terça-feira, 19 de maio de 2009

OUTONO EM BRASÍLIA

A primeira coisa que acontece quando entra o outono em Brasília é a paineira da minha rua ficar nua. Não é um nu curvilíneo, de derrubar véus e descobrir estrelas como geralmente assim é quando amantes se desnudam a primeira vez e ficam se olhando encantados. Ah, que coisa boa!
O nu do qual estou falando é dolorido, parece as hastes escuras quererem se quebrar a qualquer momento. A pobre da paineira, antes empencada de flores gloriosas, fica lá na esquina, exposta em sua real formatura, mostrando as linhas profundas de suas entranhas. Parece ter vergonha disso? Brincadeira árvore ter vergonha!
Não estou pensando que a paineira despida tem vergonha: acho que quem tem vergonha sou eu. É verdade! Tenho vergonha de não gostar desse tempo, pela tristeza, e, sei que ele tem seus motivos como os outros tempos. Tenho vergonha de viver mais esse milagre e só querer ficar à espreita de quando as flores voltarem. Tenho vergonha de desperdiçar o tempo do outono... mas a paineira não fica bonita não, assim, pelada.
Sei que serão só poucos dias e com o avanço da nova estação, as folhas verdes voltarão para vestir os galhos suplicantes. Aí, a árvore tão mutante se transmutará na vida, simplesmente assim. Depois da odisséia das paineiras, o outono traz a poeira. Ainda demora uma semana ou duas para que ela invada tudo, como em todos os anos: é que as chuvas ainda estão rondando e hoje mesmo cedinho havia nuvens pesadas no céu abobadado do Eixo Monumental: parecia que ia chover; e olha que já passou da metade de maio. Então, por enquanto, ainda não tem muita poeira, mas ela já lá vem...
Só que a poeira traz companhia: o frio. Esse já bateu nas portas de casa; não satisfeito, invadiu as janelas, bateu os toldos, começou a fazer cantigas de assobios pelos telhados e vidraças desavisadas. Já exigiu cobertores e edredons fora de armários, lavados e sacudidos. E o sol das manhãs do meu coração se esconde agora, todas as vezes que o dia chega. Se esconde atrás das serras tão distantes e deixa Brasília indecisa se amanheceu ou não, se é hora de sair da cama ou não.
Esse é outro problema do outono. Sair da cama no inverno a gente já se acostumou, mas sair da cama no outono que é logo depois dos dias espetaculares do verão, tanto júbilo, tanta luz, é mais difícil. É que parece tudo estar no embalo do calor, na liberdade de roupas soltas e coloridas e aí esse outono cinzento chega e bota a gente para vestir a calça xadrez da década passada – é que ela é quentinha e ainda não deu tempo – “tempo” – de comprar uma nova. Ah, tiro as roupas antigas do armário, mesmo!
Sim, mesmo; é porque tem coisas até bem fofas embrulhadas com cuidado. Parece terem levado junto, para o silencioso sono de um ano, as risadas, as brigas e as lembranças do vivido, o de bom e o de mau. Parece que abrir os pacotes agora, buscando peças que podem aquecer sem excessos porque também não está tão frio assim, abre lembranças junto. Acho que esse é um bom exercício: desempacotar lembranças. E cada uma das roupas que vão nos aquecer no outono repentino, e depois no inverno sonolento, vão sendo espalhadas na cama larga e mostrando os seus "dentes" – às vezes de risos, às vezes de choro – mas vão servir para o que servem mesmo assim.
Depois das paineiras, da poeira, do vento e das roupas ainda tem outono em Brasília. É no outono que nos despedimos, por breves meses, das flores em abundância. Há flores ainda, das tímidas patas de vaca, de paineira retardatária que a gente fica admirando entusiasmada e teimosamente, de bougainvilles aqui e ali. Tem uma espécie que resiste a esse entristecimento do tempo: a poderosa espatódea, também conhecida como tulipa africana. Essa é árvore vinda da África, claro; forte, alta, espalha flores carnudas nas calçadas que se a gente pisa, escorrega. Tem uma dessas na pista central do meu bairro e impera altaneira como que pirraçando as paineiras envergonhadas; também há dessas em outras partes da cidade, plantadas ainda na fundação. Há flores, sim, mas, sabe, como é... não é tempo de flores, ainda não.
É outono agora, em Brasília. A cidade se prepara para adormecer o inverno, descansar suas lides, desacelerar seus calores; continua viva, as pessoas trabalhando em suas tantas repartições, os carros andando de lá para cá como formigas em véspera de chuva, o mundo girando... e o outono está aí. Brasília o aceita, o incorpora aos seus hábitos, o leva às caminhadas sem pressa. Assim deve ser o outono, o desarrumar dos enfeites, o desnudar de inutilidades, o descobrimento dos cernes, o escancarar de lembranças que com o tempo vão se tornando doces mesmo tendo nascido amargas.
Assim é o efeito do tempo; o efeito do repouso que o outono trás. Repouso, se não de trabalho, repouso de alma quando a gente observa que a natureza por inteiro, não só o tempo, também retira dos próprios ombros o peso de ser natureza; se não para sempre, por um tempo; no outono especialmente, quando o frio que virá dá espaço para sagradas preparações.
Claro que não estou falando do frio que virá como se fosse aquele que ataca o Saara à noite, ou do que deve existir nas montanhas nevadas; não é não. Estou falando desse frio de outono que é pequeno, sim, mas é frio, não deixa de ser porque é pequeno. E a gente não decide se está frio ou nem tanto que precisa agasalho, que precisa calor. É um frio que fica sem estar, que esfria até o osso mas não está tão frio. É um frio de outono, não é frio de inverno , talvez por isso é que fica por aí, caladinho e gelado, avisando assim o que vem adiante... como se fosse saudade que mata a gente devagarinho...
É que é outono? É por isso?

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 19 de maio de 2009.