quarta-feira, 11 de junho de 2008

CÃES


Brasília tem algumas convenções diferentes de outras cidades do Brasil. Fora a arquitetura, fora o fato de ser sede de governo, fora não ter esquinas. O povo de Brasília respeita pedestres, ciclistas e motoqueiros, protege as árvores, ama flores, tem todas as cores e raças. O Distrito Federal abriga as nascentes de três bacias hidrográficas da América do Sul e é o sonho de oito em cada dez brasileiros, numa perspectiva modesta.

Brasília também tem o privilégio de ostentar o mais espetacular monumento criado pelo ser humano, o Plano Piloto e seus palácios, circundado por jardins floridos e avenidas espaçosas por onde passam carros do embaixador da Inglaterra ou de multimilionário chinês, mesmo que, ao lado, passe também, faceira, a carrocinha do catador de papel guiada por um jumento magro. É a Brasília dos contrastes.

Ter contrastes não é privilégio. È que aqui se pode vê-los muito claramente: há espaço para a comparação de grandezas diferentes, para colocar o olhar em perspectivas.

E perspectivas aqui não faltam. São muitas, todas as que cada um quiser ver ou encontrar. Tanto se pode passar fome quanto ficar rico sem nem mesmo escrever o próprio nome. Claro que já foi mais fácil um dia, mas ainda há perspectivas: há coisas começadas e não terminadas, outras que nem foram iniciadas e que aguardam, pacientemente, em seus leitos de nanquins para sair à luz do dia. Também se pode ver o céu, iluminado como poucos, já que não tem mar e ficar feliz tanto quanto.

Mas há coisas só de Brasília que são valiosas para quem vive há muito tempo na cidade e isso faz toda a diferença. Pena que algumas, muitas vezes não são percebidas por quem vem de fora. Um exemplo é o silêncio. Esse é grande tesouro desse lugar. Há placas discretas nas pistas de entrada avisando: “Em Brasília, evitamos buzinar.” E um buzinaço aqui acontece quase somente quando uma avenida é bloqueada para passar o cortejo presidencial, uma autoridade estrangeira ou uma passeata de sem terra, sem teto, sem crédito.

É que Brasília, naturalmente, também é o alvo predileto dos que não têm qualquer coisa. Muitos ainda acreditam que se enfiar em camisetas customizadas e chapéus e empunhar uma bandeirola vão chamar a atenção dos tomadores de decisões no Planalto. Ledo engano. Quem decide não fica nas ruas. Na maioria das vezes, os gabinetes são em subsolos ou detrás de cortinas pesadas. E a passeata atinge somente os pobres mortais que têm horário para cumprir. É verdade: tem gente em Brasília que trabalha, estuda e que tem horários; como em outras cidades.

Mas o silêncio, ah esse! Depois que os bares fecham, à primeira hora da madrugada em ponto, o silêncio chega de mansinho. Os carros vão rareando, não há mais ônibus para parte alguma, a cidade cala. Dormem também as árvores porque é quando o vento amaina. E não há apitos de trens ou fábricas ou navios. Os aviões madrugadores são raros, insuficientes para incomodar o silêncio do negrume. É o silêncio sagrado, do descanso, de cidade de interior. Isso é mais uma característica de Brasília: combina os jogos da corte com a brejeirice do interior. E silêncio. Sem buzinas de dia, sem barulhos à noite.

Exceto é claro pelos cachorros de duas casas vizinhas à minha. No momento, vivem nelas pessoas que vieram recentemente de outros lugares do Brasil, não sei de onde. Diferente do Plano Piloto, nessa vila as casas são geminadas, juntinhas, sem grandes quintais, apenas pátios tímidos e espremidos. Se alguém falar um pouquinho mais alto deve cuidar para não contar segredos. Brigas de casais, então, não fica uma sem que todos ouçam. Mas voltando aos cachorros, são dois que latem sem parar. De dia um e de noite outro. Tirar uma soneca em tarde de domingo ou feriado, impossível. Dormir a noite inteira sem acordar também já não me lembro quando consegui porque meu quarto dá direto no pátio desses pobres animais. Latem furiosamente, passe pessoa ou fantasma ou coisa alguma. Para ler ou trabalhar tenho que fechar janelas e portas e para dormir, ah!! é sempre uma novela: vigio, espero uma trégua na barulheira ou então jogo comida.

Domingo desses, meu filho se irritou tanto reclamei que sugeriu: “Mãe, vamos agora mesmo comprar um tampão de ouvido!” Fomos. Passamos juntos ótimos e raros momentos: não ficamos só na compra de tal objeto, fomos ao cinema e passeamos como dois antigos amigos pelos corredores de um centro comercial simpático, entre os muitos de Brasília. Gostei. Afinal, os cachorros tinham mostrado a que vieram. Estava orgulhosa de caminhar ao lado daquele homão, falando com fé do futuro. Fiquei imaginando pessoas nos olhando e achei que dava gosto ver a cena. Até arrisquei eu mesma ficar de longe olhando, em perspectiva.

É assim Brasília.

Magda R M de Castro Brasília (claro), 11 de junho de 2008.