quinta-feira, 24 de setembro de 2009

MANIA DE FAZER PERGUNTAS

Dia de domingo, começo de tarde, calor; um mau gosto em tudo, nada servia. Assim, quando a música começou estridente, do outro lado da rua, atrás dos muros da Vila Vicentina, o jeito foi tomar um banho caprichado, botar um perfume e pegar um trocado emprestado com a Mamãe – o salário estava atrasado – e me juntar ao barulho.
Não foi fácil me colocar na porta de saída, abrir o portão, dar cinco passos até a calçada em frente, caminhar mais um pouco, entrar pela portaria pagando cinco reais e levar um carimbo fosforescente no pulso; mas entrei. Havia dito a minha mãe que estava constrangida de ir sozinha, mas ela me animou: “as pessoas são todas simples”. Assim, mesmo em dúvida, fui e logo no começo encontrei pessoas sorridentes me dando boa noite; já estava bom.
Uma vez dentro dos muros do asilo, fui seguindo o primeiro corredor na direção da música e cumprimentando as pessoas com necessidades especiais sentadas às portas de seus cubículos, ao longo do piso vermelho, muito limpo. Limpas também estavam as mesas e cadeiras brancas que salpicavam, como neve, o espaço ao ar livre. O lugar da dança não poderia ser mais simples: um cimentado debaixo de centenário pé de manga.
Um dos pavilhões é composto por casinhas iguais, uma em seguida à outra; o pavilhão da frente, que dá para a rua de entrada, é formado de casas de modelos diferentes. A um canto do pátio onde aconteceria a festa, as barraquinhas de bebidas e as de caldo de mandioca estavam juntas; o palco tinha sido improvisado na carroceria de um pequeno caminhão, mas o som já balançava os galhos empencados de flores. Era começo de final de inverno e o calor já se preparava para entrar em cena.
Quando cheguei, a música era eletrônica, mas depois dois cantores subiram à carroceria e as pessoas começaram a se aproximar. As mesas foram sendo puxadas daqui e dali, casais começaram a circular de mãos dadas, rapazes carregando cerveja; e então, a festa se fez.
Da mesa que escolhi, nem longe nem perto da pista, pude observar os casais dançando: a maioria era de meia-idade, muitos homens de cabelos brancos, muitas senhoras já rechonchudas, “dois prá lá, dois prá cá”. Algumas músicas depois, algumas curiosidades, duas idas às barraquinhas para comprar guaraná e comecei a sentir frio; a razão era o vestido muito leve, de costas nuas; e a quietude. Se estivesse dançando, a coisa poderia estar diferente, mas não aconteceu. Por que? Nem me perco em pensamentos para descobrir; ainda era cedo, me respondi quando pensei em ir embora; a música não me deixaria dormir, de qualquer jeito e a irritação iria aumentar: “não, é melhor ficar mais um pouco”.
Me levantei e fui em direção à dupla de cantores, do outro lado do pé de manga. O calçamento grosseiro e o tamanco de solado redondo me fazia cambalear como se fosse uma canoa ao mar, então, parei à meia distância, em pé, ao lado de bancos de cimento; um estava cheio de homens sentados no encosto.
Um deles me perguntou se eu dançava. Respondi que “arranhava de vez em quando”, coisa mais tola e lá fui eu enlaçada por um braço moreno e sentindo o hálito da latinha de cerveja que ficou no banco. A cerveja estava quente, o moço disse; “o guaraná, não”; o assunto da hora.
De alguma forma, deixei espaço para o moço confessar sua vida depois que perguntou meu nome e respondi o verdadeiro. Falou que era solteiro com quase 40 anos; e depois de duas danças eu já tinha entendido que a culpa era das mulheres. Eu não estava muito inspirada, talvez resto da irritação de mais cedo, e estava com preguiça de raciocinar qualquer coisa mais criativa. Respondi apenas: “você é carinhoso? As mulheres gostam de carinho...” Mais tarde pensei que eu já estava bem crescidinha para andar por aí generalizando minhas concepções: o mundo já não é o mesmo de quando era adolescente.
Por falar em adolescência, assim que vi que a dança não evoluía para o lado que eu assinalava, pedi para parar com a desculpa de ir ao banheiro, agradeci muito e etc. e tal. Ai! Que original eu sou! Bem, mas foi aí que, voltando do banheiro, parei no limite entre a penumbra e as luzes do palco, observando a festa. Foi quando um conhecido de infância, mais de meus irmãos, vizinho de outros tempos, falou comigo de longe. Ah! Cabelos brancos, interessante, pensei antes de reconhecer o rosto conhecido.
Pois é! O rapaz se acercou como se jamais tivéssemos nos afastado e a conversa pareceu começar de onde tinha terminado ontem. No entanto, algumas décadas separavam o último encontro, casual geralmente, na passagem da rua em comum, e o daquele domingo à noite.
Naturalmente, começamos a falar de tudo: da família crescida, do trabalho que finda, a aposentadoria que chega breve, dos sonhos ainda a realizar. Tudo a ver, tudo em comum, parecíamos cópia um do outro; e até conseguimos dançar depois que tirei os tamancos com sola de canoa – sugestão do homem de cabelos brancos com o qual convivi com os cabelos escuros. Juro que me lembrei dele, como antigamente, somente nos primeiros momentos. Depois das confidências nossos mundos pareciam ter se fundido e começamos a nos divertir de verdade.
Ah, “amenidades” foi o assunto que ele pos no e-mail de algumas horas depois, bem, mas deixe-me contar a melhor coisa.
Sei que depois de já estar dançando – desenvoltamente – há algumas horas de pé no chão, já sabíamos tudo o que cada um foi e o que ainda queria ser: muitas coincidências. Eu ria amparada pelo braço ao meu redor e confesso, não contei a ninguém o tamanho daquele gosto para mim; mesmo descobrindo mais tarde, que ele ainda, notem, que ele, ainda, estava casado.
Então, o assunto passou para relacionamentos. Ele perguntou por que eu estava sozinha; comecei a contar a minha história rapidamente porque ela já estava me cansando; o que não evitou que meus olhos se inchassem de lágrimas e eu começasse a fungar muito perto do ouvido do rapaz, até que ele mesmo pediu para eu não chorar. Me recusei a chorar, como já vinha me policiando há algum tempo e, droga, não faria isso, de novo, naquele lugar, e com aquela pessoa.
Acho que esse vexame dei nem por sofrer tanto, mais não, mas pelo que ele me disse quando contei parte do desfecho da minha linda história de amor. Fui sincera contando que amava, com loucura, o homem com quem vivia, mas que não pude mais continuar porque tinha vergonha do que eu tinha me tornado ao lado dele. Foi forte dizer isso, talvez a confiança que senti nele me provocou essa confissão; e mais ainda quando ele me disse: “Caramba! Você gostava mesmo desse homem! E sabe, eu iria ao fim do mundo por uma mulher que me amasse tanto assim!” Foi aqui que as lágrimas abriram caminho por meus olhos até razoavelmente conformados: “que desperdício, né não?” só mesmo fazendo piada para conseguir driblar a emoção.
O momento de confissões não tinha acabado porque, para superar o que sentia, e o que concordo plenamente ser totalmente inadequado, resolvi virar o foco. Perguntei: “Por que vocês homens têm essa mania de deixar as mulheres que os ajudaram a crescer, com as quais construíram histórias fantásticas, que ainda são relativamente atraentes, por outras, geralmente muito mais jovens?”
Ele não pediu que eu repetisse a pergunta: “Você foi sincera comigo e vou ser sincero com você: a maioria dos homens que deixam a esposa por outra mulher pode ser porque teve uma oportunidade, uma chance de viver algo novo; mas se isso não acontecer, sinceramente, está bom de qualquer jeito, com outra mulher é bom, com a nossa mulher também é bom...” Foi surpresa: não foi um discurso machista de alguém que quisesse se mostrar, não foi exibicionismo, apenas a mais cristalina prova de que um relacionamento é algo muito frágil, um barco ao sabor dos ventos.
Ele ainda não havia terminado. Esperou que eu engolisse aquela resposta, que a digerisse e aceitasse: “Outra coisa: considero o meu casamento um bom casamento, mas, se minha mulher me dissesse agora, nesse momento, que eu deveria ir embora, assim como você fez com seu companheiro, não esperaria um segundo. Sairia porta afora, correndo!”
Pois é, talvez seja a rotina, essa eterna desculpa para o casamento que se transformou em “amenidades”, que leva os casais que viverem juntos por mais de vinte, trinta anos, a saírem deixando rastros por toda parte; ou pode ser outra "costumeira" desculpa: incompatibilidade de gêneros. Nossa, essa é mesmo eterna.
Eu acredito ser os sonhos: os diferentes que se desenham ao longo dos anos: ninguém sonha o mesmo sonho junto para sempre: há uma variação que pode ir se alargando pelos anos a fio e um dia você se descobre longe, tão longe do outro, que não dá nem para ouvir o eco. Dá medo isso: essa fatalidade, essa inexorabilidade, essa insustentabilidade do amor, como se ele não fosse suficiente.
Talvez não seja... e talvez por isso a minha resposta ao e-mail do meu mais recente amigo tenha sido: “que bom que a viagem de volta para sua família foi boa...” dava prá ser diferente? Não mesmo, por melhor que tenha sido a noite, por mais “ameno” tenha sido o diálogo, por mais sinceras tenham sido as confissões, não quis "dar pano prá manga". É que depois fiquei com medo de estar parecendo uma “oportunidade”.
Além do que, se aprende sem parar; e a lição dessa noite é que ando com uma mania terrível de fazer perguntas, preciso tomar cuidado: as respostas podem ser muito comprometedoras.

Por
Magda R M de Castro
Abaeté, Minas Gerais, 24 de setembro de 2009.