terça-feira, 18 de agosto de 2009

UMA VIAGEM

Hoje cheguei de viagem muito cedinho: o dia já tinha raiado mas eu queria continuar de olhos fechados, embolada naquela poltrona de ônibus. Era um ônibus especial, fretado, para levar a banda à festa; e eu aproveitei a passagem mais em conta pra rever meu povo de longe... fui, voltei, e cansada da longa viagem queria apenas ficar ali, cochilando... acho que nem porque estava cansada realmente, talvez, porque o que queria mesmo era ter ficado lá.
E queria ter vindo para cá. Quanta coisa boa aqui: o sossego, o correr lento do relógio, a comidinha sempre igual, as campainhas caladas. E também queria ter ficado, as coisas boas de lá: os abraços, os risos, as conversas sem pressa, agora rumando para dias melhores, continuar já não é tão difícil. E como a boa a cama que me recebe, o armário que abro em busca de seus cheiros de roupa limpa e macia. A escova de dentes – que esqueci qual era minha. O mesmo pente marrom, alguém tirou meu desodorante do lugar; nossa, minhas roupas estão fora dos cabides.
Admiro a criação da caçula na caixa de papelão. Passeio os olhos pela mesa do ateliê em sua fartura de objetos coloridos... verifico os mesmos quadros; esses estão quietos no lugar. O terraço exibe uma pimenteira exuberante de flores brancas... peço para guardar as proteções plásticas das cadeiras, servirão no fim do ano.
Aliás, alguém reclamou de casa vazia. Não sinto mais essa pena, me parece conformei, acho pouco, não. Não me conformei, mas aprendi a gostar dos dias todos sejam eles iluminados ou não, calados ou não. É que pareço não ter tempo para reclamações agora. Não posso perder tempo de ser feliz, me recuso a gastá-lo em minúcias.
Fui por dois dias, para abraçar, ficar junto, ouvir vozes amadas, sorrir sorrisos sorridentes... não daria tempo de amargar, reclamar, rebelar. Das minúcias não me ocupei. Dos detalhes observei, meu neto está crescendo; meu filho mais centrado; e assim também a filha mais velha. Um sorriso desenhado teimosamente no rosto da caçula: ela se determinou a sorrir, mesmo se sangrar. Parece ter sido um pacto: nenhum mau gosto seria sentido nesses dois dias inteiros, exatos, um começando cedinho e o outro terminando ao pé da noite. Exatos momentos para tomar o café da manhã tantas vezes, chegando um chegando outro. Exatos para falar ao telefone o imprescindível. Exatos para combinar o almoço churrasco, tão raro, nem todo mundo aprecia em casa, mas foi tão bom reunir quatro de nós ao redor do carvão que se esmaecia e ainda saborear um vinho, uma cerveja, saborear, de estralar a língua, as companhias, falando de presentes, de planos, de apertos, de decisões, de amanhãs. Exatos momentos para abraçar, comer pipoca, tomar guaraná. Exatos momentos para falar de amor, fazer cafuné, esquecer qualquer dor; deixa essa prá depois. Exatos dois dias para mostrar, impossível, o amor imenso pela família linda que cresce, acrescenta, segue, se sustenta, mesmo com a mãe longe.
É que me deu na telha e nada consegui fazer para mudar esse chamado. Divino, instintivo, teimoso, o que seja, essa vontade de mudar de endereço foi mais que todos nós juntos. E mesmo que a alegria de viver, a razão de respirar esteja na cidade grande, eu precisava mudar; tinha que mudar. Por mim, pela minha lucidez claudicante ... e, sobretudo, por eles.
Me recusei a arriscar ficar frustrada, tive um medo abismal de me tornar uma mãe torta, meia mulher, meio gente. E mudei. Por dentro, por fora, o meu rosto agora com vestígios de amplidões, meu olhar com destino ao infinito, reflexo de uma alma em paz que pode circular pelas eiras e beiras desse meu lugar de menina. Vim, e me deparei com o passado transformado, apenas fios tênues que não têm como me magoar: não me dizem respeito. E por que não? Poderia alguém perguntar. Porque não têm a minha cara, o meu toque, o meu jeito. Recebo o que existe aqui com olhar benevolente, de visitante, por enquanto, certa de que tudo e todos que aqui estão também têm seus valores, suas angústias, suas montanhas para galgar. Daqui em diante, sim, aí posso fazer um canto, uma cidade, um mundo, o que seja, um novo lar com o que tenho agora, com o que trouxe na bagagem. Será como sonhei? Espero que muito além porque aqui descobri que até sonhar a gente pode, e muito.
Por outro lado, estava de volta, mas queria não ter voltado... É essa gangorra: vai, não vai; fica, não fica. Seria simples se todos viessem junto. Utopia. Então por que não ficou? Que pergunta boba. Agora é tarde, como é que posso deixar as sementes que joguei à terra? Quero ver se elas vingam, ora. E como vou deixar minha mãe só de novo? Ela pode ir junto com você. Ah, pode, claro que pode! Seria do gosto dela?
Está tão ruim assim? Não mesmo!! Está ótimo, o que tira o tempero é a saudade, a falta do convívio sem fim. Mas que tal pensar que afastar-se um pouco pode criar novas perspectivas para todos? Amadurecer um, sarar a raiva do outro, dar tempo de outro testar um pouco de liberdade. Sim, há muito o que aproveitar. Também nesse tempo, há o que aprender...
E esse mundo é tão encantadoramente vasto. E essa fase da vida dá a chance de fazer ainda tanta coisa; por mim e pelos que amo. Ah! Como é bom ter a chance de tentar, de sacudir a poeira, de recomeçar, de tentar vida nova... claro que é uma baita confusão: quero ficar, quero não ficar. O que mais quero é ficar onde? Nos dois lugares; talvez um terceiro ou quarto. Quantas sou? Uma? Mesmo? Que pena!
Então, eis-me de volta, no ônibus fretado, à pequena cidade. Cheguei cedinho, o dia escancarando um esplendoroso sol frio; o vento até que parado dessa vez. Novamente não havia táxis por perto. Uma colega de escola, recém-reconhecida na viagem, encarou a caminhada comigo. Fomos até o prédio dela, que me fez gravar o número do apartamento. Me fez também prometer que a visitaria quando então me re-mostraria a cidade e me levaria aos endereços de outros colegas de antigamente. Fiquei surpresa ao saber quantos tinham continuado no lugar...
Entregue a amiga à casa, retomei o caminho até minha atual residência. Chamei uma vez pela minha mãe – ainda não fiz uma cópia da chave para mim – mas ela ainda dormia. Dormia e resolvi que dormindo ficaria até a hora costumeira dela. Eu, podia esperar. Aconchegada à sacola e à bolsa, recostada na cadeira branca de metal, esperei. Aguardei na varanda até chegar quem tivesse chave. Isso durou uns vinte minutos, apenas; depois, entrei aliviada de poder tirar os sapatos.
Por
Magda R M de Castro
Abaeté, MG, 17.08.2009