segunda-feira, 18 de outubro de 2010

É MADRUGADA

Um dia eu consegui passar a noite em claro. Foi nos tempos de menina desgrenhada – não que isso tenha mudado hoje em dia – mas no tempo em que eu era bem magrinha, um palito, mas parecia que a energia do universo estava todinha concentrada em meus cambitos; podia pular e dançar a noite toda. Não é de faz de conta essa história não. Um dia até amanheci numa fazenda. Pobre o lugar, me lembro sentada num tronco, riscando a poeira do terreiro com um graveto e me aquecendo nas últimas chamas de uma fogueira. Tinha gente perto de mim, nenhuma mulher se é que isso tem, ou tinha, alguma importância para mim. Nenhuma tinha; nem tem hoje.
É assim, agora, madrugada; madrugada no meio de dois dias de muito trabalho. Trabalho avançando pela madrugada, diferença grande de diversão; e nem de longe a energia ou disposição daqueles tempos. Hoje o que me acorda até tais horas que o rádio anuncia de “madrugada especial” é a força dos compromissos. Tenho a casa para sustentar; tenho os alunos da faculdade, a Funai; minha palavra e a teimosia de enfrentar qualquer coisa para cumpri-la depois que a boto a cavalo pelas pradarias aos ventos. É que tem também as contas, que nem são mais em fim de mês como se dizia antigamente, na verdade, durante todo o mês: é, todos os meses, as contas batem à porta.
Mas é de madrugada que tenho esse tempinho para me confessar. Já disse que o faço sempre com esse teclado porque qualquer pessoa que me ouvisse fundamente hoje em dia me tacharia de louca, desvairada, imatura ou coisas que não lembro agora. Trabalhar virou obsessão porque não consigo fazer nenhuma outra coisa. Dormir também é bom mas nunca tenho tempo suficiente então uma madrugada como essa é quase de revolta que teimo em não ir pra cama mesmo depois de ter despachado algumas dezenas de mensagens, depois de ter corrigido nem sei quantos trabalhos, elaborado prova, checado compromissos... e observando o mundo ao redor.
Minha caçula viajou para um grande evento musical em São Paulo, foram três dias de suspensão tanta a preocupação com ela no mundo e mais quatro jovens... meu filho anda agarrado aos livros... o mais novo que o mais velho parece viver noutro sistema solar apesar de ter um lado meu colado nele, naquele riso iluminado que nunca mais tive a felicidade de ver... e do qual nem posso me lembrar muito algumas coisas na vida são dolorosamente inexplicáveis como se quisessem forçar a gente a andar de joelhos... mas também quem mandou achar que podia tudo... não; não é mesmo uma pergunta é um tapa na cara. "Você achava que podia, confessa!! Agora é uma ordem! Para com isso!". De cima de meu orgulho idiota pensei um dia poder tudo...
Mas é madrugada mesmo, de, sei que será, um dia glorioso como costumo dizer já que a chuva chegou e o verde de Brasília também se esfrega na impaciência da seca. "Tome-lhe distraída!! Vim provar que a vida gira mesmo que não possa fazer tudo como queria".
Então, eis-me aqui, olhos ardentes, me lembrando do espetáculo dos flamboyants que agora enfeitam os canteiros de Brasília. É essa ciranda de flores o ano todo e eu procurando ansiosa por cada uma delas como se fossem o bálsamo pra todos os meus medos. Ah, as flores, eis que algo lindo existe! Só que essas são quase dolorosas agora porque plantei uma carreira dessa espécie num lindo canto do mundo que também parece sonho hoje... e que nunca mais terei a felicidade de botar os pés, porque não posso voltar lá... não teria forças para sair... porque talvez eu sairia em disparada me batendo nos pés de jatobás, nos pés de baru, nos jenipapeiros... ah! Os flamboyants incendiando a minha saudade.
Sou tão doida que todo dia passo perto de uma árvore linda que dá uma flor branca em cinco pétalas com pistilos amarelos e cheirosa que é uma beleza. Todo dia pego uma flor do chão, perto da calçada onde passo vindo do estacionamento para entrar na Funai e levo para minha mesa. Levo ela assim disfarçada pela bolsa prá ninguém pensar que sou ridícula com essas minhas paixões tão grandes quanto inúteis. Passo admirando a cachopa de flores no meio das folhas verdes e falando baixinho, segredo para a dona da exuberância: “você é linda demais...” Sou doida não mas de que adianta gostar tanto de flores? E isso é agora, depois de velha? Não gente também não é assim! Gosto de flores a vida toda desde que li aquela fotonovela na Grande Hotel da minha avó: Rosas Vermelhas para Bárbara.
No meu aniversário do ano passado ganhei um buquê lindo. Só que foi aquele buquê de adeus, sabe? Veio para pagar algumas pendências que poderiam ter ficado, mas, sinceramente, não ficou nada depois daquelas belíssimas rosas vermelhas: coisa de fotonovela. De vez em quando me lembro de um rosto simpático, de uma mão roliça de unhas tratadas. São aqueles sonhos que passam pela gente e a gente nem percebe que é real tão bons e inacreditáveis são.
Observei isso pensando nas minhas aventuras: a gente não percebe o tamanho da coisa quando ela é grande demais então vamos assimilando devagar, devagar, até ... tão devagar que não percebemos de perto só à distância.
Então, é madrugada. As músicas não são de piedade não, falam de amor, pele, fins, sonhos... e por aí afora. Tantas coisas. O bom é o silêncio que posso sentir depois da música. Raro momento esse de parada e quietude; de deixar correr o rio, ver a água doçura fazer o barulhinho ao transpor a pedra pequena. Um ruído de paz disfarçada, inatingível, de eternidade, a água transpondo a pedra. Tantas águas ainda correrão... talvez... quantas para mim ainda? Pode ser a qualquer momento não é? Pode ser a qualquer momento...
Mesmo sabendo disso gostaria de poder fazer viver esses sonhos que tenho... tão bonitos... e queria poder dar forças às minhas preciosidades... queria muito ser a solução para as dificuldades de um povo, minhas meninas tão amadas, meus garotos tão queridos e admirados. Queria tanto ...mas essa madrugada, sabe como é, não parece cooperar muito. Tenho pensado o quão triste e frustrante é ver a morte chegar, ou nem ver, e ficar esse tantão de coisa que ainda poderia ser feita.
É por isso que trabalho até a madrugada: o tempo escoa depressa demais, chego a contar os minutos. Mato um leão todo dia, vou avançando mesmo aos pedaços, mesmo lacrimejante, trôpega, insisto, empurro os entulhos para o lado, ignoro, desvio o olhar desse lado, me fixo em frente, em frente, para o sol que vem vindo, para a frente. A impressão que tenho é que vou deixando pedras fora do lugar, pedaços de tudo o quanto há espalhados, corações despedaçados. Não, isso não, pretensão. Ninguém sofre por mim desse tanto; acho que é porque o meu sofre vendo quem sofre ... por outras razões.
Minha filha morena está sofrendo – e calada que nem uma rocha, ou um portão de ferro. Não, acho que ela é um carvalho daqueles enormes que sombreiam o mundo inteiro. Sei que minha loira sofre. Tem problemas prá caramba, mas está tão longe, não vejo, acompanho com meu coração sangrando uma trilha seca até ela. Até aqueles cachos de ouro, até seus olhos inocentes de menina-mulher guerreira que se surpreende tanto a vida tem. Tanto.
E sei que minha caçula sofre. Luta com seus abismos a cada minuto, se agarra a uma pílula colorida, se veste de branco, abre as cortinas, se aferra a uma esperança esmaecida, remota, mas também teima em olhar para a frente; também sai chutando pedregulhos, avançando dois passos, recuando um e meio. Tropeça, se levanta, se agarra às mãos estendidas, pede socorro a quem não ouve seu silêncio. Nossa babá se enrosca em seu mundo e se agarra às próprias sombras... se tocar, derrete.
Assim, vamos, essas mulheres e esses homens vivos, conscientes, inteligentes, trabalhadores, apaixonados, esperançosos. É incrível como ainda temos fé. Contra todas as possibilidades e prognósticos, insistimos em esperar pelo melhor. Bem, esperar, não, estamos lutando com tudo o que temos para conseguir o que queremos.
É, enfim, tempo de pensar: o que queremos? O que quer cada membro dessa família linda que se arranha nas paredes, que mergulha na lama, que se arrasta ao longo de muros e penhascos? Aonde vamos, nós todos que nos amamos mas que não temos como estender a mão para tirar da alma de quem amamos esses negrumes? Que paródia é essa que nos obriga, nos oprime, nos arrasta, da qual sabemos tudo e nem mesmo nada? Como é que ainda temos forças para prosseguir?
É madrugada...

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 3:55’ de 19 de outubro de 2010