sábado, 27 de setembro de 2008

NOITE

Noite de sexta-feira. As moças se prepararam, cada uma com o próprio namorado, claro, para sair. Também eu resolvi que não ficaria em casa. É que se deixar me guiar pela vontade apenas, fico enclausurada o tempo todo; insisto em sair porque sei que me arrenpederia depois se não o fizesse. Nessa noite, decidi que iria para um clube dançar.
Dançar seria me colocar na linha do acaso: depois de tantos anos de decepções, ainda acredito poder encontrar o grande amor num salão de dança. Gente, é que ilusão tem seu propósito: um pouquinho dela ajuda de vez em quando. E imagino um baile, com uma mulher linda, eu, e um dançarino encantador. Acho que são livros demais ou as poucas histórias que papai me contou. Possivelmente os romances porque meu pai não teve tempo de contar muita coisa depois que já tinha capacidade de memorizar. Ou é meu inconsciente que se lembra? Sei lá. Resolvi tentar outra vez, o que tinha a perder?
Assim, me vesti com o que me servia, molhei os cabelos e renovei o creme, passei sombra nos olhos, coisa rara, e estreei o perfume que minha filha trouxe do exterior.
Apesar de ainda ser inverno, Brasília tinha também estreado o verão, antes do tempo: o dia tinha sido quente, sem sombra e sem dúvidas; mas deixaria no carro um casaco leve, para desencargo de consciência.
Cheguei ao clube quase à meia-noite. Marquei, comigo mesma, que não chegaria depois disso: era a hora da estrela. Parei na entrada e pedi permissão ao porteiro para aguardar até desocupar uma vaga no estacionamento privativo. Ele respondeu, gentil, que podia esperar. Fiquei imaginando o que aquele rapaz pensaria de uma mulher de meia idade, sozinha, com sombra nos olhos, num clube noturno. Comecei a rir sozinha da possível resposta certa de que muita coisa o porteiro nem imaginaria. Não demorou muito para o rapaz vir me entregar um cartão. Perguntei e ele indicou o lugar da vaga; estacionei, firmemente, no fundo queria mesmo era estar enrolada em minhas cobertas, e desci rumo à bilheteria.
“Boa noite. Professor paga meia?” – “Sim, se mostrar a carteirinha ou o contra-cheque”. Não tinha nenhum dos dois na bolsinha de noite que só cabia o batom, o dinheiro para uma cerveja e a carteira de motorista. A chave do carro não cabia, mas a espremi, formando um murundum do lado de fora. Paguei a entrada inteira, pensando que não sabia até quando teria dinheiro para isso, mas me comprometi a não sofrer muito quando não pudesse mais bancar tal aventura. Por enquanto, faria o possível para a noite valer mais que aquele ingresso.
Entrei brincando com os porteiros entregando o cupom errado, e depois destrocando. Ergui a cabeça ao passar pelo tapete vermelho rumo ao salão escuro. A música estridente já conseguia trepidar meu coração. Gelado, petrificado, o efeito do som era a primeira compensação pelo esforço. Besa me mucho me recebeu "machucando". Virei à direita na primeira fileira me perguntando por que sempre viro à direita. Talvez porque desse lado o salão é maior, e dá para uma porta que leva à cobertura de fumantes. Não que eu fume, mas que ali é lugar mais iluminado: as pessoas poderiam me ver, me descobrir e um simpático homem se encantaria comigo e me chamaria para dançar. Aí dançaríamos a noite toda; depois, exaustos, me imploraria o número do telefone, que, airosa e inatingível eu negaria, dizendo que não poderia existir nada depois daquele baile. Explicaria que vou ali apenas para dançar, nada mais, e partiria para sempre. Levaria muito tempo até que voltasse ali e assim, o homem encantador teria encontrado alguém para ele e não me pediria mais o telefone; e nem qualquer outra coisa que não teria para lhe dar.
Sim, era isso que pensava enquanto dava a volta ao salão, de cabeça erguida e com o fôlego na última prega para disfarçar a barriga. Depois voltei e fiz de conta que sofria incontrolável sede: comprei uma latinha de cerveja, pedi um copo, de vidro, por favor. Um rapaz de camisa vermelha, também no caixa, reclamando que não tinha mesas vagas, me deu boa noite. Retribui, distante.
Peguei copo e lata juntos e, muito segura, atravessei de novo o salão em penumbra, tentando nem chamar a atenção demais nem passar despercebida. Peguei uma cadeira da área externa e a coloquei entre duas mesas, desocupadas, mas ocupadas, se é que se entende o que estou dizendo. Bem, é que os ocupantes deveriam estar na pista de dança, mas havia copos e garrafas a meio caminho sobre os forros vermelhos. O salão cheio, garçons e pessoas entrando e saindo, indo e vindo, me coloquei num lugar em que pudesse observar a pista animada e tomar a cerveja.
Notei que um senhor passou olhando as mulheres sentadas. Ansiei que me visse, que me chamasse para uma dança enquanto fiquei imaginando, que tipo, afinal, seria o de homem que me agradaria. Conclui que seria um que soubesse dançar, que tivesse uma grande história de vida, que não fosse moleque nem bandido: posso estar esperando demais dos homens. Enquanto isso, o senhor escolheu uma mulher pequena, usando calça jeans apertada. Será que deveria vir de calça jeans para a seresta? Penso que não ficaria muito confortável na hora de alguns passos de dança mais sofisticados, como se eu fosse capaz disso, mas com um bom dançarino nunca se sabe. Definitivamente, não, o vestido que escolhi estava perfeitamente adequado para o lugar.
Saboreei a cerveja, vagarosamente. Depois, recoloquei a cadeira na varanda e rumei de novo para o bar. Pus, firmemente, no balcão de granito, copo e lata; caminhei, a passos seguros, para o banheiro. Como alça, puxador de porta, guarda-chuva, o banheiro era o porto seguro: podia ir sem ninguém criticar. Indo ao banheiro, não atrapalharia ninguém, nem quem dançava, nem garçons e nem ficaria plantada que nem bananeira com as pessoas se esbarrando em mim e me olhando estranhamente, ou não me olhando de jeito nenhum; não sei qual é o pior. Não, ir ao banheiro eu podia e ninguém poderia reclamar de mim por isso. No banheiro, eu caberia e o banheiro caberia em mim. Não, sem o banheiro não ficaria, mesmo que só entrasse e saísse rapidamente. Às vezes só me olhava no espelho para ver se tinha fechado um pouco os olhos assustados; vez ou outra tinha que dar uns tapinhas nas bochechas para disfarçar a palidez: mas sempre saía mais animada da toalete.
Numa das vezes nem cheguei a entrar. Na ante-sala, com bancada e grande espelho, uma mulher se admirava no vestido longo. Será que seria chamada para dançar se viesse de vestido longo da próxima vez? “Ei, você!!?” Eu, euzinha, eu mesma. A mulher era a esposa de um colega de trabalho de outra encarnação. Décadas, se não no plural, no singular estava certo: década, um pouquinho mais; linda ela. Como num rodopio de redemoinho, me vi tragada para o passado. Ainda bem que a memória não me falhou totalmente e me lembrei do nome logo que alcançamos o marido esperando do lado de fora. Ele, sim, o mesmíssimo. O mesmíssimo espetacular cabelo black power só mais ralo pela ação do tempo e o rosto com um pouco mais de vincos, mas o mesmo.
Santo Deus, um casal que conheci há tanto tempo ainda está junto. Como um milagre do infinito, queria que aquilo me fosse explicado. Perguntei de tudo, batia palmas, ria, me admirava, a cada vez que me contavam de suas vidas. Também perguntaram da minha: contei que estava só; por opção, o homem falou, e concordei. Ao pedido de detalhes, disfarcei e mudamos de assunto, que as novidades estavam de bom tamanho. O salão cheio, ali em pé, tentava dar espaço para um e outro que passava, então, ao me desviar de alguém, vi um vulto recostado à pilastra, bem perto, quase me tocando. Era um canto mais escuro ainda e custei a identificar o rosto: a lembrança veio chegando enfumaçada até que identifiquei um homem que conheci em outra noite, naquele mesmo lugar, fazia meses. Falei com ele, como velhos camaradas, e o apresentei aos meus amigos. Esses logo se despediram indicando onde estavam, qual mesa perto da janela, que eu fosse para lá. Pensei ser agradável a companhia dos dois, era mesmo uma boa idéia, se não fosse por me lembrarem de coisas que queria não lembrar; talvez mais tarde.
Me voltei para o espectro no escuro. Perguntei-lhe o nome, para me lembrar: respondeu o mesmo da outra noite. Depois disso, fui resgatando o que conversamos antes: água, pessoas, música; ele se sentou comigo perto da pista quando uma mesa se esvaziou. Naquela noite, tinha contado poucas coisas de si, eu de mim, partes sem importância; rimos um pouco, até que alguém o chamou. Ele se foi e eu fiquei, apenas assim.
Nessa noite, nos falamos menos ainda, lhe cochichei meu nome, também para lembrá-lo: nunca se sabe. Muito magro e pela segunda vez, vestido de escuro; escuro no escuro dava pra ver só os cabelos prateados; e não sei a cor dos olhos. Perguntei da namorada, disse que estava sozinho dessa vez. Comentou que aquele lugar fora melhor um dia; perguntei por que continuava indo se não gostava mais. Respondeu que para ouvir música. É, eu também: ouvir música bem alta, estridente, o bumbo atingindo o coração, para assim ele se mover; vendo pessoas rindo, assistindo à alegria dos outros; observando, quem sabe assim aprendo como se faz.
Um fantasma esse homem, mistério: interessante, mas não assustador. Do tipo que é comprometido e não se rende, que insiste sempre em nova busca porque o que tem não lhe basta mas também não se desvencilha do laço de uma vez. Sei demais o que é isso; realmente sei. O frio que me percorreu serviu de alerta: a mesma situação? Não!! Por isso, me despedi, saí recomeçando nova ronda pelo salão.
Resolvi atravessar a pista rente ao palco. Depois, parei como poste, pertinho da caixa de som, do outro lado. Um casal dançava passos ensaiados e me distrai admirando. Bati palmas e os elogiei quando passaram perto de mim. Havia me comprometido a fazer de tudo para a noite valer a pena... novos amigos valeria a pena. Só que eles se afastaram rodopiando quando começou outra música.
Então, o rapaz do bar, o de camisa vermelha, claro que isso não precisava ser explicado porque não tinha outro, me chamou para dançar. Perguntei: por quê? Ora bolas! Perguntei por que queria dançar comigo, pode? Pode. E dancei com ele, sem entender a resposta, duas músicas. Depois agradeci alegando cansaço, até que dançava direitinho, mas ainda não era o dançarino que queria. Me justifiquei: fui educada em lhe dar a chance; daí voltei para minha posição de poste até que o vocalista anunciou o intervalo.
Sai, batendo firme o salto no piso liso. Assim que cheguei à varanda, supresa! Encostado à tela de proteção, estava quem? O rapaz de camisa vermelha! Pensei: como é que ele passou na minha frente e não o vi? Rematei: e desde quando você enxerga alguma coisa? Ele chamou: “Marina!” era comigo, apesar de não ser o meu nome. Cheguei perto, cochichei meu nome certo. Ele riu e perguntou se o ajudaria a tomar uma cerveja. “Claro!” o que teria a perder? Fiz rapidamente as contas do horário depois que me lembrei da lei seca. Um copo daria, sim. Procurei uma mesa ao fundo e juntei duas cadeiras; esperei. O rapaz veio com um copo só, ai, doenças transmissíveis. Talvez ele tenha pensado a mesma coisa porque buscou outro copo. Perguntei onde estava a garrafa, explicou que estava na mesa, tinha encontrado uma e a garrafa estava lá para marcar território. A primeira coisa que me contou depois do nome foi que era de Minas Gerais. Depois, que estava de plantão. Acho bonito essa coisa de estar de plantão, parece escoteiro, “sempre alerta!”. Pensei que se fosse médico eu saberia logo, mas fui descobrindo devagar que era funcionário de um sindicato : estava na cidade fazendo não sei o quê. Acho que a cerveja fez efeito muito rápido porque essa parte ficou em branco na minha cabeça.
Ele disse que eu era bonita. Pronto! Destampou a filósofa: expliquei que não fico muito confortável com elogios desse tipo. Se tivesse dito que eu parecia inteligente, ou que parecia conhecer alguma coisa bem, até que seria mais fácil, mas falar em beleza comigo me desconcerta. É que beleza não é tão importante; hum, será? Ou é porque não a tenho e nem sou burra o bastante para acreditar em tais elogios? Ah, gente, tem dó!! Conta outra!
Para mudar o rumo da conversa perguntei dele: arrimo de família, não tinha filhos. E quem você amou? “Oh, amei uma mulher mais velha. Tem mais de sessenta anos, mas nunca vi tão doce. Ela é rica, mas nunca liguei para isso”. Nossa! Que bonitinho! Falou que fará quarenta e sete no fim do mês, deu o endereço de onde está hospedado, o número do celular, daqui da cidade, diga-se. Falei para lutar por aquilo que quer de verdade, que é sempre tempo de ser feliz e coisas desse tipo. Que conversa é essa? Ai. Ele perguntou de mim e contei uma coisa aqui, outra ali. Se tenho alguém? Não. Por quê? Porque mandei embora o homem que eu amava. Me olhou torto, expliquei: pedi para o companheiro de muitos anos ir embora porque não suportava mais ser insuficiente para a felicidade dele. Aí o rapaz de camisa vermelha, profundamente, me explicou que meu companheiro foi embora porque tinha que ir. É verdade: tinha mesmo que ir. E de repente parece que ele também teve que ir porque se despediu rapidamente: puft! e se foi. Fiquei sentada, quieta, na varanda já de vento fresco da madrugada, terminando a cerveja.
Quando o conjunto voltou a tocar, recomecei a ronda, indo primeiro, claro, ao banheiro. Passei observando as mesas perto das janelas, lembrando dos amigos encontrados inesperadamente. Também vi que, se fôssemos educados, as torneiras do clube poderiam voltar a ter o controle manual para economizar água. Dessa vez, nem me olhei no espelho. De volta ao salão, ah, a essa hora não havia mais homens simpáticos procurando alguém para dançar: já haviam encontrado. Pensei em ir embora, mas o preço do ingresso me obrigou a ficar: compromisso é compromisso.
Fui ao canto onde meus amigos indicaram a mesa e já quase todas estavam vazias. Perguntei, ao garçom, por um casal assim e assado mas ele não soube informar. Descobri um homem sentado sozinho, usando fulgurante camisa estampada de verde e preto. Os cabelos, na penumbra, bem, estavam em penumbra. A pele era clara. Me deu vontade de falar com ele, mas fiquei observando a direção do olhar e vi que eu não parecia ter o que ele parecia procurar. Me recostei por ali, entre a porta para o hall de entrada e a primeira mesa da pista: cuidei para não atrapalhar a passagem, enquanto assistia aos dançarinos. Agora, além de mais dois casais desfilando passos ensaiados, um par contava com uma mocinha em vestido rodado que parecia bailarina tal a perfeição dos rodopios. Notei que as pessoas parecem estar se importando em aprender a dançar de verdade. Não pude deixar de pensar nas poucas aulas que freqüentei numa academia.
Passou por mim uma senhora linda num vestido preto cheio de laços com os cabelos presos em cachos despencando: brincou com dois homens que a disputavam. Dançou divinamente com um, depois com o outro. O que será que ela tem de atraente? Será que dá para aprender?
Nisso, o príncipe das trevas tinha reaparecido e se sentado numa das mesas vazias na linha reta da minha visão. Só registrei o fato, mas me mantive longe: o deixei lá, na sua total escuridão e continuei firme grudada à parede. Pensei em me sentar numa das mesas depois de tirar os guardanapos amassados de cima da toalha, mas me peguei achando que aquilo era serviço do garçom e se ele não estava se incomodando porque deveria eu me incomodar? Continuei em pé, grudada à parede, assistindo aos casais dançando. Fui me lembrando da minha paixão pela dança, de agora até os primeiros anos de adolescente. Naquela época, quando demoravam muito a me tirar, o que pode ter, afinal, acontecido por toda a minha vida, pulava no salão, não importando se vazio ou cheio, e me punha a dançar mesmo sozinha. Poderia até estar sendo ridícula então, mas e daí? Bem, pensei, se já era difícil me chamarem naquele tempo, imagina não sendo tão mocinha mais? Acorda, mulher! Já não é sem tempo, acorda!
Isso me fez pensar em sair dali. Olhei o relógio do celular, também espremido na bolsa, me esqueci de dizer, mas não eram nem três da manhã. Olhei a pista: ainda havia uma chance para mim. Me aproximei da linha marcada e fitei a luz do palco: direto no cérebro, a faixa iluminada parecia me colar ao chão. A música, mais alta dali, fazia meus ombros seguirem a cadência. Um homem se aproximou, convidou e fomos para a pista. Ou eu não sabia dançar nada ou ele não sabia ou estava bêbado ou as duas ou três coisas juntas: foi um desastre. Devo ter beirado ao tombo uma dúzia de vezes tentando seguir os trejeitos do condutor. Só consegui suportar uma música inteira e na metade da segunda tive que inventar que o sapato estava machucando; pedi desculpas e sai mancando.
Me plantei perto da porta de novo; em seguida o cavaleiro das trevas fez o mesmo, pertinho de mim, de modo que pude observar o rosto de cadáver quase tocando o meu. Comentou que não dançava porque as pessoas não gostavam de gente velha; me recusei a me enquadrar naquele ponto de vista. Conversa vai, conversa vem, falei que minha caçula iria se apresentar na cidade e que gostaria de convidá-lo. Ele aproveitou para dizer que também tinha uma filha estudando no conservatório de música em Belo Horizonte. Quando peguei um guardanapo da mesa para anotar o telefone, ele avisou que decoraria o meu número. Ah! Tudo bem! Disse que só tinha o número do trabalho, uma multinacional americana, que era digitador, ou coisa que o valha – me vi remendando pedaços de informações. Falei meu telefone e ele o repetiu imediatamente. Ah! olha como é difícil entender o mundo: para um não quis dar o telefone, para outro dou. Fantasia, seleção natural, estupidez? Uma coisa, ou todas, e vamos levando enquanto não há necessidade de concessão ou compromisso.
Ainda o homem em negro e prata me apontou o homem da camisa em verde e preto, dizendo ser o melhor bailarino do clube em todos os tempos. Trim! Alarme, informações com muitos significados. Então, o príncipe em negro que não tem telefone, nem e-mail, que não gosta mas vai e que conhece um pouco de história, se foi, por sua vez, me dando dois beijinhos no rosto.
Voltei para a linha da pista, teimando em ficar ainda no clube. O homem dos tropeções se aproximou de novo e queria me passar a mão. Chamou para dançar, neguei dizendo que estava com os pés machucados e só esperando minha turma se dispor a ir embora para ir também. Posso telefonar? Pediu tantas vezes que até me deu vontade de dizer que podia. Queria só saber da próxima pergunta: qual é o seu número de telefone? Aí me lembrei do que queria quando entrei no salão e o que diria ao senhor simpático com quem dançaria a noite inteira. A vida é irônica, não é não?
Tive que sair de perto da pista para me livrar do insistente. Fiquei de longe, agora observando o homem de camisa verde e preto dançando com uma moça de saia branca rodada. Será que aquela minha saia branca rodada está muito velha para usar aqui?
Quando o dançarino saiu da pista, depois de já ter dançado com outra mulher e girado lindamente pelo salão, não resisti e lhe estendi a mão que foi apertada de volta. “Nossa, você dança muito bem! Esteve ótimo!” - “Não estou nada bem hoje, estou muito cansado.” “Não, o que é isso, esteve ótimo!” ele ouviu enquanto se afastava no escuro.
Não, definitivamente, nada mais aconteceria naquela noite. Saí, sem brincar com os recepcionistas, calada, com a cabeça baixa, talvez pelo frio que começava, pouco, mas começava. No carro, vesti a blusa e manobrei, friamente, rumo à saída; agradeci ao porteiro e espiei pelo retrovisor: não estava sendo seguida. Piada? Não é não. É sempre bom prevenir.
Dirigi pelas ruas escuras, o mais rápido que pude. A casa calada me recebeu segura, a cachorra se abanando para mim. Todas recolhidas aos quartos, procurei não fazer barulho; já tinha deixado a cama arrumada e me enfiei sob as cobertas. Tinham se acabado o longo dia e a longa noite. Só consegui pensar, num último rasgo de consciência: “Oh, Deus! O que há de errado comigo para ser assim ainda tão difícil?” Adormeci sem cogitar a resposta.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 16 de agosto de 2008.

PRIMAVERA, EI-LA!

Não é que estivesse distraída porque me assustei quando ela amanheceu. Eu a esperava, mesmo que sua chegada sempre seja ausente: ela manda parte da bagagem, uma lembrança, pedaço de susto – ai, chegou?!! – Não, não ainda. É só um sinal: aquele ipê é temporão, aquela paineira é exagerada! Mas calma, ela vem, não é ela ainda, mas está chegando. Espere... Acho que é para fazer teatro, criar clima, fazer furdunço, ventania. Mostra a amostra do que pode vir a mostrar. Se mistura ao inverno e ao verão, tentando enganar, querendo fazer suspense. E suspensos a gente fica, secando, vigiando o céu e escutando o silêncio do descampado do cerrado. Será que esse ano ela chega antes da chuva? E as cigarras, anunciantes, ainda não começaram a cantar... mas que bagunça é essa de secura, cigarra e chuva. Você não está esperando a primavera? É porque quando ela vem traz tudo junto e mais: a luz de Brasília é sempre a espetacular claríssima luz de Brasília; a chuva que acompanha alivia tanto o ar quanto o coração com suas cantigas de cobertor; o vento que já passou os brabos de fim de inverno, esses agora acariciam as quinas; as folhas novas vestindo de novo as árvores cansadas; e ... as flores. Pode ser que exista, claro que existe, coisas tão lindas quanto as flores, mas, não em significados: nascer, renascer, recomeço, início, semente... Isso sim é coisa boa demais!! O novo, a hora de respirar diferente, pensar diferente. Pensar em felicidade possível, em sonho antigo bom de ser realidade. É essa confusão, agora perfumada, que sinto com a chegada da Primavera. Mesmo que ela sempre faça esse jogo de nunca chegar quando a gente quer que venha. Mas ela pode fazer jogo, ela pode. Mesmo porque a gente tem paciência em penca para agüentar: é que ela sempre vem, dia menos dia ela chega; e aí... a Primavera!! Ei-la!! Por Magda R M de Castro Brasília, 23 de setembro de 2008.

domingo, 21 de setembro de 2008

UMA MULHER BEM AMADA

Depois de um show, minha filha artista pegou os programas que sobraram para colher mensagens dos amigos e guardar de lembrança. Mania que herdou de mim, guardar lembranças delicadas como se fossem pequenos pedregulhos marcando o caminho percorrido.
Uma das mensagens que recebeu foi a do namorado, recente assumido como fazendo esse papel na vida dela. Não foi uma mensagem piegas, ou copiada de poeta, disso nem sombra, aliás. Como sou viciada em leitura, deu para ver que era original o elogio, criativa a forma que usou, simples, mas não menos certeira, a declaração escrita, ora com palavras salientes mostrando que escreveu por cima muitas vezes, para reforçar talvez, ora com letra fina e clara.
Eu tinha os olhos lacrimejantes quando terminei de ler a mensagem desenhada entre os vazios do folder do show. Aquela era uma boa lembrança para guardar: preciosa, valiosa. Comentei com minha caçula que a vida tem o milagre de nos permitir tocar os nossos sonhos mais profundos, se não por os vivermos, mas por vermos que nossos filhos os alcançaram.
É que foi meu sonho a vida toda encontrar alguém que me lesse sem que eu mesma fosse capaz. Tolice, talvez, mas para mim, me entender tinha o significado de interesse profundo, transparência de intenções, sinceridade. Fui uma mulher que procurou dar o espaço necessário às pessoas, permitindo que cada uma vivesse de acordo com as próprias convicções e capacidades, e sentimentos verdadeiros, mesmo que isso as afastasse de mim.
Então, olhando para minha filha naquela manhã, transformada de menina birrenta em mulher serena, e sendo definida pelo namorado naquela mensagem, me emocionou demais e fez valer tudo. Ela respondeu ao meu comentário dizendo que tinha encontrado um bom homem, o que todas concordamos na hora. Durante a maratona dos shows, tanta coisa para arrumar, a gente em casa correndo como baratas tontas para cuidar dos afazeres corriqueiros e desses agora, extras, o namorado foi grande. A assistência que deu à debutante no mundo dos espetáculos musicais foi de tirar o chapéu. Ajudou a vender ingressos, divulgou e levou amigos, família, colegas de trabalho. A ajudou carregando mala de apetrechos e caixa de isopor com água e suco; estava na platéia no começo e no fim das apresentações; vibrava com as notas que a cantora distribuía do palco; e esperou, todas as noites, que ela arrumasse a tralha para trazê-la de volta para casa, não importava o quanto demorasse. E, no final, lhe escreve lindas palavras.
Todo mundo correndo também pra lá e para cá, ajuda aqui e ali: a irmã, a babá e eu, todos combinando só ajudar caladas, sem dar palpite, só seguindo os passos da artista, para que tudo desse certo, então, a ajuda do namorado foi importantíssima.
E o show deu certo, foi show mesmo, a semente como comentamos depois, de carreira brilhante. A semente, o começo, o lançamento, depois de longa jornada, de trabalho, de esforços, de desencontros, brigas até. Tinha dias em que a moça parecia ligada na tomada. Isso não só agora, mas no decorrer de sua vida até aqui diante de tantos obstáculos e dificuldades, natural, mas ela era muito, mas muito mesmo, cabeça dura: fazê-la mudar numa coisa era trabalho de Hércules.
Então, aconteceu: o amor fez dela criatura suave, de chamar para conversar e pedir opinião. Aceitou o conselho da irmã a respeito do cabelo, deu espaço para as pessoas mostrarem também o próprio brilho, soube esperar pelo seu momento. Soube esperar pelo seu amor também: o primeiro namorado, de verdade, aos 18 anos é coisa rara hoje em dia. Ela esperou.
Como vem esperando os momentos certos para as decisões mais profundas. Esperou pelo melhor, não aceitando o meio-termo, nem o morno, nem o mais-ou-menos. Estreou o show, com tudo que tinha direito: mostrou no palco o resultado de trabalho árduo e disciplinado, mas com a serenidade de um coração preenchido, de uma alma que chegou, de alguém completo. Sua expressão, no show e depois dele, é de quem confia, em si, principalmente.
Isso é obra do amor. Foi preciso mundos e fundos para fazer dela uma mulher feliz? Não. Presença, sinceridade, entendimento, apoio em momento importante; valores que batizaram pessoa nascente: nova mulher, bem amada.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 10.09.08