domingo, 12 de setembro de 2010

EM PASSO DE DANÇA...

Às vezes penso que se pararmos o que estivermos fazendo, especificamente quando as emoções mudam, ficaríamos surpresos com o número delas. Se acordo cedinho, sonolenta, penso devagar, indecisa. Se acordo depois de muitas horas de sono, me sinto confortável, descansada, com um pouquinho de fome, e preguiça. Em geral, tenho a sensação de que estou cansada, talvez por já vir trabalhando há meses sem férias: às vezes fica dificil pegar no tranco, mas estou fazendo o que faço para sustentar a vida que escolhi viver. Me pergunto o quanto mais estaria disposta para continuar a marcha da mudança.
Bem, de emoções, voltando ao começo, tenho muitas, uma atrás da outra. Como estava dizendo: começam a me atacar, essas emoções borbulhantes, logo que acordo: preocupação, por coisas em geral, é a primeira que me pega. Depois, vem a urgência do dever, aquela força empurrando escada abaixo ainda sem terminar de passar o batom, ainda com o cabelo desgrenhado, o ziper aberto, a bolsa numa alça só ... me jogo porta afora... não sem antes beijar quem está acordado, fazer o sinal da cruz ao pé da Santinha, gritar um tiau já de dentro do carro de vidros fechados e já prestando atenção na rua, saindo devagar-correndo pelo portão ... e lá vem o dia.
O caminho para o trabalho está escrito no para-brisas do carro: cada curva, cada preferencial, os minutos em cada pista, em qual fico nessa altura, de qual devo sair agora para não pegar o trânsito. Até aqui de quantas emoções tratei? Preguiça, ansiedade, preocupação, fé, carinho, cuidado, atenção... hum. E o dia nem começou propriamente. Mas essas são emoções que circulam pela minha órbita sem que tenha consciência plena delas.
Então, quando tenho a chance de reparar que as estou sentindo, que elas estão muito vivas em mim, é que parecem todas serem mais fortes do que se imagina.
Nesse sábado passado, que como os demais havia tanta tarefa para cumprir, depois de uma semana de redemoinhos e montanhas e, confesso reticente pela emoção que dá pensar assim, também de abismos, esse sábado à tarde funcionou como canoa que seguramente me levaria a enseada calma, ensolarada. Ah, esses sábados, quando me encontro com amigas para jogar baralho, são ótimos!
Bem, isso não quer dizer que a sexta-feira à noite, bem mais à noite, depois que cheguei da faculdade, o que aconteceu depois da repartição pública, essa que exige dedicação total, não tenha sido especial. Aliás, foi especial porque a filha caçula ouviu um desabafo meu ao telefone sobre problemas nos dois empregos – e até estava me perguntando agorinha como é que se pode travar tantas lutas ao mesmo tempo – e daí quis me consolar: preparou um fondue de frutas, queijos e chocolate, uma festa.
Além da comida farta e saborosa, o tempero especial era estarmos juntos, ao redor do balcão da cozinha. Sabíamos, nesse momento, podíamos sentir a emoção da felicidade plena fazer parte de nossos corações. Num momento como esse, de comunhão, de riso, de liberdade, tanta cor até, é que se percebe, melhor, até se toca a felicidade pura. Entre azulejos amarelados, a alegria fazia parte de nós, e sabíamos, melhor, sentíamos isso. Reconhecemos a alegria, a felicidade, o prazer, como se a felicidade pudesse ser palpada.
E não era porque tudo era perfeito que estávamos felizes, aliás, havia até uma tristeza, descontentamento forte: o carro do namorado da caçula havia sido arrombado no minuto em que ele foi comprar ingressos de teatro. Roubaram guitarra, lap top, roupas, tênis de marca equivalendo a prejuízo material de cerca de sete mil reais. Isso sem contar que os arquivos dele eram as fotos que vem colecionando, o book da namorada, letras e arranjos de músicas nas quais os dois e um dos meus filhos vêm trabalhando.
Mesmo assim, depois do susto, depois do boletim na delegacia, depois da filha morena também voltar do trabalho, nos reunimos para o fondue. E, de quantas emoções falei aqui, só as dessa noite de sexta-feira? Alegria, felicidade, desencanto, medo, susto, superação, esforço, resiliência, gula, amor, liberdade, prazer.
Então, chega o sábado. Não dormimos tarde na sexta porque depois de consumido todo o fondue, o sono bateu em todo mundo. E queríamos aproveitar o sábado de dia.
Esse amanheceu glorioso. E não poderia ser diferente esse final de inverno espetacular que está acontecendo em Brasília. É de tirar o fôlego esse tempo desértico, de capim amarelo, de árvores enormes ostentando galhos desfolhados como espectros em meio à neblina. Seca, a de Brasília, confunde a gente o tempo todo com a fumaça das imprestáveis queimadas. Não é uma neblina cinzenta: é amarelada, densa, circular. Até onde o olhar alcança, o céu se fantasia. Não é bonito, mas a gente sabe que é por pouco tempo, que o azul refrescante está por trás daquilo e que logo poderá ser visto emoldurando os modernos monumentos. Mas eis que não são só galhos e gramados desnutridos o inverno aqui: há flores. E a cidade só não é um jardim exuberante por causa de seus espaços quilométricos: precisa de muita árvore para preencher os Eixos, as alamedas entre as quadras, os infinitos na Esplanada, os jardins temáticos de cada avenida, de cada álea dos Parques, da beira do Lago, dos clubes.
E mesmo esparsas, as flores desfilam por toda parte. As primeiras são as das paineiras: rosa claro ou rosa escuro, escancaram os galhos subindo cumeeiras. Depois dessas, vêm os bougainvilles, ou melhor, as primaveras, mesmo ainda sendo inverno no calendário. Menina, tem cada um maravilhoso arrastando pelos canteiros que até dá susto na gente. Meu coração costuma ficar menor talvez para bater com mais força a cada cachopa que descubro nessas retas da Capital. No final do Eixão sentido Sul, a alameda é de uma espécie de arbusto com galhos parecendo tentáculos longos que, na ponta, florescem bulbos rosa, brancos ou vermelhos. Numa tarde de trânsito muito devagar tentei contar quantos arbustos floridos havia, bem pertinho da janela do carro poderia tocá-los, mas me perdi na contagem tantos eram.
Seguindo o desfile de flores, depois das paineiras vêm os ipês: rosa claro, rosa escuro, abrindo os braços em flores, em dádiva aos seus admiradores. O espetacular ipê branco vem depois, mas é muito raro e encontrar um desses é como encontrar tesouro surpreendente. Depois, vêm as patas de vaca: flores brancas, azuladas, rosas forte ou rosas claro. Seguindo as “patas”, os ipês amarelos; alguns desses são tão exuberantes que a gente pensa que o céu veio para a terra, definitivamente. Como é possível que nesse mundo tão seco, tão pálido, e ainda antes de qualquer gota de chuva, uma árvore daquele tamanho floresça tão completamente se revestindo de ouro? Elegantes troncos se esgueirando soberanamente para a imensidão, vestindo gala e pompa. Não tenho como comparar tanta exuberância. Cachoeira cantarolando? Uma montanha azul? As ondas do mar dançando? Talvez...
É esse o inverno de Brasília. Seco, frio, pálido em grande parte, mas a sua beleza escapa às suas agruras e nos dá a fé suficiente de que novos e melhores tempos virão. E foi assim que começou o sábado. E com pessoas se espreguiçando satisfeitas e rumando para a mesa do café da manhã. Nem vou relacionar aqui o que tinha nessa mesa, mas a invitável conversa foi sobre o roubo da noite anterior, sobre o corte de cabelo da caçula, sobre compra dos ingredientes para a salada do almoço, sobre festas de aniversário. Também falamos com a filha mais velha, convidando-a a vir a Brasília com a família para essas festas.
À tarde, tinha o tal compromisso com as amigas e o baralho. Assim, a manhã passou muito depressa com as lidas da casa, o quarto p'ra ajeitar, sapatos para limpar, roupas para guardar e os trabalhos de alunos para corrigir pululando nas caixas de e-mail. A salada não estava pronta quando deu a hora de sair e minha morena encheu uma tigela colorida para mim. Não comi no caminho, mas quando cheguei à casa de minha amiga. Lhe entreguei o queijo minas que havia comprado pra ela, pedi que guardasse dois para as outras meninas que ainda não haviam chegado e fui comer a salada. As “damas” não demoraram que até terminei a salada já com as cartas me esperando sobre a mesa.
Conversas, jogo, brincadeiras, e música. O primeiro disco foi com músicas francesas; daquelas que ouvia quando adolescente no interior de Minas Gerais. Charles Aznavour, Piaf e outros. “She” foi a primeira música... a sala pequena fazia as paredes claras vibrarem. E como buraco é um jogo no qual não se pode falar, a música foi envolvendo, me transportando para outros lugares. Ahm... interessante, me vi conjeturando, não são lugares de passado os que começaram a se desenhar na minha imaginação. Deus, descobri perplexa, não estou sentido nada em relação ao passado... Deus, essa quentura no peito, esse acelerar firme do meu coração é pelo que está vindo aí, é pelo que tem chance de acontecer ... Que surpresa boa descobrir tal sentimento. Bom mesmo, de libertação. Acho até que essa sensação já rondava, mas não tinha parado para senti-la.
Ah, que delícia de calor no meu peito. E aí a imaginação vai automaticamente circulando entre os prós e os contras tentando justificar aquela coisa boa de sentir. Faço impiedosamente as contas do quanto de vida me resta: 54 anos não é 20! O corpo cansa.... mas não consigo evitar esse galope... e, no suceder das músicas, a cada uma, meu pobre coração mudando. Essa é uma valsa, a imagem de esguio principe me pegando pela cintura, eu de vestido longo, os dois sozinhos num salão brilhante com orquestra ao fundo vem sempre à minha cabeça. Nessa tarde de música francesa, esse pobre coração parecia menor que nunca tal o calor surdo que o atacava. Vez ou outra eu tinha que respirar fundo, balançar a cabeça para voltar da “viagem”.
Outra imagem inevitável é a de minha serra ventante tão no alto do mundo, tão solitária, tão longe. É reincidente essa imagem, faz parte de mim... E, de novo, pensava na deliciosa noite de sexta-feira, vinha para a tranqüilidade da tarde. Minha imaginação voava para o deleite de ser dona do meu destino. Depois me lembrava do quanto sou medrosa... tenho medo demais de mudanças... Teimo em pensar que tenho também coragem de provocar essas mudanças. Isso me dava tal grau de contentamento que tive que me esforçar de verdade para não levantar e sair dançando. Não, não pegaria bem, deixar a mesa de jogo e começar a dar passos ao redor da mesa. Não, ali não, mas com licença, posso deixar meu coração sair bailando por verdes campos. De volta à realidade, me perguntei porque ser tão medrosa? Por que ter medo? Se eu era feliz mesmo tendo tristezas porque não vou em frente e faço o que quero fazer mesmo sentindo medo? Ele não me deixaria, sei que não, mas teria a coragem de não fazer o que quero fazer porque tenho medo?
Os pensamentos ficavam mais vívidos a cada música, a cada som enlevante, até o ponto de quase não conter o choro, vontade forte mesmo de soluçar, algo estava tão grande em mim que queria sair pela garganta. Nesse estado, de reconhecer o tanto medo que tinha de viver, foi que o vi se transformar em energia tão poderosa. Queria dançar, sair em disparada, rezar tal a força daquilo. Me senti ficar quente, ardente, o medo palpável; descobri o quanto ele me fazia frágil, que me impedia de alcançar a vida que quero, a que tenho certeza que mereço. E, de repente, depois de me deixar sentir aquela espécie de vulcão em erupção, que senti a liberdade. Algo maior tomou o lugar do medo. Que coisa boa de sentir, que calmaria, que remanso: será isso a felicidade?
Ainda, ali, na mesa de jogo, ao lado de minhas amigas, agora ouvindo a Simone em Castelhano que quase pude tocar a transformação, a substituição da apreensão pelo dia de amanha pela tranqüila certeza de que meus sonhos são possíveis sim, que tenho 54 anos sim, que tenho lutas a travar sim, que, afinal, tenho medo sim, mas que nada disso me impediria de dançar ... onde, quando e com quem bem entendesse.
Emoções... sim, quantas mais delas ainda citei? Ah, que nada, não vou listar mais... deixe-me voltar ao mundo que me rodeia, tão mais real agora, tão claro. Terminado o jogo ainda dei carona para uma de minhas amigas. Dirigi para casa o mais rápido que pude. Queria começar imediatamente a tomar as providências para as mudanças que queria fazer. Já mudei muita coisa, umas até muito depressa, outras tardiamente, só que mudando algo de lugar, descobri, só então pude descobrir, que havia mais mudanças a serem feitas. Elas aconteceriam, tive certeza quando a casa branca apareceu à minha frente, depois que embiquei meu pequeno carro na entrada. Claro que não foi só a casa, nem as empolgantes emoções, nem as possibilidades de futuro que trouxeram lágrimas aos olhos: foram os vasos ao longo dos muros verdes abarrotados de mini rosas: um vaso delas cor de rosas, um vaso delas brancas ... a primavera ainda não estava no calendário, mas estava se realizando à minha frente... e confirmando que há mais energias no mundo do que aquelas que a gente consegue ver ou apalpar....Energia que, apenas, precisa ser sentida... em emoções de todos os matizes.

Por
Magda R M de Castro
Brasília-DF, 12 de setembro de 2010.