAS

Nesses tempos de correria insana, o que aqui em casa não é diferente, criei o hábito de falar menos. Não só por não dar tempo de nos falarmos, mas também porque um dia alguém me disse que eu falava demais. Concordei até porque antes eu falava pouco: sei porque outra pessoa me alertou; só que isso é hábito de pouca gente e a maioria das pessoas não deu fé disso enquanto era assim.
Sei que se num dia eu falava pouco e alguém me mandou soltar as cobras, noutro me destemperei a falar demais; aí teve gente que desdisse o que estava dito.
É isso: me chamaram a atenção de novo. Nessa altura, fiquei refletindo se falava demais ou falava na hora errada porque sempre acreditei que é preciso falar até deixar tudo muito bem explicado; mas nada do que digo costuma ser mentira. É que pareço ser meio avoada vez ou outra, às vezes não entendo, então, gosto de trocar idéias. Isso gosto mesmo. Só que pensar a respeito me mostrou que, talvez, a questão não fosse eu falar demais, mas falar quando não queriam ouvir, não importava fossem verdades, mentiras, coisas boas ou não. Acho que é por isso que fui calando, mais e mais, até que, recentemente, acho que para bagunçar mais ainda, um professor do mestrado, ao me dar uma dica em final de disciplina falou: “você devia falar mais sobre o que sabe...”
Bem, então, peraí! Falo ou não falo? Nossa, pensei baratinada, se falo só sobre o que sei como vou aprender o que não sei? Concluí que é preciso muita inteligência para falar: não é só juntar palavras e passar uma mensagem. Deve ser por isso que os políticos preparam antes os discursos e até contratam gente para escrever o que querem dizer.
Sei que essa pulga ficou me rondando, me atazanando certo tempo, então, para achar o tom certo, li muitos livros, uns de uma coisa outros de outra coisa, fiz cursos, perguntei aos sábios, e acabei descobrindo diferentes formas de conversar, falar o que preciso, transmitir o recado; mas não pensem que isso já funciona: continuo pesquisando...
Isso se deu de tal forma que até aqui em casa tomo cuidado com o que falo. Não dá para apontar o dedo e mostrar o lixo sob o tapete... tem que ir devagar, pé ante pé. Achar a hora certa... o que acabou, hoje cedo, nos levando a uma dessas conversinhas; importante essa, importantíssima, aliás.
É que vejo minhas filhas lutando para tirar as asas dos casulos e fazer com que suas cores e capacidades se estendam até onde devem ir. São mulheres feitas, de empregos, namorados, carteiras de motorista: não precisam que eu continue a vigiar se deixaram comida no prato, o que vão vestir, aonde vão aos finais de semana; mas também não quero que passem ao largo os meus palpites quando foram aprendidos a duras penas, pelas quais, não necessariamente elas precisam passar para aprender. Acredito que aprender é coisa boa demais e não só obrigação ou castigo por algo que não se sabe ter feito ou não; tantos esses os mistérios que nos rodeiam.
Então, falei – em duas ou três conversinhas pequenas – que crescer dói. Uso meu exemplo, de como, por volta dos dezoito anos, sentia a pele doer quando descobria que estava crescendo. Não crescendo de tamanho, mas crescendo em responsabilidades e, principalmente, em possibilidades. Falei que é preciso esforço para reconhecer-se responsável pelos próprios sonhos e pelas decisões que levam a eles e que, em dado momento, pais, mães e demais vigilantes, passarão para um segundo plano. Disse que crescer significava entrar em cena na própria vida e tomar conta dela, fosse como fosse; hora de soltar amarras, de se apresentar à estrada.
Expliquei que em todas as coisas, seres e fatos há pelos menos dois lados: o difícil e o fácil; e que o fácil existe para alimentar nosso espírito para enfrentar o difícil, mas que no fim tudo valeria a pena. Lembrei histórias trágicas de vidas que conhecemos tão pertinho de nós, para mostrar que, tínhamos tudo para sermos felizes e que afinal, mudar era bom demais, que cada pedacinho de vida deveria ser saboreado. Sim, falei que crescer é fantasticamente delicioso: nos dá a mais plena sensação de liberdade; e que não precisa sentir culpa ou ficar com dor na consciência por se tornar dono do próprio nariz; e que não é necessário perder os pais ou os amigos de antes; apenas é preciso vê-los todos sob novas perspectivas: as de quem cresceu para construir o próprio destino. Expliquei também que crescer não é fazer só algumas coisas de adulto, mas fazer todas elas, ou seja, se já se é capaz de pagar pelo próprio lazer, o próprio carro, a viagem, também deve ser capaz de pagar o almoço, a conta de luz, o condomínio e tudo o mais; aí sim se é grande o suficiente para buscar o próprio universo. E mesmo que existisse a parte difícil do crescimento, essa seria apenas uma passagem que se fica grato um dia por transpor com coragem.
Então, são essas as conversinhas que temos agora, misturadas ao suco de melancia, ao clic do celular, à mensagem do MSN no lap top, tudo sobre a mesa do café da manhã, regado à música vinda do carro – de um dos namorados – sendo lavado, caprichosamente, no pátio branco da frente.
São conversinhas, assim, boas que só, entre risos e tilintar de vida, que temos agora, afinal, como um ditado daqui de casa: haja o que houver, “tudo ficará bem...”, inclusive, termos conversinhas tão simplezinhas... de tamanho significado, mas comigo agora falando na hora, no lugar e do jeito certos, sobre o que sei e para quem quer ouvir.

Por
Magda R M de Castro
Brasília – DF, 31 de maio de 2009.

terça-feira, 19 de maio de 2009

OUTONO EM BRASÍLIA

A primeira coisa que acontece quando entra o outono em Brasília é a paineira da minha rua ficar nua. Não é um nu curvilíneo, de derrubar véus e descobrir estrelas como geralmente assim é quando amantes se desnudam a primeira vez e ficam se olhando encantados. Ah, que coisa boa!
O nu do qual estou falando é dolorido, parece as hastes escuras quererem se quebrar a qualquer momento. A pobre da paineira, antes empencada de flores gloriosas, fica lá na esquina, exposta em sua real formatura, mostrando as linhas profundas de suas entranhas. Parece ter vergonha disso? Brincadeira árvore ter vergonha!
Não estou pensando que a paineira despida tem vergonha: acho que quem tem vergonha sou eu. É verdade! Tenho vergonha de não gostar desse tempo, pela tristeza, e, sei que ele tem seus motivos como os outros tempos. Tenho vergonha de viver mais esse milagre e só querer ficar à espreita de quando as flores voltarem. Tenho vergonha de desperdiçar o tempo do outono... mas a paineira não fica bonita não, assim, pelada.
Sei que serão só poucos dias e com o avanço da nova estação, as folhas verdes voltarão para vestir os galhos suplicantes. Aí, a árvore tão mutante se transmutará na vida, simplesmente assim. Depois da odisséia das paineiras, o outono traz a poeira. Ainda demora uma semana ou duas para que ela invada tudo, como em todos os anos: é que as chuvas ainda estão rondando e hoje mesmo cedinho havia nuvens pesadas no céu abobadado do Eixo Monumental: parecia que ia chover; e olha que já passou da metade de maio. Então, por enquanto, ainda não tem muita poeira, mas ela já lá vem...
Só que a poeira traz companhia: o frio. Esse já bateu nas portas de casa; não satisfeito, invadiu as janelas, bateu os toldos, começou a fazer cantigas de assobios pelos telhados e vidraças desavisadas. Já exigiu cobertores e edredons fora de armários, lavados e sacudidos. E o sol das manhãs do meu coração se esconde agora, todas as vezes que o dia chega. Se esconde atrás das serras tão distantes e deixa Brasília indecisa se amanheceu ou não, se é hora de sair da cama ou não.
Esse é outro problema do outono. Sair da cama no inverno a gente já se acostumou, mas sair da cama no outono que é logo depois dos dias espetaculares do verão, tanto júbilo, tanta luz, é mais difícil. É que parece tudo estar no embalo do calor, na liberdade de roupas soltas e coloridas e aí esse outono cinzento chega e bota a gente para vestir a calça xadrez da década passada – é que ela é quentinha e ainda não deu tempo – “tempo” – de comprar uma nova. Ah, tiro as roupas antigas do armário, mesmo!
Sim, mesmo; é porque tem coisas até bem fofas embrulhadas com cuidado. Parece terem levado junto, para o silencioso sono de um ano, as risadas, as brigas e as lembranças do vivido, o de bom e o de mau. Parece que abrir os pacotes agora, buscando peças que podem aquecer sem excessos porque também não está tão frio assim, abre lembranças junto. Acho que esse é um bom exercício: desempacotar lembranças. E cada uma das roupas que vão nos aquecer no outono repentino, e depois no inverno sonolento, vão sendo espalhadas na cama larga e mostrando os seus "dentes" – às vezes de risos, às vezes de choro – mas vão servir para o que servem mesmo assim.
Depois das paineiras, da poeira, do vento e das roupas ainda tem outono em Brasília. É no outono que nos despedimos, por breves meses, das flores em abundância. Há flores ainda, das tímidas patas de vaca, de paineira retardatária que a gente fica admirando entusiasmada e teimosamente, de bougainvilles aqui e ali. Tem uma espécie que resiste a esse entristecimento do tempo: a poderosa espatódea, também conhecida como tulipa africana. Essa é árvore vinda da África, claro; forte, alta, espalha flores carnudas nas calçadas que se a gente pisa, escorrega. Tem uma dessas na pista central do meu bairro e impera altaneira como que pirraçando as paineiras envergonhadas; também há dessas em outras partes da cidade, plantadas ainda na fundação. Há flores, sim, mas, sabe, como é... não é tempo de flores, ainda não.
É outono agora, em Brasília. A cidade se prepara para adormecer o inverno, descansar suas lides, desacelerar seus calores; continua viva, as pessoas trabalhando em suas tantas repartições, os carros andando de lá para cá como formigas em véspera de chuva, o mundo girando... e o outono está aí. Brasília o aceita, o incorpora aos seus hábitos, o leva às caminhadas sem pressa. Assim deve ser o outono, o desarrumar dos enfeites, o desnudar de inutilidades, o descobrimento dos cernes, o escancarar de lembranças que com o tempo vão se tornando doces mesmo tendo nascido amargas.
Assim é o efeito do tempo; o efeito do repouso que o outono trás. Repouso, se não de trabalho, repouso de alma quando a gente observa que a natureza por inteiro, não só o tempo, também retira dos próprios ombros o peso de ser natureza; se não para sempre, por um tempo; no outono especialmente, quando o frio que virá dá espaço para sagradas preparações.
Claro que não estou falando do frio que virá como se fosse aquele que ataca o Saara à noite, ou do que deve existir nas montanhas nevadas; não é não. Estou falando desse frio de outono que é pequeno, sim, mas é frio, não deixa de ser porque é pequeno. E a gente não decide se está frio ou nem tanto que precisa agasalho, que precisa calor. É um frio que fica sem estar, que esfria até o osso mas não está tão frio. É um frio de outono, não é frio de inverno , talvez por isso é que fica por aí, caladinho e gelado, avisando assim o que vem adiante... como se fosse saudade que mata a gente devagarinho...
É que é outono? É por isso?

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 19 de maio de 2009.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

MÃE, BICHO ESQUISITO

Mãe é uma coisa esquisita:
Não tem personalidade,
Não tem gosto próprio,
Não tem sonho próprio.

Mãe é uma coisa estranha:
Vira móvel
Vira cabide
Vira sábia
Virá intrometida
Vira chata
E vai virando, virando, revirando.

Revira a terra, os céus e mares,
Revira o estômago, os olhares,
Revira a mesa , o armário de roupas,
E vira de novo:
vira bruxa, faxineira, cozinheira
lavadeira, passadeira, rezadeira, parteira...

Mãe não se explica: ou se é mãe ou se tem mãe.
Mãe todo mundo tem, diferente de pai.
Aí ela é pai também.

Mãe não tem sentimentos:
Chora se o filho chora, aí muito mais,
E ri se o filho ri, aí demais também.

Mãe não tem vida própria,
Só quando sobrar do tempo
que leva para cuidar do mundo.
Nem pede coisas, é só: isso para filho, isso para filha

Mãe não tem nome: é “Maiê!”
Não é profissão, quem paga uma mãe?
E ela cobraria?
Quem já viu isso?
É claro que é de graça!

Sim, talvez essa a definição: graça
De graciosa de gracinha de abençoada.
Isso mãe é: por sua eterna abnegação.

Mãe é sagrada.
E dela não se exige a menor explicação.
Só uma mãe sabe como e porque faz tudo que faz,
Será que faz por ela?
Ela guarda, só ela sabe, de tudo a razão.

Mãe é bicho esquisito.

Magda R M de Castro
Brasília, DF, 08 de maio de 2009.

AMANHECENDO

É assim que me acha o dia, assim...
Aliás, nem estou... acordada.
Continua, a minh’alma estirada no leito,
da noite – escura, claro – que passei lembrando...

Amanheci – porque se amanhece ou se morre;
Mas não viva, e não morri, ainda
Respiro, vejo, sinto, calor e mais, frio
Dentro, correntes ventando
pelas minhas concavidades, gelando...
Amanheci porque amanhece mesmo,
mas não acordei mesmo tentando,
respirando,
buscando
Porque dói, buscar
o ar para respirar
Tem você demais nele.

Não quero,
Pensar ainda, ainda, ainda?
Tanto tempo...
Inútil, nada mudou
Não sofre... não é bem assim...
Ninguém disse
sabem que de mentira
eu saberia.
Eu sei; sempre soube.
Só não me peçam para aceitar:
a dor fica maior que eu...

Desistir? Quem dera!!
E porque está assim?
Não sei fazer diferente...
E esquecer? Não, mesmo cansando de lembrar.
E continua amanhecendo?
Sim, só...
Saia por aí, ame de novo.
Ah! Não! É meu coração quem manda.
Então quer voltar?
Não... não vim até aqui para desistir.
Então, sustenta.
Sustento... mas amanheço, mesmo, assim.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 18 de março de 2009.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

E.COMMERCE

“Fulana, que sonhos você coleciona para seus filhos?”
Ah, que pergunta imoral!! Que tamanho de pergunta! E olha, só para vender livros. Foi a Abril Coleções que fez essa pergunta, jogada, num domingo de manhã cedinho que começou às avessas, para começar a conversa: sem sol. É aquele desespero domingo sem sol de manhã: o dia não começa. A gente fica zanzando sem achar o que fazer porque se abrir as janelas o vento está frio. Ir lá pra fora tem que ser com blusa quente porque está frio. E olha que são as primeiras semanas do outono. É porque a gente se acostuma com tudo e nos acostumamos ao clima de deserto, causticante, ressequido e farinhento. Agora que o domingo calado faz a gente calar dentro de casa é essa contrariedade.
Mas contrariei mesmo foi com o atrevido anúncio na minha caixa postal. A abri automaticamente como faço todas as manhãs, pois quem sabe o Obama me descobriu e vai resolver todos os meus problemas. Não era o Obama nem o Papa nem o Lula e ninguém no mundo estaria batendo na minha porta para me ajudar porque esse mundão é gigantesco demais e acaba que todos ficam sozinhos. Ei, vem vindo alguém aí?
Vem vindo, a Abril Coleções querendo vender livro. Típico vendedor mesmo que bate cedinho às portas enquanto as pessoas ainda não saíram para as ruas. Importante essa estratégia agora de vender coisas por e-mail porque as pessoas saem cada vez menos às ruas; por motivos bradados aos sete ventos nos trancamos em casa e ponto.
Eis o anúncio e gente, contrariei mesmo com o tamanho da resposta que ela exigia. Isso é jogo baixo e talvez fosse tempo de dar um basta nisso. Os gênios do Marketing ficam estatelados em cadeiras girantes, batendo aqueles lapizinhos na testa e criando, criando. Criando formas de nos despedaçar com a pergunta mais infeliz do mundo, buscando formar dos pais tirarem o pão da boca para comprar uma besteira qualquer; é que os vendedores ameaçam a gente de sofrer eternamente com a culpa de não ter “comprado” para garantir os sonhos dos filhos. Ah, porcaria! Indecência!
Quem são esses “abrils” que me fazem uma pergunta dessas? Como se atrevem a invadir minha casa e esfregar na minha cara que além de tudo, frisem, além de tudo, tenho que garantir os sonhos dos meus filhos. Ah, puta merda! – meu computador não aceita essas palavras.
Gente, eu não dou conta não! Os meus sonhos estão amarrados num saco plástico e bem amarrados para não saírem por aí fazendo escândalos enquanto eu tenho que continuar a botar o pão na mesa. Fiz isso a vida toda e isso não acaba não? Me preocupei em dar aos meus filhos um pouco de conhecimento mesmo com as escolas, como eu, tão insuficientes; tentei dar a eles algumas idéias de moral e honradez, autenticidade e desconfiômetro pela nossa pequenez, ah como tentei. Fiz migalhas de mim, me sequei, me ignorei, sempre fiquei para depois, depois, depois até virar nunca, e nem esse nunca tinha nadinha de meus sonhos.
Ah! que atrevimento me perguntarem se estou preocupada com os sonhos dos meus filhos. Claro que me preocupei com eles, sim, mas não tenho que fazê-los acontecer, essa é a grande estupidez que querem botar na minha cabeça. Isso não é possível, viver sonhos dos outros, e se esses gênios de Marketing fazem isso com a gente é porque são mesmo sacanas. Que grande porcaria virou esse nosso mundo capitalista que estraçalha o coração de uma mãe para vender o supérfluo?. E olha que livros há muitos na minha casa; muitos comprados em brechós; tirei livro até de lixeira, para que meus filhos lessem o mais que pudessem; mas numa hora dessas até seria bom não saber ler.
Ora, qual é o interesse real dessa editora em fazer essa pergunta? E quantos não vão passar o domingo com essa coisa na cabeça? É isso mesmo, os marketeiros acertaram em cheio, sim, mas não vou dizer que de forma honesta. Isso é chantagem. Chantagem da feia mesmo que atiram sem nem olhar a direção do tiro e não importa em quem acertam. Pois é, acertaram em mim e não gostei nadinha!
Sei que é importante vender, mas as propagandas estão além do limite da decência. Já não agüento mais ver mulher pelada vendendo carros, famílias de risos perfeitos vendendo casas, crianças magrinhas vendendo biscoitos recheados, paisagens lindas e verdes que não existem mais, quase; quase tudo mentira!
E agora, onde é que já se viu isso? Colecionar sonhos dos filhos? Caramba! Até onde os pobres pais têm que ir? Viramos reféns da coisa mais sublime que um ser humano pode ser: pais. Temos que dar tudo, calar a boca e agora temos que “colecionar sonhos”? E que sonhos são esses? Sonho de ajudar aos pobres de verdade? Não. Sonho de estraçalhar menos energia e água? Não. Sonho de parar de consumir besteiras e ter consciência da montanha de lixo que esse mundo está juntando? Não. É sonho de consumo, puramente.
É que está dando nos nervos mesmo! As propagandas estão passando do limite. Tem uma que vejo e revejo só de teima. A de uma camionete, essas então, são de tirar o chapéu para a estupidez. Nessa, a camionete entra na selva. Uma que não existe porque tem leão, cobra, rinoceronte, crocodilo e macaco todos muito juntinhos, ficção mesmo. A coisa passa aqueles pneus grossos sem dó sobre as pedras, o riacho, o capim. Sai arrancando os pedregulhos do lugar, levando terra para a água e avança sobre a paisagem linda. Arregaça tudo por onde passa. Qual é a mensagem? O poder dos homens sobre os animais? Que coisa mais antiga! E ainda tem gente que acredita que vai comprar um carro daqueles e sair por aí domando leões. E para ficar na cidade, gente, olha só a incoerência. Comprar um carrão para ficar rodando nas ruas de asfalto. Menos mal, claro, porque fazer a estrada de asfalto já tinha estragado tudo mesmo, então pelo menos não vai estragar outro lugar; mas a mensagem ainda, vejam bem, ainda diz que a natureza é selvagem e que precisamos nos “armar” contra ela. Quanta idiotice!
Daí acordo num domingo de manhã que, por sua vez, não acordou ainda e a primeira coisa que me deparo é com uma ameaça de que serei menos mãe ou menos qualificada mãe se não estiver fazendo coleções de sonhos para meus filhos. Ah, por tudo que é sagrado nesse mundo, isso é mais do que se permite ao menor dos ratos. Aliás, há algo sagrado ainda? Até onde mais vão esses criadores – de fantasmas e pesadelos – para fazer com que uma pessoa compre alguma coisa? E quão fracos somos que ainda acreditamos nessas enganações?
Isso me lembra que conheço uma senhora que faz faxina em casas alheias. Mora num barraco, de aluguel, mas a televisão está lá, paga a infinitas prestações. Então, a filha mais velha vê um comercial de celular. Lindo celular cheio de fitinhas e coisas penduradas. Deveria permitir a comunicação entre duas pessoas, mas faz mais que isso. Ilude a pobre menina de que a sua vida miserável vai se transformar em um conto se tiver aquele celular. Aquele celular iria transformar o seu colchão encardido numa cama com dossel e cortinas de cetim; iria transformar o esgoto do seu beco em lindo riacho cristalino e ela encontraria um amoroso companheiro que a trataria com toda gentileza. Ah, mãe, quero aquele celular! Então, a pobre, duplamente, tira do feijão os trocados para pagar o celular para a filha. E calada ainda por cima!
História rotineira, comum, de todos os lares. Mentiras que transformam os seres humanos em cabides para saírem pela vida exibindo badulaques. E quando não os adquire, as pessoas se revoltam, precisam tomar remédios, se estressam, se deprimem. Quando descobrem que aquilo não cai do céu, que terão que trabalhar anos e mesmo assim não conseguir aquilo tudo, partem para a agressão. Se revoltam, roubam, batem em velhinhas, em mães desesperadas pela “culpa” e pela dor de ver o filho tão “humilhado” por não ter todos os “brinquedos” do mundo.
O que corrói nossos jovens, discurso ultrapassado porque isso é mal também de muita gente crescidinha, é a ilusão frustrada, coisa difícil mesmo de suportar. É assim que egos tão bem alimentados pelas geniais criações de marketing se tornam máquinas impensantes; o coração que deveria abrigar bons sentimentos se torna baú de ressentimentos. Depois explode em comoções públicas e atos de show business. Afinal, talvez não passe disso mesmo a vida que vive hoje o ser humano: apenas um ato de grande show.
Só que nós, os alvos desses artifícios todos, não passamos de figurantes e não nos cabe nem ao menos parte dos aplausos. Até onde vão, será que tem limites, essas pessoas com poder de fazer tão aviltantes perguntas? Ouso até imaginar a cara de algum desses caso lesse o que escrevi. Devem, mesmo que digam outra coisa, pensar: “mas fui efetivo, logo, competente... atingi o alvo.” Tá; pode ser, mas se não posso fazer mais nada, posso deletar a propaganda, e sem responder à pergunta. Não tenho, mesmo, que responder à pergunta da mensagem.
É isso que dá abrir o e-mail num domingo de manhã sem sol.

Magda R M de Castro
Brasília, DF, 26 de abril de 2009.