sexta-feira, 5 de março de 2021

À ESPERA DA CHUVA

Troquei as roupas de cama, toalhas e tapetes. Podei as folhagens, montei vasos novos. Limpei a geladeira, renovei verduras e frutas. Sim, tem suco, água e café, biscoito Maria e manteiga; e macarrão e queijos pra alta madrugada de conversa fiada. Esvaziei as lixeiras, todas elas; preparei os recicláveis, os juntei todos já no carro, acabei de trocar o óleo e calibrar os pneus, prontos pra levar às estações de coleta. Lavei parte da roupa suja, a mais fácil, passei algumas peças; recoloquei panos de prato e toalhas de mesa nas gavetas da cozinha. Revi os armários de louças, copos, tudo em ordem. Limpei vidros e espelhos, troquei lâmpadas. Ainda tenho um vinho; chequei a playlist com músicas de piano: vou botar pra tocar baixinho num canto da casa. E espalhei perfumadores de ambiente pra todo lado; acendi incenso de sândalo. Ah, as orquídeas estão em flor. Você já pode chegar!

quinta-feira, 4 de março de 2021

COVID-19 E O GADO

Até ontem à noite, o total de mortes no Brasil por causa da contaminação do Coronavírus (COVID-19) beirava a 260.000; no mundo todo, 2.500.000. O número de pessoas contaminadas passa de 114.000.000. Noticia divulgada em 04/03/21, 9:39, há 30 minutos na Internet: “Coronavírus hoje: Brasil volta a bater recorde de mortes e caminha para um colapso generalizado do sistema de saúde.”

Observando o gráfico divulgado pela BBC News Brasil, é possível identificar que em alguns lugares do globo terrestre, a contaminação está regredindo e em outras regiões está avançando. O que é preciso considerar é que são estáticas, logo, há desvios como fornecimento precário de dados ou incapacidade técnica ou intencional omissão, por razões diversas, inclusive politicas.

No Brasil, o governo federal é fonte de desinformação pra não dizer irresponsabilidade no trato com a pandemia. Nos primeiros meses de avanço da doença, havia certa tranquilidade quanto à capacidade de enfrentamento do problema, mas as dúvidas foram tantas e as informações foram tão deturpadas que grande parte da população se posicionou contra qualquer medida que os órgãos realmente atuantes tenham solicitado.

Para seguir o comportamento permissivo e irresponsável do líder da nação, vários seguimentos sociais se posicionaram abertamente contra o isolamento, contra as vacinas e tudo o mais que se disse de reconhecimento do grande risco que significa essa doença.

“Se não se aprende com o amor, se aprende com a dor”, já me diziam parentes sábios; prova disso está a olhos nus agora. No estágio atual da tragédia, que muitos ainda consideram brincadeira, a composição de muitos fatores não leva a alimentar esperanças. Mas essa já rondou quando a vacina foi finalmente liberada: vi gente com olhos cheios de água tanta alegria. A alegria já acabou e a pandemia não.

Continuamos isolados, os que se comprometeram, mas nem isso é mais garantia de segurança quando o vírus avança livre e faceiro adquirindo mais e mais força por não encontrar barreiras que o detenham. O COVID-19 continua destruindo vidas, e, se por um lado os leitos, e profissionais de saúde, não são suficientes para atender aos doentes, por outro, a vacina patina entre joguinhos infantis de poderes político e capitalista: perdemos em todas as frentes; palmas pro Corona vencedor! 

Perdidos entre a inércia de quem deveria estar estourando os últimos cartuchos pra frear essa tragédia exaustivamente anunciada e a falta de todos os grandes e pequenos recursos para vencer a praga, os cidadãos se tornam mera estatística; gado, como li um cientista nos rotular ao “explicar” a situação no Brasil. “Vida de gado”, já cantava Raul Seixas, verdade maior que nunca.

É quase hilário pensar que se fossemos mesmo “bois” poderíamos estar a salvo do perigo. Ocorre que nem isso é alivio quando está claro que no “pasto” nem há “peões” de determinação e coragem  “tocando o gado.”

segunda-feira, 1 de março de 2021

CERTO VERDE OLHAR

Quando o conheci não percebi,

não tão profundamente,

que novo amigo chegava

e nem tão de repente.

 

Lhe falei de coisas do meu coração,

contei segredos de minh’alma.

Você ouviu com tamanha atenção

como se de tudo eu soubesse então.

 

Achei que seria só por uma noite,

que de manhã iria embora.

Vê quão pouco sei?

Você está aqui ainda agora

 com esse seu olhar me perguntando

sobre a vida, o amor, o mundo.

O que posso lhe dizer?

Também estou buscando!

 

Ainda este olhar tão verde

que me olha indagante

à espera de singela palavra

que o ajude a ir adiante.

 

Não me pergunte, não sei.

Sobre o amor? você não iria entender

Sobre a vida? só você pode saber

qual caminho onde andar.

 

A este seu olhar indeciso

com tantos rumos à frente

digo: “para fazer o que não sabe

faça-o vagarosamente”.

 

Ainda este seu verde olhar

do amanhã quer que eu diga.

“Não pule o hoje”, respondo

“para não perder nada da vida”.

 

Ainda seu verde olhar me pergunta

o que sou, o que mais penso.

Com meu olhar no seu respondo:

“apenas uma mulher tentando

não se perder nesse oceano imenso”.

 

Ainda este seu olhar

tão verde, tão calmo

vem em minha direção.

“Não me pergunte mais!

nada mais sei: perdão!”


“Nada sei mais, caro amigo;

não depois destes seus olhos

tão verdes a me olhar

verde fundo como o mar.”

DE MEDOS E REDENÇÃO

Vez ou outra me pego covarde. Não a covarde de fugir da raia, principalmente em relação a desafios externos, como disputa de vaga de emprego ou de estacionamento, mas covarde em encarar meus medos, os mais poderosos. Acho que essa é uma das vantagens da maturidade: a experiência é tanta e, em tantos e diferentes aspectos, que a gente já consegue guardar o medo bem escondido, pelo menos, até que não seja mais possível evitá-lo, por exemplo, quando algo de repente faz as pernas tremerem. Nessas ocasiões, respiro fundo, conto até dez, hoje em dia consigo contar até dez, penso numa situação bem diferente e, alívio, boto os bois na linha de novo: volto ao porto seguro da calma.

Hoje de manhã, manhã linda de primavera, e ainda domingo, fiz uma lista, junto com minha filha mais velha, de coisas básicas que precisávamos em casa, manteiga, gelatina, banana... gelatina gosto de preparar no balcão da cozinha. Ponho duas tigelas, duas colheres, dois pacotinhos de pó, de preferência vermelho, meço e aqueço a água e boto os dois netinhos para mexer o líquido colorido até desmanchar os pequenos grãos; eles gostam tanto do doce quanto da brincadeira. Dai, compro diferentes sabores e os preparamos juntos preferencialmente em tardes de preguiça.

Bem, então, fui às compras num domingo de sol de primavera, tudo de bom! Outra coisa é que troquei de óculos. Pressionada pela renovação da carteira de motorista – a médica pediu laudo de oculista – tive que fazer consulta de urgência. Nem pensei muito: dou aulas longe de casa, o que faria sem carteira de motorista? E cega? Foi aí que fiz novo par de óculos.

Ignorância é coisa triste: pensando estar abafando, ou seja, achando que meus problemas se resolveriam com a nova armação de óculos, escolhi uma grande ‘para combinar com minha cara de bolacha’. Medi aqui e ali, as lentes foram mais caras que meu salário do mês e quando busquei, ficou horrível. Mesmo assim, resolvi usar a coisa para me acostumar. ‘A gente se acostuma com tudo’, diz minha mãe. Taí, pensei que ficaria linda usando óculos grandes, risos, pode?

Daí foi que nesse domingo de manhã de primavera fui fazer compras usando os ditos óculos enormes me sentindo entre contrariada e decidida, fazer o quê? E, bum, na frene do açougue ouço meu nome: ‘ei, dona fulana’. Dona? O ex estava virado para mim com as mãos apoiadas num carrinho lotado. Percebi que apesar de óculos serem enormes eu continuava sem ver muita coisa: não tinha percebido o homem a centímetros de mim.

Ficamos indecisos se dávamos os tradicionais dois beijinhos dos dois lados do rosto, mas por fim nos beijamos quase como cena de teatro: ensaiado, por pura convenção. ‘Uai, passou o final de semana na cidade?’ ‘É, teve a festa de confraternização do trabalho. Estou comprando linguiça de frango para o almoço, vou fazer um arroz com aquele alho. Você já experimentou o alho que deixei lá?’. Hum, muitas explicações: campainhas, blim, blim! O final de semana na cidade, hoje é domingo e ele não apareceu ontem, ninguém ouviu falar. Festa ontem? Hum, blim, blim. ‘A morena não quis vir almoçar comigo, disse que ia pro clube com amigas’. ‘É verdade, ela saiu cedo’. Blim, blim! A filha não deixaria o pai almoçando sozinho num domingo por causa de clube. Uai, mas o que isso tem a ver comigo?

Terminei as compras, fui embora o mais rápido que pude porque passava do horário de dar o almoço da mamãe; minha filha mais velha tinha ficado cozinhando. Em casa, vez ou outra, pensava na cena do mercado. Ontem mesmo, conversando com uma nova amiga, colega da faculdade, pessoa iluminada, ela me perguntou por que não tinha namorado – bondade dela não mencionar minhas rugas – e eu saí com uma resposta tipo ainda gosto de alguém; mas não só por isso: os homens estão raros hoje em dia. Bons homens, que combinem comigo, outro jeito de dizer: homem que goste da mulher que sou. Ela retrucou: “não é porque você está com o coração fechado?” “Pode ser, mas eu saio, tenho amigas, vou ao cinema, saio para dançar. E, sabe, não conheço homem algum em quem eu confiaria hoje em dia; é que perdi a confiança. Gostar, gosto mesmo sabendo como são difíceis, mas meu ultimo relacionamento me custou tudo que tinha, só me sobrou a capa do Batman,  Risadas. “Além disso, hoje em dia não conheço ninguém que poderia me dar o que eu quero”. “E o que você quer?”

Ah, pergunta triste essa! Muitas vezes respondo que não sei o que quero. Essa é uma das minhas fugas; a verdade é que sempre quis que alguém gostasse muito de mim. Depois, queria alguém em quem acreditar nas palavras, nos ideais, nas opiniões. E, alguém com sonhos é bom demais de amar, combina com quem também tem sonhos. Depois queria um homem que olhasse no meu coração. Daqueles que numa segunda de manhã, ao me ver atravessando o umbral da porta, só de me ouvir dizer ‘bom dia’ me perguntasse porque eu estava triste. Acreditem! Isso aconteceu e me assustou demais! Primeiro porque o rapaz parecia jovem demais para descobrir uma coisa em mim que eu mesma não sabia! O segundo motivo do meu susto foi imaginar onde é que eu andava que não sabia de homens assim?

Então, esse rapaz não seria um bom partido? Ótimo; para uma mulher trinta anos mais jovem. Invejo a mulher que ficar com esse moço. O pior é que ele ainda pode encontrar uma boa bisca: é que a vida não é justa. Risadas. Estávamos voltando de almoço oferecido pela faculdade onde trabalhamos: comemoração do dia dos professores; sábado bom demais!

Daí foi que a visão do supermercado quase estraga meu domingo. E como! Passei parte da tarde, mesmo no meio das tarefas, o almoço e o banho da mamãe, guardar as compras, lavar a louça com a visão grudada. O engraçado é que sempre fico vasculhando o que fiz de errado: foi meu peso? Não, eu era muito magra quando ele me conheceu e mesmo assim me aprontou. Fiquei sem aquele emprego bacana? Se era por isso, então foi bom ele ter ido embora, né não? Foi porque envelheci? Ele também envelheceu, e se é por isso ele nunca quis ficar de verdade, não é?

Sinceramente, tem hora que gostaria de nem ter cérebro tantas são as perguntas que me pululam na cabeça. Reconheço que minha autoestima está em zero, mas também reconheço que o estrago foi grande. Me lembro dos primeiros minutos depois da separação, depois os dias, as semanas, meses, anos. Já faz tempo demais para eu ter problemas desse tipo ainda; me irrito. Ele já superou, está em outra. Me irrito mais ainda porque não controlo esses sentimentos. Depois fico arranjando explicações para o fato de estar sozinha: orgulho ferido, falta de opção, não há nada que eu possa fazer... respostas vazias. Para diminuir o desconforto, repito vezes sem conta, o “mantra”: ‘ele não me ama, ele não me ama, ele não me ama!’. Quero parar de pensar nele, nas vezes que me feriu, quero me libertar, mas, bolas, fosse simples assim, já teria conseguido. ‘Quero ele de volta?’ me pergunto pra ver se levo um susto e paro de pensar no assunto. ‘Que Deus me proteja!’

Chegou a tarde do domingo. Por um momento me distrai, arrumando badulaques no quarto. Ainda me lembro de que jamais fez diferença para ele o que eu usava ou não: nunca elogiava, mas perguntava o quanto eu gastara nisso ou naquilo. ‘Mais mágoa, deixa prá lá, moça, o sujeito nem lembra que você existe!’ E é verdade, a mais cristalina delas!  É repetindo mais esse refrão que descubro uma abelha na janela do banheiro. Com pena da bichinha, pego a toalha de rosto e a empurro devagar para a janela. Ela voa depressa quando encontra a saída. Aproveito a carona para empurrar para fora também: ele voa até o céu cinzento de uma chuva que deveria lavar o mundo, e que vinha perto.

E veio depressa a chuva grossa, mudou o tempo repentinamente. O vento, muito fresco, começou a zoar pelas frestas: tarde especial com cheiro de vida nova. Meu coração estava mais calmo ao acompanhar a enxurrada que se formava na rua. Fiquei olhando pela janela até cansar; e desci para preparar um café. O cheiro deu ideia de aconchego e calor. Este era um dos meus medos mais profundos, do que falei no começo: ficar sozinha na velhice. É que eu pensava noutra perspectiva, a solidão. Mais perto dela agora, vi que não é tão terrível como imaginei. Isso me sossega também em relação ao amor que tenho no coração. Há muitas formas de amar; há tantas formas de felicidade! O que sei é que não há como saber o que vem ai pra gente. Então, fico contente com a tarde de domingo de chuva forte. Viajei para uma terra distante onde brincava na enxurrada num tempo em que não tinha a menor ideia do que seria minha vida. É exatamente a mesma coisa agora: tudo o que tenho que fazer é fazer o melhor que puder. Hoje; agora! Não controlo meu coração, imagine controlar o mundo!

Com esses pensamentos, sentindo o cheiro das plantas molhadas no jardim de inverno, servi o café a minha mãe ainda sonolenta do cochilo de depois do almoço. Em seguida, a levei à poltrona predileta na sala.

Então, o que fazer numa deliciosa tarde de domingo de chuva? Um sofá, colcha cheirosa e macia, a xícara de café quente e um bom filme! Quer melhor?