quarta-feira, 20 de abril de 2016

CENA BRASILIENSE DE OUTONO

Ainda não anoiteceu, e não demora. Caminho devagar, languidamente, passo a passo, pela rampa superior da Estação Rodoviária do Plano Piloto. Quase atrapalho os que vêm e vão em correria; correria normal, de cidade grande. E cidade grande em véspera de feriado, as últimas horas para todas as coisas que não foram feitas pela semana ou pelo mês afora. Depois das 4 da tarde, os bancos já fechados, consultórios param os atendimentos... e eu caminho através do céu de Brasília.
A rampa da Rodoviária do Centro atravessa o espaço brasiliense bem no meio do avião histórico. Quase parando, quase em passo de dança caminho sem olhar o chão: a Torre acima, e acima dela, o céu infinitamente azul com raras marcas de nuvens cinza claro; a Esplanada abaixo, exageradamente iluminada pelos raios descendentes do sol em despedida. Como se caminhasse sobre aqueles flocos de neve, me deixo pairar entre os dois mundos e meu enlevo só se dispersa quando chego ao endereço da tarefa que ainda devo realizar. A realizo, mas com a sensação de que já não é mais tempo para coisas práticas. Volto pelo mesmo caminho da vinda. Observo, de novo, a Esplanada iluminada à direita, e à esquerda, a Torre estirada no alto da colina; depois de gramados salpicados de caminhos de terra vermelha.
Novamente a rampa me faz atravessar dois mundos de maravilhas, ai, se eu tivesse tranças quem sabe dali surgiria um homem de lata ou dacolá um coelho falante; claro que isso não acontece: não tenho tranças. Alguém empina uma pipa: multicolorida, parece esnobar o entardecer unicolor que já se avizinha.
O Conjunto Nacional está apinhado de gente e a primeira praça me escancara balcões de tantas iguarias, de café cremoso espumando em xícaras, de sorvetes em duas cores derretendo pelas bordas do biscoito. Depois, sapatos, gente, é muito sapato, de todos os tipos, cores tamanhos, sapatos em penca. Não sem antes desfilar vidraças de livros também de tantos tamanhos, cores e formas. E roupas; relógios; flores, músicas, a cada vão que alcanço. Algo diferente, algo lindo, ou cheiroso. Tudo brilha, como se todas as vitrines, e os vendedores, quisessem imitar o sol que se despede lá fora.
Subo dois lances de escada e me acho no meio da comilança da Praça de Alimentação. Há tanto tempo! Como se nunca estivesse estado ali, apalpo com cuidado o corrimão inoxidável e piso, vagarosamente, os degraus de granito – iguais à pia da cozinha de minha casa. Depois de um quibe, há quanto tempo com pimenta e ketchup, me preparo para partir. É agora ou bem depois, pois o rush se aproxima. É agora.
Percorro corredores, vitrines, escadas, com o olhar de quem nunca viu nada daquilo antes e lamentando os 10 reais que gastei com comida. Manobro o carrinho vermelho para casa. Não sem antes ver a cara amarrada do flanelinha que recebe moedas de cinco centavos, mas ‘tão novinhas... paciência que “tó dura hoje” e quando é que não?
O movimento de carros já é intenso, seja porque há tempos não faço esse trajeto, seja porque todos querem mesmo começar o feriado prolongado o quanto antes. Depois de meses habitando, sozinha, uma montanha sem fim e sem começo, perdida no horizonte, ficar no meio de tanto automóvel me faz tão pequena! Espremida no meio de carrões imponentes ultrapassando apertadinhoooo!! Ui! Ah, eis uma Kombi com motor reclamando, acho que não estou tão sozinha aqui.
Na altura do Estádio Nacional, o sol despenca ao longe, depois da curva do Buriti; no alto, uma estranha nuvem em formato de mão fechada e indicador aberto cobre parte do astro rei. Esse, como se em agonia, escancara seus raios pelas muitas faixas do Eixo Monumental. Os carros parecem flutuar sobre fina camada de líquido prateado: dançam na mistura de luz dos postes e do firmamento. Já no Buriti observo que as fontes estão desligadas, talvez em descanso para o dia de festa amanhã: 56 anos. Numa colina, o Eixo apresenta o Memorial JK deitado em seu silêncio eterno. Já vencida a colina, carros passando rente, a fuselagem do emblemático avião se estreita anunciando o final da pista; mais adiante, já entrevejo o bico do aparelho monumental. Dali pra frente se desmantela o avião que desanda sobre os destinos de todos os brasileiros; mas eu viro à direita. Faço a tesourinha, passo por baixo de dois viadutos que sustentam todos os compartimentos de serviço do avião e entro na Avenida das Jaqueiras; essa vai levar ao Cruzeiro Novo, ao Sudoeste, ao Hospital das Forças Armadas e mais à frente à Estrada Parque Taguatinga e depois dela o delicioso Parque da Cidade. Saudade, estou precisando caminhar por seus bosques, deve estar lindo agora, outono. Há flores: patas de vaca e paineira barrigudas, em flor, talvez, para alegrar a estação triste. Fico pouco nessa Avenida e torno à direita mais uma vez: Cruzeiro Velho. Minha rua, a paineira da esquina, minha casa.
O portão escancara a suave toque e mostra os focinhos negros dos dois labradores brincalhões; vigio para que não saiam em carreira pela rua. Manobro para deixar espaço para a filha que chegará logo do trabalho. Entro em casa. A noite já refresca o mundo e as almas e, sem mais nem menos, me invade forte sensação de que tudo está em seu devido lugar, de que tudo está em paz. Só me alcança ligeira confusão quando descubro a garrafa de café cheiroso pertinho da travessa de pão de queijo rescendendo à minha serra encantada. Droga de quibe!


Por Magda Castro, em 20 de abril de 2016, Brasília/DF.