sexta-feira, 8 de agosto de 2008

BRASÍLIA NO INVERNO

É seca. Estrala até, a grama sob os pés. Isso quando ainda resta grama: montículos amarelo-cinzas misturados à terra vermelha do Cerrado, esse agora adormecido, entregue à sorte do tempo. Seco é também o ar, na verdade ele nem está lá. Sumiu como a umidade preciosa, mas olhos esperançosos rumo ao céu infinitamente azul os procuram. Vez ou outra a poeira das eternas construções embaça a abóbada anil que vigia do alto.
Seca também é a paineira que se recolhe para dormir seu sono de proteção. A vemos perder as folhas, depois as flores milagrosas irrompem; essas dão lugar aos ninhos de plumas que se espalham pelas calçadas, avenidas, telhados displicentes. E seca de novo. Espera, adormece, aguarda novo tempo, mas, por enquanto, é inverno.
Os ipês fazem a mesma coisa com a diferença de que são mais esguios, mas florescem primeiro. Esses estréiam o inverno enfeitando as tesourinhas do Plano Piloto, as alamedas centrais das avenidas e os redutos onde sobrevivem amostras do Cerrado, por enquanto.
Por agora, o inverno traz vento, silvando pelas janelas fechadas, pecado. Fechar tudo atrapalha a luz, consolo de quem tem sede, de quem que ir lá fora e espiar o mundo, vê-lo reviver, acompanhar o renascimento. Esse ainda demora, mostra o calendário, vez ou outra consultado para preparar o coração, para respirar fundo e encontrar ânimo para esperar mais um pouco.
Porque Brasília ainda está de inverno. Recolhida em seu costumeiro silêncio parece flutuar amparada pelas suas imensidões. De qualquer ponto se vê ao longe, se vê o tempo registrado em esculturas brancas açoitadas pela poeira. Serão lavadas mais proximamente às chuvas, mas até lá, perdem o brilho de espetáculo: a cidade dorme.
Não tudo, vi ontem quando fui ao Plano. Fui jogar baralho com umas amigas: todas matando o tempo do inverno, da espera. Não dá para fazer muita coisa na cidade crestada sob o vento poeirento. Clube nem pensar, que a pele racha em minúcias. Caminhar no parque exige mais que energia: é uma questão de genuína coragem. Até dá para andar, devagar, sonolentamente, o circuito de quatro quilômetros porque é ao redor do lago dos patos. É mais úmido, portanto. É também onde as árvores mais antigas dão sombra. O circuito de seis quilômetros é mais árido, mais aberto, exige maior esforço. Já o de dez quilômetros vira cinqüenta, ainda mais que sofreu perda enorme no inverno anterior: todo o bosque de eucaliptos decenários foi derrubado. Estavam caindo com as ventanias costumeiras do planalto descampado, risco para os visitantes. A água mineral poderia ajudar, não fosse o gelo da água. Cristalina, convidativa, serena... e fria. Não dá para encarar. Shopping tem muito, diferente do saldo na conta do banco. Definitivamente, jogar baralho é a melhor opção, por agora.
Então, fui jogar Buraco. Ainda de férias, já de volta de curta viagem, o recesso do trabalho ainda não terminara. Reunir as amigas, reunir pratos de diferentes quitutes, reunir opiniões e... curtir Brasília no inverno.
Para chegar à quadra onde mora a amiga da vez, fiz o caminho do Eixo Monumental. Assim que sai da pista que separa o Sudoeste do Cruzeiro Velho, dei de cara com dois ipês amarelos. A repentina visão me surpreendeu: dois buquês, um grande e um médio, arrombando a vista costumeira. Impávidos, sem ciência do assombro que causavam, os hospedeiros das flores cor de ouro irrompiam por entre a paisagem de cinzentos. Quase não acreditei no que via, portanto, me esforcei para olhar de novo depois que pus o carro na pista de acesso à avenida.
O bom é que depois do quase susto dos ipês exuberantes reparei também as patas-de-vaca: já floriam. Essas, ainda tímidas, mostravam com suas flores ora brancas, ora lilases, ou quase azuis que vencendo a carestia, adiantavam a primavera à Capital; apesar de ainda ser inverno.
A Pirâmide do Mausoléu de JK refletia a brancura esparramada sobre gramado cortado rente, mas meio cinza. Vi, contente, que há árvores bem verdes na lateral da avenida. No meio, espécies de todo tipo, frutíferas inclusive, principalmente mangueiras e amoreiras, se misturam, verdejantes e faceiras se balançando ao vento. Recentemente foi que descobri que todas as árvores dão flores, pode? E perfume. E aqui no Cerrado, o inverno é o tempo de explodirem em cachos ou isoladas, perfumando o ar raquítico. Em pequenas caminhadas, feitas vez ou outra, descubro diferentes formatos e cores dessa proteção verde da capital brasileira. Em cada bosque da cidade há o tributo a uma espécie diferente: representações de todo o Brasil na arte brasiliense.
Uma espécie que parece vencer o tempo impiedoso é a dos bougainvilles. Nos jardins plantados entre o Conic e o Setor Hoteleiro Sul, há boas amostras. Já são grandes o bastante para formarem árvores e não faz diferença a inclinação do terreno: surpreendem quando se para no semáforo antes da Rodoviária e se olha para a direita: as flores matizam rosas, amarelos, laranjas e vermelhos: sobem a colina e se juntam à imensidão do horizonte.
Olhar o vão central da Esplanada quase pode ser triste porque nesse há mais paineiras, por ora ressequidas e mudas, mas há muitos ipês. Desses alguns já explodiram em pomos e cachos só que cor de rosa, principalmente os mais próximos ao Congresso, depois da Catedral. Ignoram a falta d’água e insistem em alegrar a desolação ao redor. É, milagre tem todo dia mesmo.
Mas nessa tarde poeirenta e desértica, de luz tilintante, segui pela L2 Sul. Minha amiga mora nas quatrocentos. Observei mais bougainvilles, e, imaginando quanto resistentes são, me perguntei: com esse nome em francês será que vieram da Europa? Como é que podem estar tão exuberantes a ponto de se espraiarem, em pencas de flores, até pelo chão terroso nessa tarde de inverno seco? Mistério que não estudo plantas, mas até que é uma idéia pesquisar como se adaptam ao ambiente inóspito da capital federal: poeira, secura, ventos constantes. Me consolo pensando que, talvez, seja porque é assim só no inverno. E inverno, bem, como todas as outras estações, também não dura para sempre. Graças a Deus.

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 08 de agosto de 2008.