quarta-feira, 29 de abril de 2009

E.COMMERCE

“Fulana, que sonhos você coleciona para seus filhos?”
Ah, que pergunta imoral!! Que tamanho de pergunta! E olha, só para vender livros. Foi a Abril Coleções que fez essa pergunta, jogada, num domingo de manhã cedinho que começou às avessas, para começar a conversa: sem sol. É aquele desespero domingo sem sol de manhã: o dia não começa. A gente fica zanzando sem achar o que fazer porque se abrir as janelas o vento está frio. Ir lá pra fora tem que ser com blusa quente porque está frio. E olha que são as primeiras semanas do outono. É porque a gente se acostuma com tudo e nos acostumamos ao clima de deserto, causticante, ressequido e farinhento. Agora que o domingo calado faz a gente calar dentro de casa é essa contrariedade.
Mas contrariei mesmo foi com o atrevido anúncio na minha caixa postal. A abri automaticamente como faço todas as manhãs, pois quem sabe o Obama me descobriu e vai resolver todos os meus problemas. Não era o Obama nem o Papa nem o Lula e ninguém no mundo estaria batendo na minha porta para me ajudar porque esse mundão é gigantesco demais e acaba que todos ficam sozinhos. Ei, vem vindo alguém aí?
Vem vindo, a Abril Coleções querendo vender livro. Típico vendedor mesmo que bate cedinho às portas enquanto as pessoas ainda não saíram para as ruas. Importante essa estratégia agora de vender coisas por e-mail porque as pessoas saem cada vez menos às ruas; por motivos bradados aos sete ventos nos trancamos em casa e ponto.
Eis o anúncio e gente, contrariei mesmo com o tamanho da resposta que ela exigia. Isso é jogo baixo e talvez fosse tempo de dar um basta nisso. Os gênios do Marketing ficam estatelados em cadeiras girantes, batendo aqueles lapizinhos na testa e criando, criando. Criando formas de nos despedaçar com a pergunta mais infeliz do mundo, buscando formar dos pais tirarem o pão da boca para comprar uma besteira qualquer; é que os vendedores ameaçam a gente de sofrer eternamente com a culpa de não ter “comprado” para garantir os sonhos dos filhos. Ah, porcaria! Indecência!
Quem são esses “abrils” que me fazem uma pergunta dessas? Como se atrevem a invadir minha casa e esfregar na minha cara que além de tudo, frisem, além de tudo, tenho que garantir os sonhos dos meus filhos. Ah, puta merda! – meu computador não aceita essas palavras.
Gente, eu não dou conta não! Os meus sonhos estão amarrados num saco plástico e bem amarrados para não saírem por aí fazendo escândalos enquanto eu tenho que continuar a botar o pão na mesa. Fiz isso a vida toda e isso não acaba não? Me preocupei em dar aos meus filhos um pouco de conhecimento mesmo com as escolas, como eu, tão insuficientes; tentei dar a eles algumas idéias de moral e honradez, autenticidade e desconfiômetro pela nossa pequenez, ah como tentei. Fiz migalhas de mim, me sequei, me ignorei, sempre fiquei para depois, depois, depois até virar nunca, e nem esse nunca tinha nadinha de meus sonhos.
Ah! que atrevimento me perguntarem se estou preocupada com os sonhos dos meus filhos. Claro que me preocupei com eles, sim, mas não tenho que fazê-los acontecer, essa é a grande estupidez que querem botar na minha cabeça. Isso não é possível, viver sonhos dos outros, e se esses gênios de Marketing fazem isso com a gente é porque são mesmo sacanas. Que grande porcaria virou esse nosso mundo capitalista que estraçalha o coração de uma mãe para vender o supérfluo?. E olha que livros há muitos na minha casa; muitos comprados em brechós; tirei livro até de lixeira, para que meus filhos lessem o mais que pudessem; mas numa hora dessas até seria bom não saber ler.
Ora, qual é o interesse real dessa editora em fazer essa pergunta? E quantos não vão passar o domingo com essa coisa na cabeça? É isso mesmo, os marketeiros acertaram em cheio, sim, mas não vou dizer que de forma honesta. Isso é chantagem. Chantagem da feia mesmo que atiram sem nem olhar a direção do tiro e não importa em quem acertam. Pois é, acertaram em mim e não gostei nadinha!
Sei que é importante vender, mas as propagandas estão além do limite da decência. Já não agüento mais ver mulher pelada vendendo carros, famílias de risos perfeitos vendendo casas, crianças magrinhas vendendo biscoitos recheados, paisagens lindas e verdes que não existem mais, quase; quase tudo mentira!
E agora, onde é que já se viu isso? Colecionar sonhos dos filhos? Caramba! Até onde os pobres pais têm que ir? Viramos reféns da coisa mais sublime que um ser humano pode ser: pais. Temos que dar tudo, calar a boca e agora temos que “colecionar sonhos”? E que sonhos são esses? Sonho de ajudar aos pobres de verdade? Não. Sonho de estraçalhar menos energia e água? Não. Sonho de parar de consumir besteiras e ter consciência da montanha de lixo que esse mundo está juntando? Não. É sonho de consumo, puramente.
É que está dando nos nervos mesmo! As propagandas estão passando do limite. Tem uma que vejo e revejo só de teima. A de uma camionete, essas então, são de tirar o chapéu para a estupidez. Nessa, a camionete entra na selva. Uma que não existe porque tem leão, cobra, rinoceronte, crocodilo e macaco todos muito juntinhos, ficção mesmo. A coisa passa aqueles pneus grossos sem dó sobre as pedras, o riacho, o capim. Sai arrancando os pedregulhos do lugar, levando terra para a água e avança sobre a paisagem linda. Arregaça tudo por onde passa. Qual é a mensagem? O poder dos homens sobre os animais? Que coisa mais antiga! E ainda tem gente que acredita que vai comprar um carro daqueles e sair por aí domando leões. E para ficar na cidade, gente, olha só a incoerência. Comprar um carrão para ficar rodando nas ruas de asfalto. Menos mal, claro, porque fazer a estrada de asfalto já tinha estragado tudo mesmo, então pelo menos não vai estragar outro lugar; mas a mensagem ainda, vejam bem, ainda diz que a natureza é selvagem e que precisamos nos “armar” contra ela. Quanta idiotice!
Daí acordo num domingo de manhã que, por sua vez, não acordou ainda e a primeira coisa que me deparo é com uma ameaça de que serei menos mãe ou menos qualificada mãe se não estiver fazendo coleções de sonhos para meus filhos. Ah, por tudo que é sagrado nesse mundo, isso é mais do que se permite ao menor dos ratos. Aliás, há algo sagrado ainda? Até onde mais vão esses criadores – de fantasmas e pesadelos – para fazer com que uma pessoa compre alguma coisa? E quão fracos somos que ainda acreditamos nessas enganações?
Isso me lembra que conheço uma senhora que faz faxina em casas alheias. Mora num barraco, de aluguel, mas a televisão está lá, paga a infinitas prestações. Então, a filha mais velha vê um comercial de celular. Lindo celular cheio de fitinhas e coisas penduradas. Deveria permitir a comunicação entre duas pessoas, mas faz mais que isso. Ilude a pobre menina de que a sua vida miserável vai se transformar em um conto se tiver aquele celular. Aquele celular iria transformar o seu colchão encardido numa cama com dossel e cortinas de cetim; iria transformar o esgoto do seu beco em lindo riacho cristalino e ela encontraria um amoroso companheiro que a trataria com toda gentileza. Ah, mãe, quero aquele celular! Então, a pobre, duplamente, tira do feijão os trocados para pagar o celular para a filha. E calada ainda por cima!
História rotineira, comum, de todos os lares. Mentiras que transformam os seres humanos em cabides para saírem pela vida exibindo badulaques. E quando não os adquire, as pessoas se revoltam, precisam tomar remédios, se estressam, se deprimem. Quando descobrem que aquilo não cai do céu, que terão que trabalhar anos e mesmo assim não conseguir aquilo tudo, partem para a agressão. Se revoltam, roubam, batem em velhinhas, em mães desesperadas pela “culpa” e pela dor de ver o filho tão “humilhado” por não ter todos os “brinquedos” do mundo.
O que corrói nossos jovens, discurso ultrapassado porque isso é mal também de muita gente crescidinha, é a ilusão frustrada, coisa difícil mesmo de suportar. É assim que egos tão bem alimentados pelas geniais criações de marketing se tornam máquinas impensantes; o coração que deveria abrigar bons sentimentos se torna baú de ressentimentos. Depois explode em comoções públicas e atos de show business. Afinal, talvez não passe disso mesmo a vida que vive hoje o ser humano: apenas um ato de grande show.
Só que nós, os alvos desses artifícios todos, não passamos de figurantes e não nos cabe nem ao menos parte dos aplausos. Até onde vão, será que tem limites, essas pessoas com poder de fazer tão aviltantes perguntas? Ouso até imaginar a cara de algum desses caso lesse o que escrevi. Devem, mesmo que digam outra coisa, pensar: “mas fui efetivo, logo, competente... atingi o alvo.” Tá; pode ser, mas se não posso fazer mais nada, posso deletar a propaganda, e sem responder à pergunta. Não tenho, mesmo, que responder à pergunta da mensagem.
É isso que dá abrir o e-mail num domingo de manhã sem sol.

Magda R M de Castro
Brasília, DF, 26 de abril de 2009.