domingo, 31 de agosto de 2008

O CASAMENTO

Quando cheguei em frente à Matriz, a noiva esperava sozinha do lado de fora. Estava de pé, no último degrau e a cauda do vestido bordado pendia graciosamente pela escada abaixo. O cabelo preso, pena porque era deslumbrante cascata negra, segurava uma tiara de pérolas.
Manobrei o carro para minha mãe descer e fui procurar estacionamento. Quando voltei, já se ouvia a marcha nupcial e tateei pela calçada lateral para entrar discretamente. Encontrei Mamãe e a fui puxando para perto do altar, para ver melhor. Eu, meio cega, não queria perder nada. Queria ver e participar de tudo. Para compensar.
Compensar o grande esforço que fiz para estar ali naquela noite. A vida atribulada de cidade com família, casa, emprego não dava tréguas, então, tive que fazer muitas combinações para poder estar ali, naquele sábado, às 21 horas. Também dirigi um automóvel por 600 quilômetros pouco antes.
Mas, principalmente, estava emocionada. Quase histérica. Depois de 25 anos iria ver pessoas que fizeram parte importante da minha vida: tinha até rezado para que todos estivessem lá. Queria rever rostos queridos e sentir de novo alguns abraços em particular para ter certeza, afinal, de que tudo aquilo tinha existido de verdade. Ou, desejo meio inconsciente esse, para trazer de volta um tempo de adolescente ansiosa pelo futuro e cheia de sonhos quando namorava, por sinal, o pai da noiva.
Eu era uma garota magricela ao extremo, sardenta, nariz aleijado e cabelos desgrenhados. Mas tinha os olhos sinceros e cheios de ilusão. Amava aquele homem de cabelos sempre bem aparados, sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Ele era o calor da minha vida: me lembro ser só metade quando comecei a namorar com ele. Antes dele sentia até dor de tanta solidão. Nas vezes que brigamos, chorei muito, o que me lembra também de uma tia querida me consolando. O carinho por ele era tão verdadeiro que nunca aceitei outras propostas de namoro enquanto vivi naquela cidade.
Mas éramos pessoas simples, e eu, tão simples que quase boba queria que ele gostasse de mim da mesma forma. Pode até ser que isso assim fosse, mas me sentia muito mal quando ele me dizia o que vestir, o que falar, como me comportar. Para confessar a verdade, eu era mesmo meio escandalosa: quando queria rir, ria, me espalhava, me entregava à alegria. Eu não me importava com a vida alheia e achava estranho que pudesse haver alguém se preocupando com o que eu era.
Esse, pequeno, fato me fez pensar um pouquinho, e juntando outras coisas, foi que, mesmo apaixonada, poucos meses depois de colocar a aliança de compromisso, terminei tudo. Ele não acreditou até o último minuto que eu poderia ir embora. Mas fui. E tudo mudou para sempre. Ainda lhe escrevi duas ou três cartas, mas ele nunca as respondeu e muitos anos se passaram. O vi certa vez, mas não a todos os seus parentes, irmãos e pais.
Por isso estava ansiosa. Eu amava muito essas pessoas desde o tempo de namoro e noivado, com elas me sentia em casa. Falavam comigo com carinho, fazendo me sentir bem-vinda. A casa era deliciosa, sempre limpa e cheia de guloseimas: ali vivam muitas moças, cada qual mais bonita e prendada que a outra. Elas eram modelos para mim e me faziam sentir fazer parte.
Tinha medo de que as lembranças me pregassem uma peça misturando as reais e as imaginadas por isso aquele evento era tão importante. Cheia de saudade, queria vê-los todos outra vez, me certificar de que era lembrança genuína, falar com eles antes que fosse tarde e agora, graças aos milagres da vida, pode-se considerar assim, eu tinha a chance de atender a esse desejo.
Em pleno vigor dos meus quarenta e poucos anos, vestida de prata, estava, então, chegando para assistir ao casamento de uma moça que poderia ser minha filha. Gloriosa em seu vestido champagne representava a imagem do que eu queria ter vivido um dia. E o homem que poderia ter sido meu companheiro estava agora circulando nervoso pela nave, sem saber se ria ou se chorava pela emoção de casar a filha mais velha. Me viu, piscou para mim e as bochechas luzidias se juntaram quase numa careta na linda cara de bolacha e por um átimo de segundo vi um olhar antigo, razão da alfinetada que senti no fígado. Sim, estava quase desconfortável, meio sem graça, preocupada com a possibilidade de ele vir falar comigo naquele momento. Mas, por alívio, isso só aconteceu depois do “...os declaro marido e mulher.” Tive, portanto, tempo de preparar meu coração.
Tinha uma razão por estar naquele casamento: o noivo era meu primo. Isso quer dizer que não convivia, há muitos anos, com a família do meu ex-noivo, mas ao contrário, convivia estreitamente com a família do atual noivo, de quem partiu o convite para mim.
Isso mostra as peças que a vida pode pregar na gente: estavam se casando ali, as duas partes que poderiam ter se casado há mais de vinte anos e não conseguiram. E eu ali, assistindo, dava risinhos nervosos ao imaginar que aquela noiva estava desempenhando um papel que me coube um dia e que não tive coragem de assumir. Era a pura realidade, mas essa não sempre é piedosa e parecia esfregar na minha cara aquilo tudo. Não conseguia parar de pensar que tinha sido covardia minha, que abandonei o barco. Pode ser.
De qualquer forma, tudo estava feito: como uma mão invisível fui conduzida por caminhos nunca imaginados e dos quais nunca mais consegui voltar. O que me cabia, portanto, era falar com cada um e matar as saudades. E isso fiz. Tantos primos e primas, tios queridos, reavivando a imagem de pessoas que nunca esqueci. Ah! Foi um banho de carinho: abraços e abraços aquecendo o coração, beijos, palavras de amor. Saciei-me.
A festa de recepção aos convidados foi oferecida no salão de um prédio de apartamentos onde morava uma das tias da noiva. O menu era churrasco, cerveja gelada e bolo. Tudo no capricho, ainda mais que tanto aquelas mulheres quanto aqueles homens, incluindo o pai da noiva, cozinhavam divinamente. Também me fartei de comida. Mas não mais que de carinho.
Tantos parentes juntos, dos dois lados da família, dava gosto ver. Eu flutuava entre as mesas, falando com um e outro, me surpreendendo com as novidades, com as histórias de cada um. O engraçado é que quando a noiva jogou o buquê, tomei o cuidado de ficar bem longe. Acreditei que o tempo disso tinha passado para mim; e o que foi bom é que pensar assim não me incomodou nem um pouco.
Estava acompanhada de meu filho mais velho. Viajamos juntos, curtindo o longo passeio. Para a festa, minha mãe e dois irmãos se juntaram a nós e estávamos ali, todos misturados no salão parecendo um balaio de gatos. É que mesmo sendo uma festa só para os mais chegados, esses mais chegados eram muitos porque as famílias mineiras geralmente são grandes. E essas duas que se uniam agora, finalmente, eram típicas: fartura de tudo, gente, carinho, alegria, comida e bebida. Festança.
Depois de checar um a um, vi que faltava uma das moças, tia da agora recém-casada. Um ponto triste em tanta alegria. Mesmo assim, tinha que aproveitar a chance e, parecendo um papagaio, circulando entre as mesas, não ficava num lugar por muito tempo. Queria saber de todo mundo e, primeiro soube do meu ex-noivo: casado de novo depois de se separar da primeira mulher, mãe da noiva, tentava carregar as bandejas de comida para servir às mesas ao mesmo tempo em que vigiava dois filhos pequenos, gêmeos, lindos bebês rechonchudos. Não caminhavam ainda e iam de um braço a outro, ora do avô ora da mãe, chamando, com adoração, pelo pai. Esse depois me apresentou à esposa. Mulher linda, bem vestida e gentil. Ele estava orgulhoso. Quando me perguntou o que achava dela, respondi: “todo homem tem a mulher que merece.” Politicamente correta, queria dizer que se ela era tão fantástica, certamente ele fez por merecer. Do fundo do meu coração, desejava que ele fosse feliz.
Igualmente, muitos amigos ali me contaram partes de suas vidas. Alguns, envelheceram, cabelos cor da prata, pensamentos indecisos, passos claudicantes. O avô da noiva, quase sogro meu, apesar de tantos anos, estava lúcido e ainda fazendo as brincadeiras que alegravam todo mundo. Um olhar direto, sem desculpas ou receios, era como ele olhava pra gente. Estava sereno, parecendo contente, e ainda brincava como antes.
A esposa de tantos anos se dividia entre a alegria pelo casamento da neta e a contrariedade por uma discussão entre as filhas, acontecida recentemente. A encontrei à mesa da cozinha do apartamento, para onde fui em busca de água. Me contou, chorosa, partes do fato, então, peguei com carinho as mãos dela e disse que todos se amavam muito, portanto, que ficasse tranqüila que tudo se resolveria logo. A mulher à minha frente, ainda de rosto liso e pele rosada, apesar do cabelo totalmente branco, era apenas miragem de antigamente. Meu coração doeu, a abracei com cuidado. Ela começou a recitar uma poesia que falava dos desencontros nas famílias. De própria autoria, sabia de cor longos versos que recitava rapidamente como tentando substituir, pela velocidade das palavras, os passos que as pernas cansadas já não podiam dar. Tive a impressão de que ela queria, com os versos duros e diretos, compensar a sua ausência na solução dos conflitos ao seu redor.
Logo a seguir, uma das filhas a levou para descansar. Voltei ao salão. Foi por pouco tempo que fiquei sentada. Descobri logo um lindo homem de cabelos longos se balançando feito espantalho num paletó largo. Os cabelos carentes de um trato tentavam esconder um rosto moreno, de covinha no queixo. O riso, quase deboche, puxava o rosto para um lado e o olhar acompanhava dando ao conjunto a impressão de estar criticando, e desprezando, o mundo todo. Valtinho. Sinceramente, não sei mais se V ou com W, mas, definitivamente, não era “...inho” um varapau daqueles. Mas era assim conhecido quando criança. Não pude deixar de me lembrar do Daniel Day-Lewis no “O último dos moicanos” quando o vi pouco à frente. Quando me aproximei, fui recebida com muito carinho e fomos tropeçando nas histórias um do outro, querendo ouvir e contar ao mesmo tempo. Ele contou do casamento, da separação, da nova união que lhe daria o primeiro filho agora. Um raio passou pelas minhas contas automáticas e fiz uma avaliação das idades de meus filhos. Pensei que ele começava tarde a missão de ser pai, mesmo sendo bem mais jovem que eu. O que, na verdade, não tinha a menor importância. Foi me puxando pela mão, como namorados, que me levou à atual esposa. Enquanto nos falávamos as imagens de um menino de calças curtas pulando muros se misturava ao homem à minha frente, falando das agruras do casamento, da carreira no jornalismo, de amor e da alegria de ter filhos, coisas que sempre quis. Depois, passou a falar de mim, de meu sucesso, que eu tinha ido embora e tinha construído a minha vida. E me disse, com ares de segredo, que o irmão jamais tinha se esquecido, o que também não podia influenciar nada na altura em que ia a vida de cada um.
Magia, doce magia. A festa parecia um acerto de contas, de todos nós, tão unidos e tão puros antigamente. Agora éramos adultos cada qual com montanhas de problemas, e lembrar o que passamos dava a perfeita forma dos resultados em que nossas decisões se transformaram.
A alegria continuava pelo salão agora misturado à fumaça das brasas do churrasco. Instintivamente, passei a seguir uma cabeça branca que passava rapidamente entre as pessoas, servindo cerveja. Era um olhar sereno, podia quase apalpar meu passado dali, por sentir que tudo estava na mais perfeita ordem e nada poderia ter se dado diferente do que se deu. Ainda como mágica, a visão dessa cabeça branca trouxe outra imagem à minha alma. Não uma de passado, dispersa nas voltas do tempo, mas uma quase palpável que faz a alegria de minha vida hoje. Lembrando da cabeça branca, não pude evitar pensar em dois pares de braços fortes que me abraçam agora, como presente do meu presente.
Talvez pela overdose de emoções, talvez pela saudade, ou pela constatação da vida maravilhosa que tinha, me descobri ouvindo vozes infantis – “Mamãe!” – e mais, que nunca, fiquei feliz por estar ali, por tocar de leve, por algumas horas, a vida que tive um dia, a menina que fui um dia. Vi que tinha conseguido provar que todos aqueles personagens existiram e que podia agora, sem ressentimentos ou mágoas ou saudade até, guardar, para sempre, aquelas imagens. Todas me acompanharão, todas serão sempre caras.
Pouco a pouco, o sonho do encontro, tão ansiado, foi se dissipando e tudo se tornou realidade. Naquele momento, era aquela que estava valendo. Só que, com esse descortinar, vi que muitas pessoas daquela festa não faziam mais parte do meu dia-a-dia: pertenciam a um mundo do qual me afastei há muitos anos, um mundo que não era mais o meu e que estava habitado por outros agora. E foi muito feliz que me lembrei de que não poderia ir dormir muito tarde porque teria que me levantar cedo no dia seguinte. Tinha prometido ao povo do meu agora mundo que sairia cedo, com tempo de chegar em casa antes do anoitecer.
Ainda falei com muitos, não me despedi de todos. De um e outro que estava mais perto da saída peguei um cartão ou deixei meu telefone. Tinha a sensação de que ninguém procuraria ninguém, tão claro estava o significado de cada um para o outro agora. Sentia que, com tanta coisa maravilhosa esperando por mim, não haveria nada que justificasse procurar de novo aquelas pessoas. Se o acaso ou a cidade onde vivemos um dia nos brindasse com novo encontro poderíamos nos falar e apreciar isso. Mas só.
Saí com minha mãe, filho e irmãos, pensando que, afinal, tinha cumprido aquela missão: provei que tudo existiu mesmo. Mas também compreendi que aquelas pessoas não faziam mais parte de minha vida porque escolhi assim. E vendo o que vivi, como num filme de trás para frente, me assisto vivendo com o coração inteiro. Alegre coração, cheio de fé no futuro, certa de ter o melhor junto a quem amo e que está ao meu lado todo dia. Mais uma vez me descubro – magia – feliz, tranqüila; certa de que, mesmo se fosse possível, não trocaria os caminhos que percorro agora por aqueles que poderia ter percorrido. Sinto que o que sou hoje dependeu de mim, de minhas decisões e de alguns momentos encantados que só podem ser explicados como as mãos de Deus me guiando. Creio que se me quedar de joelhos até o fim da minha vida, não será suficiente para agradecer a fortuna de ter escolhido a estrada que, afinal, me trouxe hoje aos tesouros que conquistei.

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 11 de setembro de 1998.

CASINHA DE ESCOLA

Fim de verão, manhãs douradas e úmidas depois de chuvas na noite: clima perfeito para um feriado. Nesses dias, é bom rever a terra natal; é puro prazer vagar o olhar pelos morros e árvores de folhas brilhantes pelos campos da juventude.

Estou no alto de uma colina de onde vejo a casa, os currais, arvores, a estrada que percorri tantas vezes que nem conto e sempre com muita alegria. A relva, aos meus pés, vibra cheia de vida. As montanhas, longe, azuis, seguem o céu cor de mar. Esse, tem nuvens de algodão de desenhos inéditos e misteriosos, e nuvens de chuva, cinzentas, que rolam no infinito levadas pelo vento, ora forte, ora suave. Nesse exato momento, o vento é suave e constante tombando levemente o capim alto a meu lado. Sentada numa pequena elevação, arremedo de cupim, observo a natureza ao redor.

As formigas, um bando delas, me atacaram há pouco quando cheguei; arranquei pequeno arbusto e as espantei. O mesmo arbusto serve para espantar também os mosquitos. Penso no que vivi aqui e sinto muita saudade; é onde vivi parte dos melhores momentos quando criança e adolescente.

Com os primos, corri pelos campos em busca de muricis e azedinhas, nadei em açudes morrendo de medo e pulei riachos em cipós, mais apavorada ainda. Andei a cavalo, comi pamonha, tomei leite espumante em copo de lata trepada nos moirões dos currais. Adorava vigiar o engenho cantando puxado pelos bois resfolegantes. A roda de moagem ia espremendo as canas até ficaram brancas e o caldo escorria por um cocho de madeira até cair no enorme tacho e virar borbulhas.

Lembro do fogo em labaredas saindo da boca da fornalha, sempre com alguém vigiando para a criançada não se queimar. Das tachas ferventes subia a espuma verde, cheia de ciscos, retirada, pouco a pouco, com cuidado com enorme colher de pau. A espuma ia sendo apurada e a garapa engrossava até que virava melado escuro e brilhante. Esse a gente comia com queijo branco, delícia. Depois, num ponto mais apertado, o melado ia para formas de madeira: as rapaduras; a Tia as embalava com cuidado para durar até o ano seguinte. Lembro de um jirau, preto de fumaça e picumã cheio de rapaduras em folhas de bananeira.

Daqui do alto, diviso a casa branca à distância, espanto os mosquitos e me deixo enveredar pelas lembranças preciosas. Lembranças desse lugar que se misturam com as de outro lugar talvez porque os hábitos eram os mesmos, as tradições eram seguidas da mesma forma aqui ou ali. O carinho, curioso, era o mesmo pra todas as crianças, fossem filhos, sobrinhos ou agregados.

Inesquecíveis também os tempos de milho verde. O mesmo tacho de fazer rapadura cozinhava o mingau até ficar amarelo, no ponto de corte, que ia quente para as travessas de louça nos guarda-comidas: não havia geladeira na roça. Dali o mingau era servido em fatias cobertas de canela; do que não gostava então.

No mesmo tacho eram cozidas as pamonhas. A palha verde ia amarelando aos poucos na água fervente. Quando prontas, as abríamos quentes e por cima, era jogado o creme de leite caseiro. Eu adorava abrir as palhas quase queimando os dedos para encontrar a fatia de queijo derretido no meio da massa doce. Qualquer canto servia para me acomodar e saborear a delícia: capim, cocho, degrau de escada.

Não eram esses os únicos quitutes de que me lembro: bolo de fubá, petas, biscoito frito ou tarecos de polvilho acompanhavam o leite tomado no curral ainda fumegante. Na “volta do dia”, como dizia minha mãe, isso querendo dizer, na hora do almoço, a comida espalhava cheiro pela casa e quintais tirando a gente das goiabeiras, dos pés de manga ou amora, e das brincadeiras. A meninada cercava o fogão à lenha onde panelas pretas abarrotadas se equilibravam em pés pequeninos. A caçarola maior era do arroz pilado, meio marrom, grosso, fumegante e cheiroso. Par perfeito para o feijão vermelho de bagos grandes temperado com toucinho e enfeitado de cebolinhas. As outras panelas, todas em cima da chapa de ferro ofereciam carne de porco, ou de gado, ou de frango. Verdurinha da horta sempre tinha. E farinha, de mandioca ou de milho, indispensável.

Eu comia depressa porque a peteca esperava, ou o riacho, o pique-esconde, a corrida apostada, a queimada. Também adorava catar pedrinhas: acreditava que encontraria a pedra perfeita, redonda ou quadrada; ou surpreendente diamante.

Voltando os olhos à estrada de terra muito vermelha, lembro que gostava de passear por ela, com um graveto, para desenhar árvores e flores na poeira fina. Também gostava de ficar encarapitada nas cercas dos chiqueiros observando os capados mastigando o milho duro. Depois de muita atividade, quando o cansaço batia, os moirões mais altos serviam de ponto para procurar o horizonte distante.

Daqui de onde estou ouço uma rolinha “fogo-pagô”; parece que assisto peça de teatro: montada com lembranças. No mundo real, pouco resta daqueles tempos, tanto hábitos quanto pessoas. Os personagens prediletos eram as crianças com quem brincava e essas cresceram tanto quanto eu, então, não fazem parte do cenário atual. Parecíamos saber disso porque aproveitamos todas as brincadeiras até onde conseguimos.

Enfim, crescemos; virei moça de cidade de coração plantado nas serras e nos horizontes das fazendas que me viram crescer. Depois, seguindo a correnteza, parti para um mundo maior, longe. Me tornei esposa, mãe, empregada com rotinas, compromissos, responsabilidades enquanto que dos tempos de criança e mocinha levava algumas cicatrizes e muita saudade.

Reconheço aqui, com doce emoção que senti saudade durante todos os anos que passei longe. Sempre com pressa, vejo agora, cismando aqui debaixo desse dia luminoso,  fosse pela correria ou pela distância, voltei poucas vezes, entretanto, aqueles momentos me acompanharam onde andei. Não eram dias felizes: eram mágicos, puros, perfeitos.

Sim, mesmo longe, as pessoas que fizeram parte daqueles dias estiveram sempre comigo, mesmo agora, depois de quase trinta anos, as sinto por perto. Tenho saudades, inclusive, da menina magricela de cabelos desgrenhados cheia de alegria. Alegria que ocupava o coração inteiro e iluminava a cara de sarda e a bocarra de dentes falhados. Branquela, excessivamente magra, desajeitada, e feliz: isso era eu.

Ainda agora, sinto vontade de correr gritando a toda altura contra o vento; de pisar a terra fria ou me deitar sob o sol forte. Penso nas formigas... não resisto: tiro os tamancos. Fazendo o braço de travesseiro, me estico no calor e fecho os olhos, cismando. Os abro de novo para observar dois gaviões: voam baixo piando miúdo e rápido. Porque fazem tanto barulho? Não vão espantar a presa? Respondo eu mesma: esse piar é só a comemoração antecipada porque sempre pegam a presa, de qualquer jeito vão pegá-la.

O ar tem perfume: de mato verde, de sumo do capim, do arbusto que arranquei, de urina e esterco. Os cheiros me estimulam a levantar. Pego o tamanco e sigo a estrada para o lado da casinha de escola. Quase posso apalpar o mesmo coração de antigamente enquanto sigo a estrada estreita. Observo desde longe: calada, quieta, fincada no meio do mesmo terreiro, cercado de arame, a mesma casinha.

Chego devagar e dá para ver que o mato toma conta das goiabeiras do quintal. Descubro, surpresa, que agora há uma fileira de eucaliptos gigantes que não fazem parte de minhas lembranças. É, o tempo passou mesmo. O vento nas folhas parece fazê-los murmurar no vazio quebrando o silêncio desmistificando a solidão. Abro a cancela quebrada e entro descalça no cercado pisando a terra macia agora talvez porque não tem sido muito usada ultimamente. Acho pequeno pé de tênis meio enterrado num canto, e também cacos de telha e vidro. Subo a calçada manchada de lodo; outra carreira de formigas, de novo, essas, cabeçudas, atravessa o caminho carregando folhas cujas sombras dançam em ziguezague ao longo do trilho de terra fofa.

Um tomateiro silvestre no meio do capim alto está carregado de frutos vermelhos e verdes; um dos galhos tomba com o peso. Gosto deles espremidos no arroz, pena, não tem como levá-los agora, talvez quando passar de carro, na volta para a cidade. Ainda colho quatro e os acomodo nas palmas da mão: para mostrar às meninas.

Me aproximo das janelas num misto de alegria e apreensão: e se algum riso de criança ainda estiver ecoando nas paredes solitárias? Ou se alguma cobra tiver feito, debaixo do amontoado de carteiras quebradas, um ninho? Meu pensamento se mistura aos murmúrios do eucalipto, ao zunido de um marimbondo e aos fantasmas de outrora. Próxima a uma janela, me estico para investigar o interior da sala grande: o quadro verde ainda tem restos de aula. Será que nesse ano não haverá aulas aqui? A escola está desativada? O telhado tem rombos e a água que entra forma mares verdes de lodo no chão de cimento amarelo. Uma cadeira torta está encostada contra a parede embolorada.

Dou a volta à casa e entro noutra sala. Está mais suja: há papéis espalhados pelo chão, carteiras empilhadas e mofo. O compensado da porta está descolando e a maçaneta está quebrada. Vejo uma caixa tombada; não me aproximo, perigo. O buraco do teto aqui é maior: o chão está alagado. Um besouro irrompe pela vidraça partida zoando alto. Tenho que fazer uma manobra rápida para que a trajetória não o traga aos meus cabelos, efeito de lembrar o quanto tinha que puxá-los para tirar abelhas. Saio, atravesso o corredor aberto para o terreiro e abro a porta da sala em frente. Giro a maçaneta que, dessa vez, está intacta.

A porta se abre sem barulho deixando ver, ao fundo, um colchão com manchas de molhado encostado à parede. A sala é grande, alta, clara e arejada, e não tem buracos no telhado. Imagino que as carteiras em fila e as vozes das crianças poderiam dar certo encanto ao lugar. Eu poderia viver ali, penso não sei por quê.

Ainda matutando a razão para os últimos pensamentos, saio para o corredor, então, descubro, atirado ao chão, um caderno amassado e encharcado. Seguro-o por uma ponta enquanto dou a volta total à casa e o apoio a um parapeito para escorrer. Nos fundos, há outra parte da construção, mais baixa. Empurro devagar a porta entreaberta espreitando o interior que se ilumina. Cautelosa, observo que há outra carteira da sala de aula escorando a porta. Do ângulo que alcanço, vejo um guarda-roupa em bom estado enviesado pelo cômodo. Decido que prefiro não entrar; volto para fora.

Há outra carteira ao ar livre, meio apodrecida pela chuva. Circulo o olhar: mesmo com o quintal cheio de mato, as goiabeiras têm frutos; as bananeiras não. Aparece outro pé de tênis meio enterrado, esse, grande. Percebo que preciso ir à toalete, mas desisto quando vejo que o caminho até as privadas foi invadido por altos pés de carrapicho. Olho ao redor, para o caso de vir alguém e, disfarçadamente, faço minha necessidade num canto quebrado da calçada.

Volto para a frente da escola, apanho o caderno. Escrito a lápis em letra redonda tem ditados e contas, soluções de problemas de matemática.

"Rogério Roberto da Silva. Escola ....Hoje o dia está ensolarado... o nome de minha professora é Tia...” As anotações de todos as aulas começam com a data, de um ano atrás: fevereiro de 1997. A letra é bonita e legível.

Me sento na calçada pensando que deveria ir embora, mas não resisto em olhar de novo as árvores e em calar os pensamentos para ouvir o vento nas folhas. Olho mais longe e começo a imaginar que a capoeira em frente pode abrigar onças. O nome do lugar diz tudo: Oncinha. O pensamento preocupante faz com que me levante, mas resisto a ir embora, apesar do medo por estar sozinha; pego um graveto grande e começo a escrever no chão. Desenho os quadrados da Amarelinha e o “céu”, pulo três vezes e volto a fazer garranchos na terra solta e fria. Faço semicírculos ao meu redor como construindo cerca de arame, um começando no meio do outro. Quando termino, vejo que havia desenhado enorme rosa no chão vermelho, então, completo a obra acrescentando talo e folhas.

Fico observando a linda rosa no chão, surpresa, até que me lembro outra vez das onças. Penduro, então, os tamancos no graveto e passo por baixo da verdadeira cerca de arame. Meio assustada agora, até talvez por causa do silêncio, mas muito pela definitiva solidão daquele lugar, disparo correndo até avistar, no outro morro, a casa da fazenda.

Quando começo a ouvir vozes, refreio a correria e, outra vez devagar, começo a descer a ladeira, sentindo o sol na pele e o vento nos cabelos soltos. Aspiro com prazer o ar e me deixo abraçar pela natureza. É com prazer que piso, devagar, a argila fria e úmida, fazendo moldes dos meus pés ao longo da estrada.

Só chegando à casa grande é que me lembro dos tomatinhos e do caderno, renegados à janela enquanto explorava o lugar. Penso, com pesar, do que estava escrito no caderno, em letras infantis:

“Hoje é segunda-feira, 24 de fevereiro de 1997.”

“Meu nome é ...”

“ O nome da minha professora é ...”

“Gosto de estar aqui na escola.”

“Está um dia nublado.”

“Bom dia para todos.”

Pena, agora não dá mais para pegá-los, penso, e entro no casarão fresco. Há quase uma multidão em volta da mesa grande, no meio da varanda, cheia de comidas e bebidas. Típico, diga-se, isso não mudou.

As conversas duram até o anoitecer, e um pouquinho mais. É noite muito escura quando, ao voltar para a cidade, o farol do carro ilumina a casinha de escola parecendo gargalhar mostrando os ocos escuros das janelas de vidraças quebradas. Num relâmpago, vejo o caderno lá, quieto e calado. Nem tento apanhá-lo, com medo das onças imaginárias, apesar de querer tê-lo como lembrança. Me conformo ao pensar que ele não me impediria de lembrar cada momento daqueles tempos nem substituiria nenhuma de tantas emoções.

Emoções: quase rio sozinha pensando que pareço ter um tacho delas, fervendo e fumegando. Algumas são até confusas, não sei se por causa de medo inexplicável pelo não sei o quê, ou saudade, ou felicidade por ter vivido tudo isso; ou excitação, expectativa, pelo que ainda posso viver. Se vivi coisas tão lindas até agora, imagine o que ainda virá!! Mesmo assim, mesmo que não compreenda tudo claramente, tenho a sensação de estar deixando algo importante, mas me resigno: está tudo bem quando tudo está onde deve estar.

Algo quase posso apalpar: a certeza de que não importa quantas estradas de terra vermelha ainda vá percorrer, não importa o quanto tudo ainda vá mudar, o quanto vou amadurecer, ou quantos mundos ainda vou conhecer, ou quantas coisas ainda deixarei para trás, aquela menininha vai me acompanhar, e todos que ela amou com o jovem coração, me fazendo acreditar que o futuro é sempre grande segredo, mágico segredo; e que cabe apenas a mim desvendá-lo e vivê-lo. E que, apesar de saber que esse futuro pode também ser cruel, como o é a vida muitas vezes, nada seria capaz de mudar aquilo que tinha vivido. E que caberá a mim, e a ninguém mais, a escolha de ouvir aquele riso cristalino solto ao vento. O mais importante levo comigo: a menininha que só eu posso ouvir, que faz parte de mim. Me sinto rindo, agora finalmente, de puro júbilo, em silêncio, enquanto observo os rasgos de luz abertos pelo farol do carro através da noite escura me levando para destino longe.


Por Magda R M de Castro Brasília, DF, fevereiro de 1998.

APENAS DETALHES

Foi porque descobri que a torneira do meu banheiro também estava pingando. A da cozinha, pingando na bucha, antes da bica, eu já sabia; a do banheiro social também porque é enorme, aberração moderna que desperdiça muita água: eu não tinha essa consciência quando a comprei, mas a do meu banheiro, pingando, pingo a pingo, longe, não tinha visto ainda.
Vi enquanto passava o fio dental nos dentes, sentada na beirada da banheira, enquanto ouvia a chuva fina, a primeira da estação. De onde estava também dá para ver o buquê de flores amarelas da árvore que todo ano desabrocha, duas ruas abaixo, acima dos telhados. Milagres, que não sei por quanto tempo ainda teremos: a depredação dos biomas está desequilibrando os ciclos naturais e pode muito, muito depressa, acontecer nos vermos à frente de uma catástrofe planetária que modificará para sempre a vida confortável que temos agora.
Milagre ainda termos noites e dias, secas e chuvas, coisas nascendo, penso, enquanto observo o espaço de tempo que o pingo leva para cair na pia. Até que não está demais, não, mas não custa um apertozinho, e quem sabe, observar melhor daqui em diante. E observar todas as outras torneiras da casa. E como temos torneiras, para que tantas? Progresso, que foram comemoradas, em todos os cantos, a chegada da luz elétrica e da água encanada. Olha que piada, encanamos a água. Cana não é coisa de bandido? Pois é, encanamos a água para nosso conforto. E esse agora é a facilidade com que jogamos a fonte da vida no esgoto e a misturamos aos nossos outros restos.
Foi por isso que dilui o detergente numa vasilha daquelas de sorvete que a gente sempre guarda. Serviu, então, para lavar copos, pratos e talheres acumulados na noite anterior e no café da manhã. Fui ensaboando pouco e enxaguando com pouca água, uma que usava num copo servia para lavar o outro e pensando na higiene, nas bactérias, talvez não estivesse lavando corretamente. Me lembrei do pedaço de um filme, desses do chamado circuito alternativo, que cá entre nós, tem nos brindado com verdades dolorosas de mundos tão diferentes do nosso; esse, mostrando um menino que, resgatado de um campo de refugiados da Etiópia, ao tomar uma chuveirada, tentava desesperadamente evitar que a água que lavava o próprio corpo escorresse pelo ralo. A enfermeira teve que pedir ajuda para segurar o garoto que se batia feito doido, achando que a vida dele é que estava sumindo no buraco do chão. Trauma, um mundo diferente, a carestia criando dores incompreensíveis: amostra do que pode acontecer a todos um dia?
Então, lavando parcimoniosamente a louça, me lembrei de deixar um balde sob a calha do telhado da varanda. Eu tinha recolhido as fezes da cachorra e jogado, com pesar, um balde de água limpa para a primeira lavada, mas o resto ia deixar que a chuva fizesse. Não ia jogar mais nem uma gota para lavar o chão. Pensei que sempre que faço isso, colocar uma vasilha para recolher a água da chuva, essa vai embora. Complexo de achar que o mundo tão enorme depende de coisas que faço ou penso ou acredito. E será que não?
Só que a chuva parou mesmo e o domingo que prometia ser de novidade, com a chuva tamborilando, se tornou quente como nos dias anteriores, apesar do inverno, mas a varanda continuou como estava: empoeirada. Prefiro assim do que gastar mais água limpa.
E era cedinho, estava tonta por um gole de café. Levei um tempão para fazer, medidas duas xícaras, para não estragar porque estava sozinha em casa nessa manhã. É que a bomba da garrafa térmica se recusou a funcionar, tentei arrumar e desisti. Tirei a tampa toda para me permitir tirar o café de lá. Não estava doce como gosto, mas uma gotinha de adoçante resolveu e o saboreei com um pão de queijo dormido que deixei sobre a chapa quente. Ficou bom, o problema foi que depois que terminei de comê-lo vi que tinha um cascudinho preto rondando a vasilha transparente que a minha filha tirou do carro com o quitute. Para onde ela vai, a gente arruma lanche porque com as dores de estômago que tem sempre, se descuidar ela não come e piora. Aquele pão de queijo, e ainda com uma fatia de mussarela dentro, deve ter rodado uns dias pela cidade, bate daqui bate dali, e veio parar nas minhas mãos agora cedo. Jogá-lo no lixo estava fora de cogitação.
Mas observei o bichinho rodear a boca da travessa pequena enquanto pensava o quando de porcaria se come: vi umas fotos das comidas da China na Internet. Daí peguei aquela coisinha nas mãos para observar melhor o que era, tão insignificante. Imóvel agora, auto-defesa, ele não deve ter sentido a força mortal de meus dedos.
Ainda pensei, aquelas fotos mostrando as comidas típicas do outro lado do mundo podem até ser montagem, mas a verdade é que se come muita porcaria por aí, inclusive nessas nossas paragens, e engraçado, nossa civilização, será que de civilidade? come bicho também só que uns maiores, talvez o tamanho faça a diferença? O ser humano é mesmo uma coisa maluca! É só ter um hábito diferente que é ruim, ignorante, selvagem. Comer esse ou aquele bicho será que tem diferença? É sinal de maior ou menor moral ou grandeza ou civilidade comer bicho grande ou pequeno? Que nada! É hipocrisia, eu diria.

Brasília, DF, 31 de agosto de 2008.

ALGUÉM DE PASSAGEM

A casa era pequenina, diferente dos corações que moravam nela: felizes, tinham tudo. Ou quase: faltava, para ser lar completo, algo especial. Isso faltava mesmo, porque vez ou outra era preciso companhia para a viagem, opinião sobre coisa ou gente, conselhos nas encruzilhadas. As pessoas ali esperavam por alguém assim, para ajudar a viver a vida boa que tinham.
Numa noite, ele chegou. Sem bagagem, sem promessas: ficaria por uns dias. Ficou até que lhe desagradou certo jantar: se foi, atrás de outros sabores. O que importava? Era tão pequeno aquele lugar!!
Ficou um tempo longe, experimentou o que bem quis. Um dia lembrou do carinho e dos cuidados: pediu perdão, pediu para voltar. Foi recebido com alegria, que bom que voltava: estava perdoado. Chegava outra vez sem bagagem, sem promessas: não poderia contribuir muito, tinha a vida inteira para viver, daria ali, o que pudesse, nada além disso.
Se envolveu em alguns planos, não tinha mesmo o que fazer, poderia ficar, por enquanto, desde que pudesse ter sempre a porta da rua aberta. Emprestou uma coisa ou outra: deveria receber tudo de volta porque aquela não era a sua vida.
Foi até feliz, aproveitou bem: conforto, carinho, e liberdade. Era bom, mas melhor ainda eram festas, viagens, sair com amigos e beber, ah, tudo de bom! Voltava, depois de tudo aproveitado até a última gota.
Pai de família, marido dedicado, não estava em seus planos, mas poderia ir levando assim e ver aonde tudo ia dar. Ficaria, enquanto não encontrasse “coisa” melhor. As condições era não ter aborrecimentos, não fazer nada além do que queria, não olhar no olho e não discutir profundezas. Ficaria enquanto fosse só lago sereno, sabem como é, não era seu verdadeiro lar, não era obrigado a nada.
Não precisava, outras pessoas cuidariam das partes chatas, dos consertos desagradáveis, das maiores obrigações ou responsabilidades. Ajudava, sim, vez ou outra, mas também guardava.
Guardava, se guardava, guardava carinho, o próprio coração. Não precisava nem dizer “obrigada”, já estava prestando grande favor em ficar. Promessas? Talvez tivesse que fazê-las algum dia, em outro lugar, para alguém melhor.
Encontraria esse alguém a qualquer momento. Ia aonde e quando queria, havia tantas oportunidades: amigas, colegas, irmãs de amigos, parentes, conhecidas e desconhecidas. Brincava com uma aqui, flertava ali, uma aventura que durou semanas, outra anos ou uma de única noite. Era um homem livre: viagens, diversão, rodas de amigos e só depois o ninho à espera, e, ainda, sem promessas.
Pena que o dia delas chegou: depois de muitos anos, é verdade, fez até esforço razoável, que não se negue, afinal, era preciso esperar a hora certa: quando juntada a própria bagagem. Então, um dia, lhe pediram "amor e carinho”. Chegou a hora: teria que encarar; era sua vez de distribuir, retribuir, de se comprometer, ou não.
Teria que decidir se acompanhava aquelas pessoas pela vida que ainda seguiria; era a hora da aproximação, de colocar luz nas fendas. Então, decidiu: tinha contribuído muito, tinha dado o que podia, não havia mais nada a oferecer. Aqueles seres lhe sorviam todas as energias, o pressionavam, o olhavam com olhos que quase podiam atravessá-lo. Não suportaria ficar: não poderia ver o fundo daqueles lagos, era forte demais. “Não”, foi a decisão e, como estava apenas de passagem, partiu.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 17 de agosto de 2008.