terça-feira, 7 de abril de 2009

CHUVAS DE ABRIL

O tempo está mesmo virado. Já é abril, se aproximando da metade, com todos os feriados marcados, com os compromissos selados e ainda chove; muito.
No final de semana passado foi chuva direto com gente encolhida nas cobertas, estendida no colchão da sala de televisão assistindo a filmes e comendo, nada mais.
Até à apresentação da ópera que teve, de graça, no Teatro Nacional, no sábado à noite, ninguém foi: parece que a preguiça pega logo na sexta-feira e embala pelos outros dias até varar a segunda sonolenta.
Sim, a chuva. Em comparação com o ano passado, ainda não choveu tanto, mas é possível que vá chover mais já que continua. Dá a impressão de que o tempo mudou de lugar, ou as estações se trocaram por conta própria: Brasília se engalana talvez tentando criar para si uma primavera a mais. Brasília é assim mesmo, tem tudo muito mais.
Então, chove muito em abril, tanto, que ainda catamos baldes de água para lavar o pátio branco da frente: esse pode lavar a toda hora porque é onde fica a cachorra. Enorme, preta de dentes brancos em gengivas vermelhas é fera, mansa. É uma labrador, mas não late, contrariando o nome. Ela gosta de ficar grudada à porta de vidro da sala; suja a parede e o vidro e seus pelos se espalham pela varanda, pelo pátio e enveredam pelos ladrilhos desenhados da casa. Então, de água e sabão, toda quantidade é pouca.
E chove. Os pingos se arrebentam contra calçadas e janelas fazendo barulho, refrescam o dia ainda no começo, avançam pela tarde e se espreguiçam pela noite até que os cobertores encerram a questão. Não há mofos porque Brasília é muito seca, demais isso também; um raiozinho de sol entre as chuvas é suficiente para enxugar tudo muito depressa.
Tenho um casaco pesado, grosso, da cor de burro fugido, com alguns remendos, disfarçados, pendurado num cabide atrás da porta do meu quarto junto a uma bolsinha de pano e a um soutien de renda antiga. São itens que preciso caso tenha que sair de casa depressa: o necessário para não fazer feio ao botar os pés na rua... E a chuva continua, quase esfria, espreito o casaco.
As paineiras se jogaram mesmo na avenida: pelos muitos jardins de Brasília, explodem em cachos farturentos. Uns são muito coloridos, de forte cor de rosa; outros, mais tímidos, talvez, desabrocham, aparecem, mas não se escancaram como os primeiros, mas enfeitam, ah, como enfeitam. Em algumas pistas, no Plano Piloto, principalmente perto do Santuário Dom Bosco, na rua que se avizinha das residências, há uma fileira. Noutras ruas também, principalmente nas perpendiculares à W/3 Sul. Na Asa Norte elas são mais abundantes nas laterais do Eixão onde dividem espaço com jamelões, ipês, amoreiras, flamboyants, mangueiras e até goiabeiras.
Mas na Asa Sul é onde há mais paineiras, talvez porque foram plantadas anos antes; e muitas no Setor de Autarquias. Ali tem carreiras inteiras de flamboyants e ipês, e paineiras robustas, razão de haver sempre flores pelo Setor. As patas de vaca ainda estão indecisas, pintando um ramo ou outro, apenas. Já os ipês estão completamente calados, protegidos por folhas muito verdes.
Perto do Fórum tem um casal de paineira e ipê; essa é uma das maiores da cidade e ano a ano empurra o ipê para o lado e agora entrelaça suas cores aos galhos do vizinho mudo. Ela se espalha, arma roda, distribui flores aos pássaros, às abelhas, ao céu, ao chão. Faz tapetes, faz hora, faz fita; se enfeita, se mostra, se exibe: é seu tempo por direito.
Mas chove. O dia adormece, a rua cala, os movimentos são suaves, os pássaros... é mesmo! Onde estão os pássaros visitantes de antenas e vasos de folhagens? Sumiram? Estão dormindo, possivelmente. Assim dão folga para a minha pimenteira: arvorezinha imponente, reta e elegante, de folhas verdes que nascem roxas como se fizessem grande esforço ao brotar. Depois se transformam em verdes para depois abrigar pequeninas flores brancas em forma de estrela. Essas quando caem, deixam pequenos bulbos roxos como se fossem mini berinjelas. O cheiro é seu maior talento e mesmo ainda verdes, roxas, no caso, as pimentas são verdadeiras iguarias picadinhas sobre arroz quente. Ficam da cor do vinho quando amadurecem e os pássaros não as deixam escapar; vez ou outra é preciso espantá-los. É que há duas moradoras que disputariam com unhas e dentes essas frutinhas picantes; o que lembra o que dizia um certo avô: “mais vale um gosto que um caminhão de abóboras”.
E continua a chuva. Não estava chovendo hoje cedinho, antes das sete, quando levei a filha morena ao trabalho. Nem quando tomamos o café da manhã, a caçula, a babá e eu, nos esbaldando à mesa farta de leite e café quentes, pão fresquinho, outra coisa fantástica de Brasília e manteiga mineira, prazer nunca dispensado. Pois é, cedinho do dia não estava chovendo, tanto que me apoderei de uma tesoura e podei as folhas machucadas de uma folhagem.
Mas agora chove e parece que vai continuar assim. O helicóptero que sobrevoa a quadra parece também encharcado, devagar, ruído embaçado, som distante. Quem está na casa tem que acender as lâmpadas, coisa deplorável, tudo tão artificial! Queria estar vivendo apenas com a luz do sol. É, mas teria que estar lá fora agora, na chuva. Ou poderia estar num rancho, acocorada sobre um fogão a lenha. Chii! Impacto maior ainda, queimar madeira. Ah! Não há muita saída não. Voltar para a caverna e trabalhar apenas enquanto tiver luz e dormir num dia como esse; virar natureza de novo? Não creio ser isso mais possível aos viventes desse Planeta.
A tarde refresca, visto o casaco, sinto os pés friorentos, diferente de ontem à noite em sala de aula, lembro. Estava chuviscando fora, mas no interior da sala, talvez pelas respirações dos alunos, e eu, de meia colante, sapato fechado, vestido por cima de blusa, brinco e colares – nossa, vejo agora que parecia uma árvore de Natal, apesar de que ser árvore não é mesmo idéia ruim – estava muito quente. Estava, porque agora, não está nem um tantinho.
É porque chove, há dias está assim, Brasília. Arrumando a casa, a babá resmunga do meu quarto que quem quiser assistir à Via Sacra da Semana Santa terá que fazê-lo debaixo de chuva porque “parece que não vai parar”. Parece mesmo.
E o dia se faz noite, serenamente, o calor se derretendo pela enxurrada ora silenciosa ora em trambolhos. O ar tem perfume suave, talvez das paineiras, talvez das patas de vaca, essas, que invejosas da farra devem logo estar também florescendo em bandos, se debulhando pelas calçadas e gramados, perfumando as penumbras dos dias e fazendo arregalar os olhares: reflexos de corações que se abrem em inesperadas orações.
Chove...


Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 07 de abril de 2009.