quarta-feira, 8 de junho de 2011

UMA NOITE QUALQUER

Eu não tinha entrado no quarto... ainda. Entrei naquela noite porque estava trabalhando na saleta e a porta bateu ligeiramente no umbral. Melhor: encostou levemente, um barulho mínimo, um toc surdo que não seria audível se o silêncio já não tivesse se instalado tão profundamente: era hora avançada da noite.
O edredom rosa-roxo estava embolado em cima de uma cadeira; ainda não tinha sido levado em razão do volume que faria nas malas. Iria breve, a data estava marcada, junto a outras tantas coisas que ficaram para trás: o ex-namorado e atual amigo com quem ela fala quase todos os dias vai para o casamento de uma prima e vai levar o que mais puder, o bastante para não pagar excesso de bagagem – esses tempos nossos são tão diferentes!
No quarto, o lençol da cama tinha sido esticado, mas as pontas sobravam aqui e ali. Sobre ela, estavam jogados, como sempre estiveram, livros, revistas, travesseiros, a vaca vermelha, o cachorro branco, o sapo verde, uma calça jeans em posição de espantalho. Sobre a estante rente à irreverente (verso?) parede roxa, estavam organizados desorganizadamente, uma nécessaire vazia e também como sempre estiveram, mais revistas, outros livros de música, de ópera, de literatura, uma caixa de metal com diademas de muitos tipos e cores, os que sobraram, frascos com restos de cosméticos, um baldinho decorado cheio de lápis de cor e canetas fosforescentes, vidros de colônia, uma caixinha vermelha com duas bolas de metal colorido, aquelas chinesas, decoradas, que fazem plim quando a gente as rola nas palmas das mãos.
Sobre essa estante também havia sacolas de papel vazias, um cubo com fotos dela de muitos períodos diferentes, outra caixinha, essa, laranja, cheia de clips duplos, um copo de inox com alça, uma caixa redonda e transparente para CDs ... pelo chão, um par de tênis desencontrado e pequenos pedaços de coisas; coisas que poderiam seguir viagem em breve ou poderiam ficar ali, no quarto calado, para sempre.
O relógio de disco de vinil parecia arranhar a quietude, talvez me tirando do transe, do devaneio de seguir a história daquelas pequenas lembranças em repouso. Inevitavelmente procurei o rosto branco e corado escondido entre os travesseiros e o edredom roxo: hábito antigo quando eu invadia silenciosamente aquele pedaço de mundo para verificar se ela respirava. Quem respirava aliviada era sempre eu quando via que seu corpo se espalhava pelo colchão macio, em segurança, aquecida em casa; aquecido meu coração.
Mas não foi o relógio que me trouxe de volta à realidade, foi a brisa que levantou o voil da cortina branca. O vôo transparente cobriu a cabeceira da cama e o vestiu em gala; pensar assim quase me fez rir. Essa mesma brisa que acariciou a porta do quarto e me fez avançar pela penumbra.
Noutra parede, pequenas prateleiras estavam apinhadas: caixas, mais livros, um conjunto de vidros coloridos para velas, troféus, uma cesta em xis cheia de trecos diversos, incensos, um porta-retratos cheio de fotos dela, outro, pequenino, com uma foto minha, tão antiga!
Fixo sob as prateleiras, um quadro de ímãs equilibrava fotos de amigos, do ex-namorado, do pai, minha, dos irmãos, muitas dela. Depois desse, outro quadro, nessa parede, exibia uma futura artista plástica, que futura, parece, será, já que ela escolheu cantar. Houve tempos em que os tubos de tinta, as telas nuas, as revistas com roteiros e modelos eram tudo o que ela queria; mas não agora. Mesmo assim ela pintou uma tela: um bule de café com xícaras, desenho estilizado e bonito. A arte foi levada para a fazenda porque lá eu queria juntar tudo de especial que pudesse contar a nossa história. Tentativa vã: a fazenda se foi para bancar as necessidades mais imediatas e o quadro voltou para a casa da cidade e espera, guardado preciosamente num armário, que outros tempos de abundância cheguem para ser ostentado novamente em um lugar digno de sua luminosidade e significado.
Bem, voltando ao quarto, essa parede ostenta também desenho em crayon: um traço longo, central, que se abre em dois ou três, como galhos secos terminando em bolas e estrelas, ou flores; ou pode ser um homem, ou um extraterrestre; e uma frase: “What if I fell to the floor?” e a resposta, noutra letra: “Won’t fall...”. Ao lado, mais um quadro, esse com recortes de revistas: cachorros, um cavalo branco, uma mulher dançando, outra segurando uma criança no alto, símbolos de música, frases, um casal de mãos dadas, um ciclista. Acima dessas tantas imagens, uma cesta de basquete fazia a vez de lixeira, acho tão original!
O armário, na parede oposta à da janela, escancarava suas entranhas remexidas: cabides vazios alinhados perfeitamente mostrando, aqui e ali, uma peça de roupa descartada; um boné xadrez agora inútil, caixinhas vazias ou com restos de bijuterias, peças íntimas, tictacs de cabelo, cintos, meias. As portas não se encaixavam muito bem, meio empenadas, parte dos parafusos soltos... o abre-e-fecha do dia-a-dia durante longos anos, os arrancos e chutes dos ataques de fúria e os consertos improvisados foram marcando a madeira; parece que contava uma história real de gente.
Como o armário foi no que reparei por último, foi assim que pensei quando associei aquela peça de mobília, colada à parede, inerte, calada, à minha própria história, então procurei ansiosamente a chave da porta, não tanto para trancá-la, mas para dar certa utilidade aos meus braços antes que eles ficassem vagando pelo vazio da madrugada silenciosa.
Por Magda R M de Castro
Brasília/DF, 09/04/2011.