quarta-feira, 9 de setembro de 2009

FANTASIA

Nem havia começado a viagem e ele já tinha se feito notar. Não um notar de espanto, de súbita consciência de sua presença ou da clara informação de que estava ali; não assim. Ela o notou, não no momento: só mais tarde é que percebeu que o havia notado ali, sentado num dos bancos de cimento. É que ela estava a caminho de comprar uma lata de refrigerante e, como se fosse rainha dando reles crédito a súdito insignificante, passou perto de onde ele, e mais outros três, parece, estavam sentados “vendo o bonde passar”, e cumprimentou sem olhar diretamente nos rostos; havia penumbra. Ela queria uma cerveja, mas achou que se exporia demasiadamente na cidade pequena, sozinha, de viagem, e beberia sozinha também. Não, o refrigerante cairia melhor, muito melhor.
O dia tinha sido de pesado trabalho, muito calor e sede implacável. Água não fazia mais efeito, as pernas viraram balão e apenas caminhava por teimosia: os pés dentro do tênis macio latejavam; mas, “descanso durante a longa viagem". Até lá, nos últimos minutos antes da partida, avisou ao motorista que voltaria rapidamente, que não partisse; “volto logo”.
Foi quase chegando à porta do bar de bancos altos em frente a balcão comprido, que ela o viu; mas não viu de verdade. Sentiu; a observavam, muitos olhos, então, para não tropeçar na própria sombra, deu boa noite. Jogou o boa noite pelo cimentado do chão com o propósito de que o cumprimento, era muito educada, os alcançasse. Nem fazia questão de que respondessem, já havia passado por isso antes, mas faria a parte dela e que aproveitassem se quisessem. Responderam, todos eles e talvez por isso, quando voltou, passou calada. Perdeu a fala, parece. Mesmo porque quem estava ali não correria o risco de se sentar ao lado dela no ônibus: estavam longe do carro já funcionando; provavelmente ninguém ali iria embarcar. E ela já tinha sido benevolente ao extremo de dar boa noite; cumpriu, portanto, sua obrigação.
Estava enganada: ele entrou no último instante; depois até do motorista. Trazia uma mala presa ao corpo e só, nada mais. Os cabelos pareciam ralos na frente, talvez tingidos de antigamente, já deixando transparecer brancos. Nada disso era certo; ela não o encararia; estava com medo de alguma coisa. Não poderia explicar, eram instintos, apenas.
Ela se sentou perto de uma senhora que conhecera em outra viagem. Se reconheceram, lembraram os nomes de cada uma e a conversa se atrelou a assuntos tão diferentes quanto a capital para onde estavam indo, o cultivo de minhocas, mudas de flores, filhos, e a impressionante coincidência das duas mulheres quererem estar em dois lugares ao mesmo tempo. “Quando estou lá quero ficar, mas preciso voltar; quando estou aqui, não quero ir, mas tenho que ir”; isso, na primeira parte da viagem, que durou cerca de meia hora.
Numa cidade próxima teriam que embarcar noutro coletivo: esse vindo de muito longe; antes, esperariam na plataforma ventanosa e solitária. Sendo, portanto, meia dúzia de desenganados viajantes, e o espaço de descanso exíguo, as conversas foram se misturando até que alguém chamou a atenção dela: “Estou ouvindo a conversa e vi que você é irmã de conhecidos, fulanos de tal; é verdade?” “Oh” que interessante! Alguém se acerca, sabe quem sou eu...”, pensa a palradora... Dá ao moço o benefício de sua atenção e responde com outra informação: “É verdade, sou sim. E você é o vizinho que bebe da mesma água que meu irmão, não é? Aquela cacimba é antiga, muita gente fala nela.” – “Isso mesmo. Vocês já mandaram analisar aquela água? Deve ter um 70 de pH.” – “É pura mesmo, não é?” – “Sim, parece que tem gosto próprio.” – “É doce...” ela confessa público segredo: os planos de construir naquela serra especial, um chalé...
Ele, o quarto personagem entra na conversa: “Toma muito cuidado que lá tem onça à beça...”. Homem falante 1: “Ainda tem? Já acabaram todas, não?” – Mulher menos falante: “Cruz credo! Onça não...” Ela: “Pode ser, dias atrás pulou uma no capô do carro de um dos meus irmãos; parda, balançando a barrigona; deu dois pulos e estava do outro lado, no mato”. – “Acho...”, pensa, não foi em um lugar mais longe? Ah, que importa, serve para manter a conversa animada.
“E cascavel também; tem muita cobra naquela serra.” Trovejou o quarto personagem, ele – Foi a vez da tagarela, ela, se assustar: “Muita, é?” – “Demais...” Ela pensa na última vez que tinha subido a serra: correu de canto a outro de um espigão varrido pelo vento por séculos seguidos. Nem uma árvore dali contaria qualquer história: não existiam. Só capim baixo, tombado, como se tivesse sido penteado cuidadosamente...
“Nossa, poderia ter sido picada naquele dia”, pensa ela. Não diz por que seria íntimo demais. Ele continua: “você quer vender sua parte lá em cima? Preciso de terras para reserva; lá em casa são oito irmãos e ninguém tem reserva. Sabe como é, né, desmata-se até na beira do rio...” – “Criam gado...” ela pondera. Ele consente e arremata: me vende que depois você pode continuar lá e fazer o que quiser. Só não pode desmatar”. – “Já disse que não tem árvore lá, moço!” – a mulher meio calada avisa: “ela quer é plantar...” Isso! E quem sabe montar um hotel de ecoturismo; daqueles, por exemplo, para quem gosta de silêncio ou de ouvir passarinho. Tem gente de todo jeito, gosto para qualquer coisa; fazer lá no alto, com a vista que aquilo tem, um lugar gostoso para descansar seria ótimo. Falta grana, mas quem sabe o dia de amanhã?
“Não investe nada lá não. Fazenda não dá dinheiro”. – “Não é só dinheiro que procuro”; ela lembra que quase todo mundo fala isso. "será que só o que importa é ter dinheiro?" Ela tem ganas de desafiar essa lei "geral". Pensa: "Gente, é só um sonho; deixa eu sonhar!" e quem sabe o dia de amanhã? Foi pensando nisso que agradeceu a oferta do moço do cabelo indefinido que entrou no ônibus sem mostrar que ia entrar. “Sei não, tem cada coisa nesse mundo!!”. Ela se afastou, quieta, tinha o que pensar, levou um susto ao receber a brusca oferta. O dinheiro ajudaria em tanta coisa... Não, não poderia abrir mão daquele sonho: o tinha há tanto tempo. O que faria depois, sem ele?
Por via das dúvidas, ela ofereceu, a ele, um cartão. Vendo a profissão, perguntou se ela fazia projetos de instalação de hidrelétricas. Sem saber por que, ela confirmou sem hesitar; nunca fez um. É que nada a impede de contratar uma equipe de outros profissionais para fazerem isso; ela administrando tudo. Daí ele perguntou se ela sabia de pessoas que queriam vender hidrelétrica pequena, num certo Ribeirão, num certo lugar. Respondeu que não sabia, mas que poderia perguntar, tinha contatos na dita região. De raspão, ele fez uma promessa: “se me indicar um bom negócio, ganha um carro de presente”. Ela não acreditou no que ouvia. Estava com a sensação, há dias, de que em breve ganharia um carro, sim, quem sabe porque sentia aquilo? E essa proposta é séria? A quem realmente recorreria para ter informações do dito lugar? Já foi logo imaginando, ampliando a ilusão rasteira.
Ainda esticou a conversa contando iria "lá" no sábado, para uma festa e que especularia a respeito; portanto, precisava do telefone dele para fazer contato, caso conseguisse alguma coisa.
Depois de entrar no ônibus, a conversa foi interrompida: cada qual foi pr'um lado; só os dois homens conversaram ainda, por breves momentos, quase cochichando, mas também eles, como os demais passageiros, se abandonaram ao balanço monótono do veículo avançando rapidamente pela longa escuridão: por cerca de duas horas tudo ficou quieto. Na primeira parada, com caras já da sonolência avançada, ele e ela se encontraram no salão da lanchonete. Ele a olhou com um jeito maroto: “fulana, será que você se acostuma na cidade pequena de novo?” A resposta perfeita seria: “dependerá dos estímulos”, mas ela, talvez por cansaço, só sorriu para o rapaz desgrenhado; e se perguntou como é que um homem que conhecera há poucas horas, lhe fazia pergunta tão pessoal e ainda lhe dava conselhos? Ele tinha repetido: “Não investe em fazenda, não. Não dá dinheiro!”
Depois disso, ele saiu pela roleta da entrada e ela o seguiu, mas, instintivamente, o deixou se distanciar. Algo lhe dizia para manter espaço, deixar vazios entre ela e aquele homem: ele não era nada comum. Sabia seu primeiro nome; lhe bastava. O sobrenome poderia trazer um laço, quem sabe um parentesco, eram da mesma região, ao qual ela não estava tentada a se arriscar. Não, ela não se sentia muito segura com aquela intimidade; e ele desceria adiante, na próxima parada.
Foi o que se deu: telefones anotados, segredos repartidos, propostas insólitas, alguns quilômetros na mesma direção e a sensação indefinida em relação àquele personagem; tanto, mas nada evitou que ele descesse onde disse que desceria. Quando o veículo parou, com o motorista avisando apenas embarque e desembarque, ele se levantou.
Ela aceitaria com naturalidade se ele tivesse se esquecido dela e descesse do carro, em silêncio, discretamente, talvez tão furtivamente quanto havia entrado. Contrariando essa expectativa, entretanto, ele deu dois passos em direção à saída e de repente se voltou: olhou só na direção dela, parecia olhar tateando no escuro. A encontrou e acenou; um único aceno. Ela fez a mesma coisa, com a mão espalmada e imóvel; notou que mantinha o anel de prata enfeitando um dos dedos.
Tudo simples, automático, natural. Ele se foi como disse que ia; ela continuou viagem como disse que faria. Só os pensamentos que a seguiram pelo resto do percurso, e por muitos dias depois, a advertiram de que aquele homem estranho, mistura de atração e assombro poderia ter mudado sua vida para sempre. Sim, se tivesse aceitado vender sua propriedade, estaria embarcando para outras aventuras, nesse momento.
Não, obrigada, pensou ela. Não sabia o que fazer, o que lhe reservava o futuro, mas sabia que aquele sonho, por mais improvável que fosse sua realização, valia mais que qualquer dinheiro. Estava decidida quanto à não venda; só não estava decidida quanto à familiaridade com aquela figura noturna, íntima, tão assustadoramente próxima que fez parte de sua noite por algumas horas; e que esteve à beira de significar tantas diferentes realizações.
Ela, entretanto, era experiente: sabia que aquele rosto se esfumaçaria, se não no amanhecer que chegava, num outro qualquer no futuro. O resto da viagem, entretanto, foi gasto em reconstituir os diálogos, os olhares, os conselhos, a proposta, a promessa. Também foi assim pelos dias seguintes, mesmo ela estando distraída com tantos afazeres. E saber ser pura fantasia tudo que imaginara ser possível acontecer em relação àquela figura não a impediu de vigiar, na viagem de volta, com cuidado, tentando evitar que aflorasse uma réstia de esperança, os passageiros que entraram na parada onde ele desceu. Ele não apareceu, e as razões poderiam encher grosso relatório, ela sabia; mesmo assim, esperou, muito; e disso também ela sabia: esperaria em vão.

Por
Magda R M de Castro
Abaeté, Minas Gerais, 09 de setembro de 2009.