sexta-feira, 19 de março de 2010

O COMEÇO NA PARTIDA

Quando finalmente peguei a estrada levava duas tralhas: a de mim, com tantos sentimentos contraditórios, e a dos apetrechos empilhados na carroceria da camionete emprestada.
Eu vinha pensando insistentemente sobre aquilo havia anos no inconsciente, acho, e já havia alguns meses sonhava, acordada, com essa possibilidade. A vontade era muita, tinha esperanças demais naquela atitude como se fosse virar o globo terrestre ao contrário.
Claro que isso é uma forma grotesca de dizer a revolução, a guerra mesmo que vinha travando comigo. Me sentia a pior das criaturas da terra: desamada até o osso, incompetente como esposa, mãe com desastrosos resultados, profissional medíocre, pessoa da qual nada nem ninguém sentia falta. Nem a cachorrona negra espalhada no chão da varanda sentia minha falta.
Claro, e nem eu mesma me suportava. E não posso dizer de como formei a decisão de ir morar no interior: a vontade era ir direto para uma montanha, e olha que imaginei ser esse um pensamento muito original. Vi que todo mundo quer ir para uma montanha depois que comecei a ler mais livros de psicologia, logo, o que sentia não era nada de novo, o mundo inteiro queria também; e descobrir isso não aliviou a minha pequenez.
Então, depois de decidir sozinha, e depois de comunicar o fato aos meus filhos e à "babá", a caçula pediu a camionete emprestada ao pai e junto com o namorado me deu carona para o interior.
Essa ida, e para a casa de onde eu iria, não foi muito discutida ou avisada: decidi quieta, e quieta arrumei as malas, como se tivesse fugindo. O fato é que queria tanto tentar que ficar bradando isso a todos os ventos poderia “jogar areia” na proposta do que achava ser a minha salvação.
Então, depois de batalhas internas que eu talvez explique melhor mais à frente, e poucas batalhas das pessoas ao redor que achavam que eu estava até fazendo uma tentativa louvável, partimos numa manhã tal e qual qualquer outra. Não para mim, lógico, porque não se abandona uma casa, com duas filhas ainda jovens, uma amiga companheira cuidadosa e gentil, uma cachorra, amigos, as ruas conhecidas, a zona de conforto, assim, fácil. Mas como disse, por enquanto quero falar do começo da outra história e não do fim dessa.
Bem, como falei antes, as tralhas iam amontoadas na carroceria da camionete. Como iria para ficar, inicialmente, na casa de minha mãe, já sabia o que lá não tinha. Então, escolhi quatro cadeiras brancas, de plástico, para compor uma mesa de baralho na garagem, bem rente à porta da cozinha. Ela adora jogar Buraco e eu não tinha a intenção de fugir disso não. A mesa propriamente eu sabia que Mamãe tinha, portanto, não levaria outra. Mesmo porque já estava levando duas: uma para ler e escrever e outra para o computador. O computador estava embalado com roupas e toalhas para evitar qualquer pancada; nele iam arquivos das mais diferentes espécies como meus preciosos textos, poesias e começos de muitas histórias. Adoro começar histórias, não sei muito, entretanto, terminá-las; e isso era outra meta que queria alcançar em outras paragens.
Bem, junto às cadeiras, e havia ainda outra giratória para o futuro quarto/sala de estudo/trabalho para usar na lida de minhas novas obrigações – é que, até aquele momento, iria trabalhar numa faculdade – ia também outras quinquilharias. Por exemplo, misturadas às cadeiras e ao computador iam algumas caixas de livros. Essas foram cuidadosamente preparadas com livros arrecadados de amigos, em casa, e algumas dezenas de livros escolares das crianças que juntei por muitos anos, todos para doar para a biblioteca de outra cidade, foi onde nasci mesmo, a que consta de meus documentos. Então, tinha caixas marcadas “Fulana”, meu nome, e caixas marcadas “Cedro do Abaeté”. Umas dez, acho. Eu realmente tinha intenções muito boas com aquele recomeço. Uma aventura, me disse muitas vezes: tão boa essa idéia!
Então, junto às mesas, às cadeiras, ao computador e às caixas com os preciosos livros ia também uma lixeira seminova, uma gracinha, furadinha, para os papéis resíduos de minhas atividades porque agora arranjei a mania de não jogar o menor pedaço de papel no lixo. Vou juntando onde posso: em sacolas, caixas, enrolados em jornal até ter a oportunidade de doar ou vender. E cama e colchão. A cama despariei porque eram duas iguais, as de toda a adolescência de meus amados filhos. Dormiam os dois no quarto da frente, o das paredes mais altas, brancas, frescas que só. É um quarto interno com janelas dando para um espaço pequeno na sala, uma saleta de música como chamamos porque ali se amontoam violino, violões, potente caixa de som e o piano antigo, já comprado de segunda mão para a filha mais velha que foi passando, passando e agora quem usa é a mais nova. Ou melhor, usava. Essa optou por comprar um teclado eletrônico que pode levar daqui prá li quando descobriu que o piano não daria mais para afinar. A utilidade dele hoje é aparar meia dúzia de fotos de família que, aliás, já estão precisando trocar porque as carinhas que estão ali não são mais as atuais. Essas já podem ir para o “álbum de família”.
Falando essas coisas vejo que minha família é igual a tantas outras; me pergunto: como é que vivemos uma vida totalmente igual a todo mundo e ainda acreditamos sermos tão originais e especiais? Que paradoxo esse de sermos tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais?
Mas voltemos à camionete. Junto às mesas, cadeiras, computador, cama e lixiera ia um colchão, usado, com pequenos estragos, mas como a ordem era economizar até no ar da respiração, afinal em um momento de transição todo cuidado é pouco, o vesti com uma daquelas capas de malha fina com zíper que se compra em lojas de um e noventa e nove então estava até razoável; daria conta do recado que se esperava dele. E, malas, muitas malas; levando também e principalmente, ilusões. É que juntei parte das roupas da cidade e parte das roupas de roça. Faço isso sempre: um dia voltarei para o alto da serra onde nasci, então, vou fazendo pequenas coisas para "criar um clima" me digo rindo por dentro. Quero dizer, guardo vidros com tampa para pimentas, biscoitos; caixas de plástico dessas de sorvete, guardo para, quem sabe, mantimentos ou restos do almoço para o jantar, copos de vidro, muitos de todo tipo, um ferro de brasa, um minúsculo lampião, um castiçal quebrado. Coisas que não servem tanto para a cidade mas para uma casinha na roça enfeita e são úteis que só! Junto roupas de cama, agasalhos para a família inteira, talheres, pratos, jogos de xícara, gamelas, panelas, enfeites, quadros, livros e discos: especialmente guardados para a fazenda do meu sonho. Mas a maioria disso ainda está em Brasília; não daria para levar tudo nessa viagem além do que não existe casa naquela serra, por enquanto.
Então, nessas malas iam roupas de todo tipo, até umas que meu filho mandou doar, dessas tirei umas duas camisas de manga comprida que usaria um dia para cuidar de meu jardim, bem, todos sabem onde. Claro que não subi muito a montanha, mas as camisas usei para dar um trato no quintal da Mamãe... conto isso depois.
Em meio às muitas malas de roupas, e não sei como a camionete coube tudo isso, ainda ia um criado. Esse era de um jogo que ganhei da nora, era da mãe dela e não cabia no apartamento onde morava, então, de um jogo de cama com dois criados deles levei um enquanto o resto do conjunto está enfiado numa lateral do sótão da casa de Brasília esperando a hora de se mudar... Esse criado foi na frente porque poderia ser útil mais imediatamente, e, de fato, ficou servindo como apoio para uma fotografia de família inteira que, por sua vez, foi consolo para muitos momentos tristérrimos, uma caixa de papel com desenhos de flores cor de rosa e fitinha para as bijuterias, também escolhidas só as ideais para se usar no interior, e uma latinha também florida em azul para pequenas coisas como um brinco quebrado que vou consertar amanhã, aquele tipo de amanhã que nunca chega, um alfinete, um coração de crochê para fincar agulhas. Na pequena gaveta coloquei, quase com ternura, um pacote de cartas e cartões antigos, para as horas da saudade e comprovantes de minha história, um monte de CDs embrulhados com papéis coloridos, arte da caçula que passou dias gravando as minhas músicas, um pote de ungüento que a filha morena me emprestou para aliviar o pé inchado, cadarços – também guardo todos os cordões que encontro, até em alças de sacolas –, o remédio contra a hipertensão, um pequeno terço branco e coisas outras que não me lembro agora. Uma pequena prateleira, na parte de baixo, serviu para organizar os sapatos limpos de uso diário.
Os sapatos mais frágeis foram metidos em sacolas de pano; e os de usar no mato, mais tarde os acondicionei numa sapateira de plástico atrás da porta do banheiro externo. Para a cidade, levei sapatos para trabalhar, mas acabei usando minhas sapatilhas até ficarem imprestáveis tanto andei lá. O que também conto depois. Sapatos de festa não levei, exceção apenas de uma sandália de tirinhas finas combinando com bolsa pequena para uma eventualidade. As roupas também escolhi pensando no trabalho e nas fazendas: calças compridas confortáveis, blusas tipo camisa, saias gostosas, blusinhas macias, bermudas. Vestido de festa só um preto, também para evento ímpar. Casacos de frio levei muitos, inclusive porque juntei seminovos com alguns que vinha guardando, ano a ano, muito antigos, para o caso de ter a chance de dormir na serra. Lá em cima é bem fresco tanto que ainda tenho mais deles enfiados em sacos plásticos no armário de Brasília; e isso até me amola porque pode ter alguém precisando.
Por isso é que levei também roupas para doar; muitas. Mamãe mora perto da Vila Vicentina, um lugar que abriga pessoas deficientes que a comunidade sustenta ou pessoas idosas que preferem ter um canto com alguns cuidados e podem pagar por isso. Quando criança, conheci pessoas lindas lá. Gostava de ficar conversando com as senhoras de cabelos brancos: elas recostadas em suas cadeiras com almofadas de fuchicos ou em camas cheias de "dorminhocas"; eu costumava ficar encarrapitada nos beirais da parede e me agarrando às janelas.
Também levei pastas, papéis de rascunho, fotografias pequenas de todos os meu amores, os CDs preferidos, uma caixa com tampa pintada pela minha filha mais nova quando ainda criança como presente do dia das Mães cheia de sementes de ipê que ganhei na Conferência pelo Meio Ambiente que participei em Belo Horizonte, em 2008, uma minúscula pirâmide de pedra-sabão presente de um cliente do antigo emprego no banco, um elefantinho preto com enfeites dourados e rabo quebrado. Coisas de lembranças daqui e dali, de um e de outro.
Algumas pastas levavam manuscritos com idéias para os livros que quero terminar, documentos e diplomas porque talvez precisasse comprovar o tempo trabalhado para a aposentadoria que chegaria em breve. Os livros foram escolhidos quase desesperadamente: tive que deixar a maioria para trás porque sabia que não teria como guardá-los onde ia; mas levei, em caixas especiais, os que venho coletando com lições de como me tornar escritora. Também levei já os didáticos que poderia precisar para as disciplinas contratadas e que, com surpresa, descobri que seriam as únicas fontes de informações que teria por muito tempo: mais uma vez, salva pelos livros. De literatura, levei poucos porque a filha caçula também é leitora viciada tanto quanto eu, mas consegui separar alguns e levar para minha mãe. No fundo, eu tinha a esperança de poder ler meia dúzia estirada na rede, à tarde, vendo o vento balançar folhas...
De modo que, quando abri as malas e sacolas no pequeno quarto nu, descobri que o armário usado antigamente por um irmão que hoje, adulto e casado, não usa mais, não teria espaço para guardar aquilo tudo. Ainda mais que numa segunda espiada descobri que ele estava se desmanchando em traças. Isso conto depois também.
Assim foi que numa certa manhã de julho, uma camionete carregada de coisas e gente, minha filha caçula, o namorado e eu, muita esperança, um coração especialmente pequeno naquela hora, choramingante e excitado, rumou para o interior de Minas Gerais. Foi uma travessia, um ponto final de uma margem de significado intenso; e ponto de começo na outra margem: um lugar conhecidamente desconhecido que não sabia, ainda, que novo personagem chegava; personagem discreto que queria apenas um pouco de silêncio para se aprender de novo gente.
Novo personagem que faria parte daquelas paisagens tranqüilas dali em diante, que vinha com o coração aberto, ferido, que vinha apenas por si: do mesmo jeito de quando um dia dali partiu. Uma pessoa que decidira fazer o que tinha vontade, finalmente, apenas porque era algo que acreditava ser importante fazer para lustrar o que tinha por dentro o bastante para mostrar isso por fora.
Era um eu quase não eu que atravessava o Brasil para buscar o que acreditava ter perdido: o próprio valor, a própria personalidade, a própria vida. Fui com o propósito primeiro, portanto, de me encontrar. Era só isso que eu queria, um tempo para me conhecer, descobrir em quem havia me tornado nessa longa jornada até aqui.
“Voltar para casa” poderia me dizer isso e dar mais certezas para o futuro: era nisso que meu ser inteiro ruminava enquanto as paisagens se apresentavam rápidas à medida que a camionete vencia os quilômetros da estrada.

Por
Magda R M de Castro
Brasília – DF, 19 de março de 2010.