quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

QUERIDAS AMIGAS

Minha família, carinhosamente, nos chamou de bando de maritacas: cinco mulheres rodeando uma mesa de vidro forrada de branco enfeitada com pequeno vaso de flores, e cinco copos de cerveja. Cada uma queria falar primeiro, mais rápido, mais alto; cada uma queria contar, em sentenças didáticas, as últimas experiências. Falar em últimas, repenso, não somente as últimas, mas todas as novidades de desde quando nos vimos por último.

Trabalhávamos, as cinco, numa faculdade do interior de Minas Gerais; e aliávamos o trabalho ao divertimento, aliás, filosofia em comum: o trabalho também poderia ser diversão. Tanto que o veículo que nos levava ao lugar era carinhosamente chamada de “van filosofia”, o jantar depois das aulas era “encontro marcado” para desabafos, trocas, informações. A profissão nos unia em pensamentos parecidos, em concordâncias deliciosas, em experiências iguais que contávamos com coloridos particulares, sonhos... sim, esses também, iguais: a busca pelo desconhecido, a crença de que a pesquisa, a metodologia e os livros nos levariam ao melhor da terra.

Nesse encontro, domingo, almoço, cerveja, a copa da casa simples cuja cozinha quente cheirava com diferentes quitutes foi o cenário do encontro das amigas. Todas deixaram as vidas lá fora e trouxeram apenas as “próprias visões de mundo” e a disposição para descontar o tempo perdido, para rir, para ouvir e contar. E isso fizemos à vontade.

Eu tinha preparado a casa com flores, checado com detalhes a limpeza, escolhido com cuidado os ingredientes do almoço. No dia, cedinho, dei mais uma olhada em tudo; depois, fui escolher o vestido. Primeiro, me vesti de bermuda, muito à vontade, camiseta e sandália rasteira. Não, é dia de domingo com visitas, deixa por o vestido novo, nos tornozelos, florido como prefiro. A sandália também era nova com pequeno salto completei com pulseiras, perfume especial e batom: porque é dia especial, de amigas em minha casa.

Foi difícil reunir esse grupo, que até poderia ser maior. Só mensagens de e-mail foram 33, fora as independentes que não transitaram pela caixa postal e telefonemas. Era, portanto, algo especial essa reunião. Amizade é coisa bonita e nós cinco enfrentamos o conhecido afastamento imposto por características da profissão para continuar alimentando esse carinho. Carinho e amizade, aliás, foi um dos temas da rica conversa, discussão estaria melhor, não, ainda, um debate, tal a paixão e a contundência que falamos desses e de outros temas. Apesar dos pesares, manter a amizade é complicado, e, para isso, cada uma se propôs a enfrentar um desafio; escrever sobre essa tarde é o meu.

Então, voltando à amizade, falamos de um colega que nos acompanhou em nossas viagens que gostaríamos estivesse presente. Filósofo da vida, me atrevo a interpretá-lo agora, o que penso enquanto escrevo porque sempre quis defini-lo e nunca encontrei um termo certo, acho que esse agora pode fazer isso e não o magoará. Então, esse colega, amigo, resistente ermitão, que esteve fora fazendo doutorado e que defenderá sua tese em março, nossa, já, foi convidado, muitas vezes diga-se, para participar desses encontros, mas não pode, traduzindo-se em “não quis” vir. Das meninas, a mais próxima a ele, disse que quase o ameaçou, mas ele simplesmente respondeu que “teria gente demais nesse encontro” e não veio. Assim, essas mulheres, aproveitando para mais um brinde com os copos suarentos e fervilhantes, chegaram à conclusão de que ele era assim mesmo e que assim mesmo seria respeitado e admirando. Concluída essa parte, uma das moças contou como começou a assistir ao Big Brother Brasil 10. Ela explicou que, estando numa praia isolada com a família, inclusive uma cunhada, de repente, numa viagem à cidade mais próxima, os celulares, que andavam desligados, começaram a tocar desesperadamente. Amigos e parentes de longe avisando que a cunhada tinha sido escolhida para participar do show. O rebuliço foi em razão de a pretensa escolhida ser professora da UnB, pesquisadora, doutora em Linguística. No final, a história da cunhada no BBB10 não passou de engano.

Entre tanto o que falar e ouvir, cada uma falou sobre as ocupações mais recentes. Uma estava buscando aprender a meditar. Foi quando falei do livro “Comer, rezar e amar” que li nas férias. Outra falou da forma como encontrou a recente ocupação ao voltar a uma escola onde trabalhou há muito tempo e de como, de responsável por uma sala de vídeo passou a cuidar de duas salas de vídeos, do controle de atestados médicos, de representação do diretor em reuniões; aliás, falou de quanto essa escola era de vanguarda, um luxo. O tema seguinte girou em terno da situação das escolas; comentamos que os alunos da rede pública estão migrando para o ensino particular> Lamentamos essa realidade reconhecendo que não só a estrutura física das escolas públicas de Brasília, mas também a instituição em si e todas as suas propostas estão em decadência. Uma pena, concluímos; sinal dos tempos.

Outra falou de sua experiência com o ensino à distância, e também com o EJA, projeto de Educação de Jovens e Adultos. Duas trabalhavam com esse programa e até conheciam pessoas nos órgãos responsáveis. Ah, conheço fulano, você conheceu? É claro, e fulana, será que ela ainda está lá? Falaram de uma escola especial na Samambaia onde muitas tiveram rica experiência. Nessa hora, confesso que boiei porque não conheci essa escola e não trabalhei na rede pública de ensino; conheço como aluna e minha experiência sempre foi muito boa. E meus filhos preferiam as escolas públicas como o Colégio do Setor Leste, a Escola de Música, o Centro de Línguas: todos aqui em casa os frequentamos e somos gratos.

Nesse encontro, como nos afastamos em dado momento da faculdade onde trabalhamos juntas as novidades eram infinitas. Outra tinha sido convidada a coordenar um núcleo de educação infantil, e para isso, recebeu carta branca; isso foi o que pediu para aceitar. E que bom para nossas crianças! Aliás, competência é o que não falta pra essas meninas.

Quanto a mim, contei a riquíssima experiência de morar cinco meses com minha mãe, noutro interior de Minas Gerais. A resposta de minhas amigas é que foi experiência muito rica, ao que concordo plenamente. Contei da milagrosa chance de poder ficar junto da pessoa da qual estive longe por muitos anos e que, afinal, era minha mentora, pois dela tirei as lições mais importantes que me guiaram na vida. Contei das pequenas coisas, de como ela me mandava sair do sol – limpei e plantei o quintal da casa dela, com muito afinco, de modo que quando vim embora, plantas e flores estavam no lugar de cacos de vidro e pedras. Ela me chamava a atenção pela hora de ir para a escola do mesmo jeito que fazia quando eu tinha quinze anos de idade; e se em algum momento achei que ela me tratava como criança, a ternura com que ela fazia isso era tão grande que meu coração transbordava de gratidão. Me senti bem demais estando juntinho de minha mãe depois de tanto tempo. E não deixei por menos: fiz tudo que pude, inclusive, depois daqueles meses, minha mãezinha poderia ir ao quintal para pegar cebolinhas, salsas, quiabos, couves, abóboras, e outras coisas, sem perigo de tropeçar. Também, em breve, poderia colher amoras, jabuticabas, romãs e acerolas. Contei que ajudei a organizar os papéis dos bens dela, a negociar impostos atrasados, a organizar e higienizar melhor a casa, a dar dicas de plantas mais adequadas pro quintal. Contei do prazer de acordar cedinho com o cheiro de café quente e biscoito de queijo, abraçar a pequenina mulher de cabelos brancos, titubeante, mas muito lúcida. Contei que a acompanhei na dieta, que caminhei como uma desvairada pelas ruas centenárias, muitas vezes à noite depois de dar aulas, sem um pingo de medo. Contei que passávamos horas, minha mãe e eu, jogando baralho, eu, em segredo, desejando que me contasse as histórias de antigamente, a vida dela inteira; e ela contou. O que aconteceu foi que conheci uma mulher linda e se eu já a amava agora a admirava e mais que nunca era grata por essa chance.

Voltando à reunião regada à cerveja, a conversa virou para os filmes, inclusive, o quanto amamos Avatar; e também sobre um que uma foi assistir com um amigo e como ele dormiu de roncar e daí teve que ir embora antes do final. Outro filme que ficou constatado ser paixão geral foi “O último dos moicanos” com Daniel Day Lewis, e ainda, o “O último samurai” com Tom Cruise; hum! Agora que percebo outras coincidências...

Eis que nessa reunião de cinco amigas todas estabeleceram desafios: uma jurou que ia mesmo aprender a meditar, outra a fazer ginástica cedinho, outra ficou responsável por organizar o próximo encontro, outra por terminar de ver o filme e depois contar para as outras.

Do bando, não de maritacas, mas de mulheres felizes e inteiras, competentes, que contribuem com seus talentos para melhorar o mundo ao redor, reunido numa roda de cerveja porque ninguém é de ferro, e mais tarde às voltas com saladas e molhos, peixe e suflê, mousse de cupuaçu e sorvete, ficou o sabor do prazer em estar junto, tanta gente tão linda. Ficou a lembrança da alegria compartilhada, de estar ali apenas por ter escolhido assim, da saudade aliviada, das novidades tão ricas.

Marcamos o dia do próximo encontro com o compromisso de não deixarmos nos envolver por coisas que nos impedissem de estar presentes. Trocaríamos mensagens sobre o local, o horário, a forma que poderia ser happy hour, branche, almoço, café ou jantar; à tarde, à noite, não importa, nos encontraríamos: a promessa era o que se fazia urgente, por enquanto.

Beijos, garotas! Nos veremos em breve!

BRASÍLIA ROUBADA

Quando estamos no olho do furacão, é mais difícil olharmos com nitidez para a paisagem. Mas há momentos de calmaria, ou de pausas repentinas, em que é possível ver o panorama à frente e descobrir, ou melhor, se chocar com os estragos.
Cresceu assim, Brasília: um dia, foi retalhada em grandes pedaços e cada esperto pegou seu quinhão. Se satisfeito, ficou por ali, mas quem não ficou ainda tinha do que se apropriar. E essa apropriação individualizada vem acontecendo por toda a sua história. Só que antes isso era feito em surdina, mas agora os lobos nem se preocupam mais em agir na calada da noite: não serão punidos mesmo por que temer? Esse processo aviltou a tão profunda representação de igualdade que se propunha ser Brasília.
Agora, Brasília está abandonada. A instituição Brasília, assim como seu território, passou de mão em mão, foi prostituída, explorada até o cerne, e sobre seus restos são jogados todos os detritos possíveis. Como se não bastassem todos os ventos de todas as tempestades que aqui vieram se instalar, há novos rumores assustadores.
Brasília “está às moscas” poderia ser dito se fosse assim tão leve a situação. Não há moscas, apenas, na linda Capital Federal. Há um misto de silêncio sepulcral de vozes daqueles que poderiam falar, fosse pelo talento em fazê-lo, fosse pelo acesso à mídia, fosse pelos sentimentos que têm pelo que está à volta, e trovões. E essas, nesse momento que se avizinha às novas eleições, são vozes antigas e conhecidamente aterradoras: são os lobos, os antigos, já que os novos abandonaram a presa.
São outras as vozes que quero ouvir, talvez as dos fantasmas, que seja, se fizessem efeito. Quem sabe quebrariam essa indiferença de modo que os brasilienses, quisera os brasileiros, se organizassem para resgatar Brasília como patrimônio da humanidade e não como o quintal da minoria que a sangrou, e sangra, nesses cinqüenta anos de inaugurada e nesses outros tantos de história.
Em lamentável abandono, a Cidade da Paz chora, imóvel e enregelada, silenciosamente, a sua nudez. A proposta da terra que “jorraria leite e mel” era a unidade. Coisas e pessoas teriam o mesmo acesso, a mesma liberdade, a mesma vista do “mar”; como dizia Burle Marx: “o céu é o mar de Brasília”. Suas águas matariam a sede de ricos e pobres e suas fontes ainda seriam enviadas para longe tanta abundância. O mel seria por conta de milhares de seres do Cerrado intocado: alimentariam, eternamente, os bem pequenos, e os grandes também, desde que estivessem juntos.
Brasília seria de todos os brasileiros, até dos que nunca souberam de tal utopia, que puderam sonhar, afinal, a Capital da Esperança. O oásis na pobreza daria chance a todos que a escolhessem; e muitos o fizeram. E quem o fez, com o coração, se encantou por sua beleza generosa, por suas avenidas justas, por seu espaço comum. Assim era sua personificação quando o rico se instalava em barracos de madeira como o pobre, comia a mesma comida feita em tachos e gamelas saboreada em pratos esmaltados; respiravam a mesma poeira vermelha, o sangue das entranhas revolvidas e expostas fertilizando sua construção e seu futuro. Brasília amada, onde a igualdade entre os homens, finalmente, foi papável como em nenhum outro lugar.
Um sonho que beira a cinqüenta anos cuja materialização branca e marmórea, antes, de fulgor, agora se torna túmulo: de ato em ato se desfaz na lama como se seu passado não tivesse sido construído com a força da esperança por um grande futuro. Antes que se cumpra seu destino de fazer a melhor de todas as histórias, Brasília é roubada, a nossa Brasília, aos poucos, vem sendo tomada de assalto. Desprovida de vozes autênticas que poderiam manter seu espírito de liberdade e igualdade, o maior sonho humano possível; que poderia torná-la não só patrimônio de todos mas também símbolo de esperança para um mundo melhor para cada mortal, sem distinção, eis que os lobos a assaltam, estupram, deformam o ideal mais sagrado da história do povo brasileiro. Seus pedaços, assim como Roma, vão também enfeitar vilas e impérios para o gosto dos oportunistas.
Primeiro, foram saqueadas as terras do Plano Piloto, que hoje pertencem a apotentados que se esbaldam em construir shoppings, hotéis, se apropriam dos marcos históricos e os exploram a seu bel prazer. Depois, avançaram para as terras ao redor, onde as fontes de água jorravam noite e dia, mas não, é outra voz que precisa ser calada em nome de individuais interesses.
Enquanto o furor pela riqueza sem medida avança em todas as direções, e soterrando nascentes, raízes, sementes assim como emoções, as grandes obras representativas estão assoladas pelo descaso. O que é importante agora é o prédio com seus espelhos esvoaçantes ferindo o olhar, matando os pássaros, trespassando a alma do autêntico brasiliense, roubando, também isso, o seu céu tão único. O que importa é não mais a unidade, o igual, o espaço para sonhar infinitos.
Sim, espaços infinitos, foi essa uma das concepções de Brasília: criada com as formas da natureza, cheia de gramados gentis para que a floresta, os pássaros e as águas também participassem de seu esplendor. Entretanto, a lenta apropriação da Cidade da Paz redunda agora no seu abandono. Brasília é uma órfã. Seus fundadores enriquecem seu solo vermelho agora; e parece que não há sucessores. O descaso é tanto que a cidade se tornou imprópria para sustentar seus, antes doces, apelidos. Não ouso listar os novos nomes pelos quais Brasília é chamada agora; faço isso em sua memória. Respeito suas antigas intenções e conservo por ela especial carinho. Não digo o mesmo de minhas expectativas; pior ainda, tenho medo pelo futuro, da cidade e de seus filhos. Terão eles forças para lutar contra mentes individualistas, retrógradas e coronélicas?
Me pergunto: onde andam os idealistas, os verdadeiros, que poderiam defender essa tão linda concepção? Onde andam as vozes que poderiam dizer coisas diferentes das que se ouve todo dia? Brasília, você autêntica, ainda lhe resta alguma esperança?

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 25 de fevereiro de 2010.