segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

TEMPO DE VIRAR PASSARINHO

Ainda não fiz reflexão profunda o bastante para avaliar, ou identificar, ou significar, melhor ainda, esse tempo. Sei que sinto um júbilo, força espumante que cresce, avança e me obriga a sair cantarolando. Cantarolar é forma de botar a alma para fora, mesmo que não se seja exímia nisso. Cantarolo muito nesses dias. Talvez porque tenha dormido longa noite de sono, talvez porque ontem foi dia bom e confortante, e talvez porque o dia que se anuncia também parece, será assim. Não sei exatamente o que é essa alegria, tamanha, que parece estou escorada em pilastras de concreto ou em árvores robustas. Apoio, coisa boa de sentir, segurança, distante utopia... tanto exagero que seja esperança, então. Nem é um dia de solão, a chuva prometida embaça os azuis infinitos e as flores parecem esmaecidas, mas parece será alegre, o novo dia. Nem diria apesar dos pesares porque pesares, nem tantos, não têm acontecido ultimamente; mais parece infinidade de arranjos acontecendo um a um levando os problemas embora. Creio que já haviam se resolvido e só agora, que meu espírito se dispôs a isso, é que percebo, resolvidos estavam; se não todos, faltam poucos e talvez seja essa proximidade de que, finalmente, poderei pegar as malas, uma pequena, por favor, e sair pelas trilhas é que me deixa com essa sensação de que virei passarinho. É essa leveza, a facilidade de ir em passo suave sentindo perfumes pelos caminhos. Pairo, espraio, flutuo que é esse o tempo de abandonar grilhões. Ah! Grilhões que nem tanto os colocados à força; e que não se fale ser esses produto do meio, da sociedade doente, não, nada disso. Grilhões mais fortes são aqueles que nós mesmos nos colocamos, que nós mesmos nos limitamos. Esses são os melhores de abandonar porque isso significa que se está virando gente grande, que se está saindo da caverna, que se alça vista longe. Particularmente, ah! acho tão bom crescer! E ver do alto o mundão que tenho para andar, descalça, devagar, saboreando. Ah! É tão bom descobrir a luz em meio às gotas fortes de chuva que veio passar o dia. Dia, noite, tempo, espaço, plantas, cores. Dia de chuva com tanta luz e cheiros e sabores. Ah! Essa confusão toda que me faz cantarolar. Desafinada que dá dó, mas cantarolando! Por que será? Bem, é porque talvez seja assim esse tal espírito de Natal? Então...Será que passarinho tem espírito? Se tem, creio deve ser assim... Por Magda R M de Castro Brasília, DF, 15 de dezembro de 2008.

sábado, 29 de novembro de 2008

TEMPO DE FLAMBOYANTS EM FLOR

Final de novembro: começo de fim de ano. O tempo se avoluma, se movimenta em espirais que embalam a travessia por sucessivos dias e noites, sem fim. É o último mês de Primavera e há cerca de três semanas os flamboyants tingem os espaços de Brasília. Pode-se vagar por avenidas inteiras sob as flores de fortes vermelhos ou suaves laranjas. Essa florada parece mais exuberante que a do ano passado, se não por novas árvores que estrearam seu espetáculo, pela sensação com que as observo dessa vez.
É que a estação das flores marca mais visivelmente a passagem do tempo. Serve para provar que tudo se movimenta, afinal. Sim, porque tem épocas na vida da gente que parece, somos eternos. Ou tudo ao nosso redor parece ser assim: imóvel, petrificado. Talvez nem tanto os acontecimentos do dia-a-dia, mas a alma no peito: de pedra, inerte. A razão não mostra o motivo disso, à primeira olhada. É preciso refletir para extrair dos mesmos sentimentos, dos mesmos passos, dos mesmos atos, rotineiros, o porquê de tudo parecer não avançar. Então, refletindo, vemos não ser verdade tudo estar parado: é o coração, apenas. A vida está acontecendo e até mais rápido do que entende desesperos vãos. As mudanças são visíveis, para melhor; por dentro é que parece haver um bloco de cristal, pedaço calcificado no peito. Particularmente, tenho que procurar com afinco resquício de fé ou eco de alegria e mesmo que o ignore, o desânimo ronda.
Então, eis que chega o final do ano, época de mais cansaço e maior correria, esse em que trabalhei como burro de carga; o que, ironicamente, prova que o universo se movimenta indefinidamente, mas é que há coisas que realmente não mudaram e não mudarão jamais, portanto, temos apenas que suportar seguir em frente. Assim, precisamos mesmo de tempo para nos acostumarmos a elas, mas estamos a caminho; portanto, insisto em esperar por algo lindo depois de virar a próxima curva.
Enquanto isso não acontece, as chuvas, a bola da vez, parecem se firmar. Já se marca compromissos para antes ou depois delas; as roupas já não secam tão instantaneamente e a casa se mantém limpa por mais tempo. O engraçado é que agora que começa o frio em Brasília: eis o “inverno”; e os casacos já saíram dos armários.
Com o semestre quase se encerrando, ousei ir ao cinema no sábado à noite. Fui, com um amigo, ver Wagner Moura e Letícia Sabatella em “Romance”. Amei, o ator, a fotografia, o figurino, a história; e a companhia, claro!
É quase uma aventura sair de casa e ainda mais com tanto trabalho, mas ninguém é de ferro. E vai que estou nesse “intermezzo” há tempos demais, portanto, preciso me obrigar a sair da toca. É tempo de recomeçar a sentir certos prazeres, simples, aliás, os mais simples são os melhores, mesmo porque o passado se rompeu definitivamente do agora e ainda não há a definição de qual futuro acontecerá.
É que nesse momento de passagem nada mais posso fazer, apenas deixar que a maré me conduza à praia; chegando de “longa viagem”. É porque meu coração ainda está se curando de doença grave; há pedaços dele por toda parte; há lembranças e medo e esperança misturados e soma que também não preciso de platéia, então, é bom ficar no canto. Ao mesmo tempo, preciso de amizade, da verdadeira, que respeita os pedaços trêmulos que sobraram de quando o “trator” revolveu a terra do mundo que era meu.
É por isso que, às vezes, penso que me tornei pedra. Tem dias que não consigo dar um único passo à frente: não adianta eu me cobrar, não adianta me exigir, não avanço. E, muitas vezes, nada posso oferecer além de minha presença sem alma; roubada por um passado que se desvanece em traços de crayon; por um futuro insuportavelmente improvável desenhado por espectros. É um tempo em que não existe muita diferença entre o dia que amanhece e a noite que ensombra suas luzes.
Mas quer eu queira ou não, a vida vai acontecendo, seja por uma hora dolorosa, seja por um momento de alívio. Seja numa indecisão, seja na atitude de grande coragem de fazer coisa pequena de grande significado; seja num abraço dado, num abraço recebido; seja no passo intrépido ou no titubeante, a vida acontece.
E meu antídoto, para a maioria dos meus males, é a natureza. Por pior que esteja, me encanto com seu renascimento sob as chuvas refrescantes, com os caminhos que se enfeitam de verdes e flores, por toda parte. Depois das paineiras de flores rosas e plumas brancas, os ipês amarelos surpreenderam os desavisados nas ruas das entre-quadras e ao longo dos Eixos. Agora é a vez dos flamboyants. Suas “chamas” de vermelho-sangue espantam: é tanta beleza! Gratuito espetáculo de cores quase dolorosas rompendo os azuis de Brasília, dá a impressão de ser possível alcançar o infinito ao seguir os galhos exuberantes. É puro prazer caminhar sobre as flores que se desgrudam das hastes e formam tapetes incandescentes; o perfume penetra os sentidos, a pele, os ossos, a alma. O frescor de manhãs, ou tardes, enfeitadas de flamboyants não tem igual: é o cheiro do renascer, da energia do universo, do pulsar, através da eternidade e apesar de todas as vicissitudes, da vida.
Então, a essa, me entrego: que venha, a espero. Mas que não venha em silêncio, que não seja discreta, porque, como disse, o tempo me fez assim meio pedra. É que as ilusões já se esvaziaram todas, então, preciso de barulho para me mover. É que não quero mais os vazios brancos nas paredes, mas sim fantasmas: os que fazem tremer com gargalhadas. Sim, que a vida aconteça com barulho porque já se fez silêncio demais; já se esperou demais. Que haja fogos de artifício para se sonhar de novo com o céu de estrelas. Sim que haja tambores, poderosos tambores, anunciando vida nova. À vida renascente que se brinde com vinho tingido pelos brilhos de candelabros. Sim, que se brinde, à nova estação, ao sonho, à fé, ao que se foi e ao que nem ousará acontecer, mas que se brinde; afinal, é tempo de flamboyants em flor.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, novembro de 2008.

domingo, 16 de novembro de 2008

SER SUSTENTÁVEL

A ideia é a de que o homem, a raça humana, é infinitivo: um “ser” a caminho, aprendendo, tentando, experimentando. Existimos há milhares de anos e talvez ainda sejamos começo; talvez tenhamos que passar por certos apertos para nos completarmos. Diz-se que a pérola nasce da ostra quando essa se machuca; será que é por isso que não somos “pérolas”? Até quanto temos que nos “machucar” para sermos preciosos? A filosofia diria que é preciso conhecer o passado para aprendermos com os erros dos que vieram antes de nós; erros de quem fez besteira. Há pontos nebulosos de nossa história que podem sugerir que talvez tenha sido com uma cadeia de erros que o mundo que temos hoje foi moldado. Para que apreender o passado? Para evitar os mesmos erros, sim, pode ser, mas, veja, será que assim se tirará lições úteis para a atualidade? Quais são as semelhanças entre as variáveis com as quais nossos antepassados lidaram com as variáveis de hoje? Esse é um mundo muito novo e talvez precise de algo inédito para conduzi-lo apropriadamente. Sim, mesmo que se busque dar real contribuição ao Planeta, e por que não, ao Universo, creio termos longa estrada à frente. Talvez mais longa do que a da retaguarda, mesmo assim, entre os hábitos antigos e os de hoje, observo muita mudança: roupas, casas, máquinas, cidades, políticas econômicas e sociais,  a famigerada globalização, e a comida. Essa foi tão transformada que mesmo que queiramos não vamos voltar a comer o que comíamos há dez anos, por exemplo. Domingo desses, no café da manhã, pseudocafé diria a caçula, observei isso muito de perto. Bem, era cedo e na primeira refeição, quando meus netos se levantaram num dia preguiçoso, com caras lindamente amassadas e cabelos espetados, o café era solúvel e o leite, pelo menos era o que parecia, saiu de caixa perfeita, branca, com tampinha de rosca. Depois o complemento para o leite saiu de um sachê que se acreditava ser vitamina de mamão e banana; transformados, juntos, num pozinho. O leite e o pozinho foram sacudidos muitas vezes: milk-shake. E, vendo os pequenos devorarem a comida artificial conclui que nos acostumamos a coisas muito esquisitas. Pessoalmente, vez ou outra, como coisas que mais parecem isopor e tomo líquidos de garrafas que nem sei como foram feitos. Se em outros dias tudo vinha dos quintais, hoje tem-se apenas que escolher, em gôndolas, produtos impensáveis no passado. Sim, tempos, comida e pessoas diferentes. E diferentes os problemas, por isso talvez sejam assim também as soluções. Só não é diferente a capacidade do homem de transformar as coisas ao seu redor, melhorando, ou piorando, tudo. Diferente mesmo é o atual impacto de bilhões de pessoas exigindo indefinidamente, coisas; o que não parece estar mudando a contento. É que, apesar de mudarmos tanto, um péssimo hábito vem resistindo e pode comprometer a continuidade da vida: maltratar a natureza. Digo isso ao ver a indiferença de pessoas quanto à adequada participação na tentativa de renovar os serviços naturais no ciclo da vida. E junte-se isso ao fato de que novo hábito foi adquirido: a fatuidade com que lidamos com as "coisas". Usar um produto por apenas enquanto está na moda é um hábito deplorável do “ser” moderno. Descartar objetos para onde nem sabemos é falta de responsabilidade. Então, já que mudamos tanta coisa, precisamos mudar o peso de nossa "pegada". Temos que nos fazer, sempre, a pergunta: quantos planetas seriam necessários para suportar o estilo de vida que levo? Usar muito bem os produtos, aproveitá-los ao máximo, monitorar o descarte depois disso; usar a água para nosso conforto e não para nosso egoísmo; ver além do que de costume; ouvir mais aguçadamente; saber para onde vão o sapato (nem tão) velho, o eletrodoméstico (in)esgotado, o plástico, o vidro; e os efeitos disso. É preciso saber que a fralda descartável fica no chão por 600 anos até ser transformada; e fazer as contas de quanta gente usa tal produto sem nem saber disso. Daí pode-se elaborar apavorante imagem: uma montanha de fraldas – usadas – em frente a cada janela, ao invés de flores e árvores. Essa é obsessão saudável: criar imagens e fazer contas depois de saber que, em média, cada pessoa produz um quilo de lixo por dia. Isso dá quanto no final do mês? No final do ano? E para duas, três gerações? Onde, em sã consciência, vamos jogar tudo isso? O lixo não é coisa simples, inofensiva, ao contrário, sempre faz estragos. Isso porque até que possam ser chamados “produtos”, todos os elementos naturais passam por processos severos de transformação. Para a confecção de computadores, por exemplo, usa-se química pesada e os resíduos tanto da fabricação quanto do descarte após o uso podem liberar partículas de cromo, cádmio, benzeno, arsênico. Uma vez no solo, silenciosamente, essas passarão a fazer parte dos alimentos, do ar, das plantas, de todos os seres vivos. E daí? O que é que tem? Ora, são substâncias silenciosas, digamos, mas nem por isso menos mortais. Como será o mundo depois que muitas dessas partículas tiverem se somado umas às outras? 
Correto, esse é o nosso tempo, sim, e queremos viver bem, mas que não seja com os olhos vendados. Isso porque, se hábitos são diferentes e variáveis são diferentes, cabe que superemos as diferenças residuais que têm atrasado o avanço do homem como infinito: egoísmos e preconceitos segregadores e injustos. Claro, já abrimos mão de hábitos – e ares – puros, então, dá para mudar mais e criar um humano sustentável: sensibilizado para os desafios globais, ciente que a natureza é que nos mantém a salvo. É preciso nos reeducarmos para o mundo contemporâneo do qual recebemos tantos benefícios: que participemos mais, que observemos mais, que sejamos curiosos, que assumamos responsabilidades. Jogar o que não usamos no lixo não é, nem de longe, atitude suficiente para cuidar da Terra. Ser sustentável é muito mais; é reconhecer os efeitos dos resíduos de nosso consumo; é contribuir para gerar menos lixo; é se dispor a fazer pequena parte da ação total necessária; é ter compromisso, verdadeiro compromisso, sem se preocupar com os ganhos. Ganhos, palavra de significado terrível essa quando representa perdas. Sim, se alguém ganha, alguém perde. E hoje em dia, quem está ganhando? E quem está perdendo? Pois é. Questões que devemos nos fazer, todos os dias. Quem sabe então, buscando essas e outras respostas, possamos chegar ao ponto de vivermos melhor e deixar viver melhor. Só que isso não acontecerá por si só: é preciso decidir fazer, é necessária força de vontade para mudarmos e vivermos integralmente esse mundo – presente – e usarmos nossos talentos para fazer das novas variáveis, as condições para cumprirmos o papel de “ser” a caminho. A humanidade, o “ser” tão capaz que habita tão lindo Planeta, tanto deve saber a origem do que consome como saber como e para onde vai o resíduo desse consumo. É "ser" assim que torna cada um "ser" contemporâneo, “ser” humano integral, "ser" sustentável. Sendo assim talvez tenhamos a chance de continuarmos a “ser” infinitivo. Por Magda R M de Castro Brasília – DF, 16 de novembro de 2008.

sábado, 15 de novembro de 2008

NO LIMIAR DE NOVO CAMINHO

Não foi nada premeditado; eu nem havia pensado nisso. Quando digo pensar, digo em refletir radicalmente como se faz em filosofia: indo à raiz, profundamente. Na verdade, foi acontecendo devagar e não vi, portanto, nem pensar a respeito, pensei. Foi algo além de minha compreensão: quando me dei conta, já estava na estrada, de mala e cuia.
É que foi meu coração. Ele decidiu sozinho; não sei exatamente a partir de quando ele começou a fazer isso: sei que um dia me vi com a sensação de estar no lugar errado.
De repente, não consegui mais entender o mundo ao meu redor; e um mundo que rodei a baiana para construir. Ah, como trabalhei!
Ah, como enfrentei desafios, como fui decidida: não fugi de uma única disputa, nada me interrompia quando eu realmente queria ir ou fazer; nada nem ninguém. Uma guerreira, de arma, escudo e elmo. Não tinha medo de batalhas; não fugi de nenhuma. E que não dissessem que eu não podia: era o sinal para o desafio, daí, eu arregaçava as mangas.
Consegui mais que a maioria, mais do que eu mesma ousei imaginar, mas, sem mais nem menos, num belo dia, a vida que eu estava construindo, ainda sem terminar, perdeu o sentido.
Não todo, mas uma parte grande; a minha realidade foi ficando distante, como se estivesse em ligeira sonolência, assistindo a uma peça de teatro, de longe: não conseguia ver as imagens perfeitamente, nem ouvir os sons. Algo estava errado, deslocado, ou faltava alguma coisa. Aliás, faltava mesmo... algo que me assustou compreender: faltava a mim mesma. A original, a inteira, a boba ou a ingênua, o que fosse, mas estava faltando eu na minha vida.
Ah, dolorosa descoberta! Como um tição, comecei a arder, comecei a pensar então, o que estou sentindo? Que coisa esquisita é essa? O que fazer para resolver a minha falta de mim na minha própria vida? Caramba! Eu estava vivendo a vida dos outros? Onde eu andava?
Acho que foi a partir dessas perguntas, comigo ainda semi-inconsciente, que meu coração começou a mover as pedras dos lugares onde estavam, e não vi. Ele, perfeito enganador, me fez tomar atitudes simples por uma, duas, três vezes, até que embalei e comecei a tomar atitudes audaciosas. No começo, não sabia o que era aquele incômodo todo, mas sentia que tinha que fazer alguma coisa, achava que tinha que ir a algum lugar que não sabia qual: o que eu sabia era que estava tudo, quase, errado.
Sentia que não teria como fugir: tinha um exército me empurrando, e outra coisa tão poderosa me puxando; não conseguia ficar no mesmo lugar. Não cheguei a descobrir se eram sonhos, se eram instintos, se era algum fantasma do passado; ou se o futuro realmente tinha tomado conta; a única coisa que parecia real era que eu tinha que trocar de caminho.
E troquei. É que foi forte demais, avassalador: como feitiço. A estrada desenhada à frente se perdia logo na primeira curva mas o pedaço que passei a ver quando descobri que já estava de partida foi irresistível. Não era uma estrada grande, asfaltada, com as marcas de direção; ao contrário, era um trilho de areia branca fina como o sal, de cheiros que colavam na pele, de vento cantarolando através das roupas, ladeado de pedras de diferentes tamanhos. Era uma passagem acidentada, mas talvez por isso, de atraente mistério. Me ver ali, já num ponto começado, foi tão sem medo ou dúvidas que nem cogitei noutra opção. Uma vez certa de que tinha que seguir por ali, renovei a antiga coragem e, apesar de não saber exatamente aonde estava indo, resolvi encarar; e já acordei com a bagagem pronta, arrumada peça por peça.
Então, foi assim, que tomei, maravilhada, o caminho que se apresentava, que meu coração já escolhera. Como num sonho, as tiras que me sustentavam na antiga vida, agora tão estranha, foram se soltando. Não precisava mais tentar, não precisava mais trabalho árduo além do que minhas forças permitiriam; não teria mais que domar leões. Meus ombros foram se re-erguendo, meus olhos viam mais adiante, não havia cansaço, ou tristeza.
E aí, sem que eu tivesse avaliado todos os ângulos, ainda sem saber se ia dar certo ou não, meu coração partiu; e vi a miragem de mim caminhando sobre prados perfumados, sob raios de sol acariciantes, em direção a uma vista além do olhar percebida apenas por meu coração pulsante.
Foi assim.

domingo, 9 de novembro de 2008

AS ONDAS DO TEMPO

Há 2008 anos os homens condenaram um outro homem, um Santo, à morte. Ele era importante, muito mesmo, porque depois de sua passagem o tempo recomeçou. E olha que nós, seres ditos humanos só começamos a existir depois que o Pai d’Ele permitiu; mas quem inventou de começar tudo, de novo, do zero?
Fico cismando se Ele está nos assistindo... e se divertindo. Deve ser muito engraçado ficar sentado numa nuvem branca vendo os homens correndo como formigas pelo Planeta. Bati aqui, esbarra dali, se esborracha todo noutro canto; é escravo ou se mete a ser rei: basta que tenha um tantinho de nada mais que a maioria.
E nesse mundo tão fátuo, o homem não parece perceber que o universo, o infinito, o tempo libertado de nossas insignificantes molduras estão pouco se lixando para suas vontades e pífias sapiências. Vejo isso estudando o passado, como se vivia há 200, 100, 50 séculos, e até antes disso, e comparando como se vive hoje. O mundo virou do avesso e duvido que aqueles mercadores endinheirados, aqueles reis excêntricos ou aqueles pastores famintos pudessem imaginar o que viria em seguida. E ainda somos tão pouco.
Diz-se que a cada descoberta, ou invenção, outra descoberta se segue, fazendo com que a evolução promovida pelo homem supere qualquer expectativa. É a tecnologia; e seria essa mistura de técnica com a sabedoria? Bem, pode até ser, dependendo de seu uso.
Então, quanto às mudanças, vendo-as em linha por todo o passado, avançaram em todas as dimensões: de todos os homens, de todas as máquinas, montanhas e mares, que tornaram o mundo moderno uma confusão de coisas, uma profusão de diferentes interesses. A velocidade com que as mudanças assaltam não absolve o descuidado nem se apieda do retardatário: a onda vai carregando, surda, arrebatadora no seu contínuo avanço.
Algumas mudanças são melhorias, outras, de jeito nenhum. Tenho uma pena danada de ver o campo se transformar em mar, de areia. A terra nua, desamparada e muda sem lhe sobrar ao menos pequenas tiras de verde para lhe proteger as vergonhas. É desolador ver o fino, imperceptível fio de água no fundo do barranco quando um dia a exuberância da fartura de água e vegetação abrigou grandes e pequenos. E pequenos, tantos seres invisíveis, tão importantes para a continuidade de toda a cadeia de vida quanto a maior das descobertas, se extinguem, trucidados pelo fogo, pelo veneno, pela máquina sem alma.
Quantos de nós já viram um bosque inteiro vir abaixo depois que máquinas usando correntes arrancaram árvores, uma depois da outra, de seu pedaço de chão e as colocaram em fila como soldados em campo de concentração para secar, à míngua? Dói, revolta, revolve entranhas. Elas ficam com as raízes rezando, em riste rumo ao céu, mortas, caladas, nem uma lágrima visível. Só o perfume. Exalam um perfume denso, entre o doce e o amargo, que gruda nas narinas, na pele, no coração. Morrem, não choram, deixam a terra amiga entregue a outra “sorte”. Talvez falte um olhar de ternura para os seres que morrem em silêncio. Talvez falte um olhar de futuro, de imaginação de como aquele solo agora solteiro se tornará quando não tiver mais seus nutrientes para oferecer. Claro, a árvore fazia parte de seu ciclo de vida, tirou, tirou o alimento, portanto, ao seu redor também tudo morrerá; em mais tempo ou em menos tempo, mas morrerá.
Tirar árvores dos sertões foi mudança estudada. Foi política de governo avançar para o interior, para ocupar as terras, para anexá-las ao País. Em nome do desenvolvimento – ainda não consegui que me definissem desenvolvimento. Sem brincadeira: estou com livros, de alguns expoentes autores, dos quais já li e reli alguns parágrafos e ainda não estou satisfeita quanto à definição de desenvolvimento. Pesquisei a Internet, nada. Ou melhor, entendi que desenvolver é crescer. A semente cresce e brota o fruto; a pessoa cresce e vira gente; a empresa cresce... e o dono fica rico. Quem mais fica rico?
Voltando ao desenvolvimento, ele foi a razão dessas iniqüidades: terras sagradas, bosques cheios de pássaros, florestas misteriosas, rios doces e frescos de desconhecidos peixes, bichos de diferentes coloridos, foram ignorados na “marcha para o desenvolvimento”. E viva o desenvolvimento! Mas quem é ele mesmo?
Considerando como base filosófica do desenvolvimento, a erradicação da pobreza, a distribuição igualitária de renda e acrescentando a magna decisão de nossa Constituição, do direito de todos pelo meio ambiente saudável creio que há mudanças que ainda não aconteceram. E o lucro de muitos negócios continua indo para pouquíssimos bolsos.
Essa é mais uma forma de desequilíbrio que a sociedade moderna, ou os sistemas que ela utiliza, desenhou. É verdade que há melhorias, que não se passe ao largo delas. Prova disso é a consciência quanto aos problemas ambientais que se globalizou há poucas décadas e tende a continuar. Essa é boa mudança; só que a balança ainda está pendente para um dos lados, e os processos de equilíbrio ora avançam ora retrocedem, portanto, não há, ainda, ações encadeadas para sustentar boas perspectivas para o futuro.
Identificar isso pode nos permitir avançar para o ponto certo, para a instalação de limites, para a sensibilização. E sensibilizar é procurar meios de matar a fome e deixar viver a floresta; de nos proteger e libertar os bichos; de viver bem e deixar cada ser viver também. E não só, acho que podemos fazer mais que isso: podemos defender a natureza por ela mesma; podemos respeitar o curso do rio pela sua mensagem; podemos respeitar as árvores por seu silêncio, as flores pela sua essência, as abelhas pela sua enorme pequenez.
Podemos voltar a ser natureza, a respirar natureza, a sentir natureza. Para essa conquista teríamos que percorrer caminhos anteriores; teríamos que voltar alguns passos nos milênios que nos antecederam e visitar mundos tão diferentes onde, afinal, viveram outros homens que construíram esse tempo para nós. E nós, estamos construindo o quê para quem vem vindo logo adiante?
Ainda, poderíamos usar alguma gentileza para com os que não são como nós e não usam a nossa linguagem para se comunicarem. Um pouco de piedade também para com os seres que sofrem e não têm como nos contar. Um pouco de humanidade, recordação do Homem Santo que nos ensinou que somos muito mais que isso que vemos todo dia.
Falta ao homem contemporâneo reconhecer a própria finitude: perdeu isso contemplando falsas luzes. É preciso retomar a capacidade de criar para o coletivo e não para as corporações, para a alegria conjunta, para a felicidade em grupo, para a paz.
Falta ao homem de hoje reconhecer que é pequeno demais diante do universo e grande demais quando cego por sua ganância. Essa, o maior erro capital, pode levar toda a humanidade, dessa vez em conjunto, a prescrever novas mudanças e novos tempos, tão difíceis quanto aterradores de imaginar.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, 09 de novembro de 2008.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

SABEDORIA JOVEM

Santa juventude! costumo dizer. Os jovens de hoje são surpreendentemente sábios. A surpresa é porque há uma corrente de pensamento que diz que a sabedoria se adquire com a experiência, e talvez, em alguns casos, seja assim.
Bem, então, os jovens não deveriam saber mais que os experientes, mas ai do experiente que não considera o que dizem os jovens: perderia a chance de ser verdadeiramente sábio.
Tarde dessas, saindo de carro com minha caçula, desta vez eu dirigindo, um automóvel passou rápido ao lado e avançou sobre a nossa faixa, nos interceptando. Não foi uma fechada propriamente, mas avançou sobre nosso espaço. No sinaleiro adiante, os carros foram distribuídos entre três faixas e acabamos parando lado a lado com o apressadinho. Minha filha sussurrou, pedindo, pelo amor de Deus, que eu não dissesse nada ao rapaz ao volante. Respondi que não pretendia falar, apesar de ter tido vontade há uns segundos antes. Para ajudar, a janela do lado dela estava fechada, então fiquei quieta, ainda bem.
O semáforo logo abriu e rumamos para o Plano Piloto. Gostamos de conversar, nós duas. Falamos de tanta coisa! Gosto, especialmente, de saber de suas opiniões lúcidas e nesse pequeno tempo até o nosso destino, falamos de soberba. Ela disse reparar que os jovens em carros bonitos se sentem muito poderosos, achando que o mundo lhes pertence. Não respeitam o espaço alheio, acham que são invencíveis. Fiquei feliz com a percepção dela, e aproveitei para pedir a promessa de, quando fosse famosa, se manter humilde e preocupada com os menos favorecidos. Ela me prometeu.
Era uma tarde escura, anunciando chuva, de muito vento levantando poeira. O trânsito não estava fácil e ainda levamos mais uma fechada: de um carro maior, uma espécie de jipe pequeno. Isso reforçou nossas percepções. Ainda comentamos que o sucesso costuma mudar muito as pessoas e que era preciso muita força de vontade para se manter fiel a certos valores.
É verdade, manter valores em terra de desvalores é quase um atestado de burrice. Mas é importante insistir em tentar, insistir em ensinar o certo, apesar do errado nos rodear. Uma jovem falar de tal assunto, é rara exceção. Que ela seja forte para se manter assim... isso garante que um dia fará parte do time de experientes sábios. Um bom sinal.

Por
Magda R M de Castro
Brasília - DF

PROVA DE AMOR

A gente se acha até normal enquanto não nos jogam tomate. Essa seria uma situação extrema, para ilustrar o que pode acontecer quando não estamos agradando. Só que não agradar nem sempre precisa ser descoberto assim.
A gente se descobre desagradando, ou pelos menos, não agradando profundamente quando o telefonema prometido não veio, quando descobrimos uma festa depois que ela passou, quando nos contam de certa – e ignorada – linda viagem; quando alguém prometeu visitar e só teve tempo de passar à tarde, para entregar encomenda urgente e aceita um copo de – “suco não, por favor” – água fresca, tomada rapidamente.
Se coisas assim acontecem a miúde tem-se que desconfiar. É bom ver se o guarda-roupa não está ultrapassado, se o hálito está fresco, se o desodorante não venceu, se o sapato não perdeu a borrachinha do salto. Também, talvez seja hora de trocar a bolsa perfeita, mas que já solta umas linhazinhas.
Se sentir que a casa um dia calou é bom observar se os banheiros andam limpos, se as plantas dos vasos estão verdes, se os quadros das paredes estão aprumadinhos. Quando o telefone não toca é bom ver se os recados foram respondidos, se os pequenos compromissos foram cumpridos como os importantes, se os e-mails foram correspondidos.
É que, um dia, a gente vai desagradar. Uma irritação porque o carro parou bem no centro da pista pode mostrar o lado feio da gente. Esqueceu a escova de dentes e aí nem a goma de mascar vai ajudar no cineminha; vestiu roupa apertada e escura para a tarde de museu ao ar livre, errou feio; então, tomate!!
Se for tomate vermelho e macio, pode-se fazer suco; se for aquele tomate japonês enorme, parece três grudados, tirado verde do pé, aí, ai, ai.
Desagradar não agrada a ninguém, e não precisa chegar ao ponto de atirar tomates por aí, entretanto, também podemos preparar um episódio com o objetivo claro de desagradar, talvez, para dispensar algo ou alguém. Não responder às mensagens do celular ou dos e-mails, pelo menos umas quatro; dizer que viajou ou que saiu para o shopping quando perguntam por que não atendeu em casa – telefone com registro de chamadas – são corriqueiros métodos de dispensar contatos.
Existe, entretanto, formas tão sutis de afastar o “indesejável”, digamos assim, que nem nós mesmos percebemos. Acho que é porque cansa tirar a poeira todo dia; cansa lutar contra o prato apetitoso; a gente se esgota tentando disfarçar a nova ruga: vale-se mais que cirurgia plástica, pô! O cabelo embranquece e a gente não quer pintar: vale-se além de cabelos. E se, não for assim, a conseqüência é ir sumindo, devagar, das listas de amigos.
Ocorre que, não se sabe se por desilusão, se por preguiça, ou por um boicote inconsciente ao perigo que é ficar à mercê dos eventos e se decepcionar porque não acontece aquilo que queremos para nossa felicidade, nós mesmos nos colocamos na sombra. Inconscientemente, vamos nos tornando menos vaidosos, menos cuidadosos, menos simpáticos, menos gentis, resultado talvez das pedradas que levamos. Descuidamos e comemos mais, estudamos menos, saímos em público cada vez mais raramente.
E descuidar de nós pode ser o sinal de que estamos com medo dos atritos da arena. Se, por exemplo, passamos a comer sem fome pode indicar que estamos tentando criar um mecanismo, engordando demais, para sair do páreo, para que não tenhamos atrativos. Não atrair, por exemplo, um parceiro que nos fira de novo, que nos humilhe de novo: é melhor ficar sem.
Ouço dizer que o ser humano não foi feito para viver só. Mas muitos de nós estamos sozinhos; por opção? Acho que não. Por medo, creio. E é esse medo que faz com que desistamos de ser agradáveis e simpáticos. É que ser agradável e simpático pode atrair o interessante, mas pode também atrair maus eventos. Então, desistimos de mostrar a melhor parte do que somos para não corrermos o risco de sofrer, ou levar umas tomatadas.
O lado bom disso é que pode acontecer que, mesmo desagradáveis, gordos, com o hálito comprometido ainda atraímos algo muito interessante. Se formos lúcidos o bastante para reconhecermos isso antes que desapareça, podemos voltar a acreditar. E quando se descobre a atração mesmo numa pessoa em caquinhos, é razão para acreditar na vitória dos melhores valores. E aí, de volta ao dia, recomeça a ciranda de nos mostrarmos simpáticos, agradáveis, rodeados de amigos ... e felizes.

Magda R M de Castro
Brasília – DF, 31 de outubro de 2008.

domingo, 28 de setembro de 2008

NA LINHA DO VENTO

Um dia a gente pára a correria. Um dia a gente pára: sem querer, querendo, com gosto, alegria, ou nem tanto assim. Infinito, por enquanto, é só o universo; tudo o mais tem um fecho.
Parar pode ser de repente, nada previsto: a vida, ou a morte, um dia nos faz quietos. Tem, sim, a hora do descanso que pode se fazer em pequenas paradas, espaçadamente no começo, mas à medida que muitas dessas acontecem, o tempo de descanso vai aumentando de tamanho, até que, todas as reticências juntas dão na parada final.
Ou a vida vai se aquietando, os sons perdendo os significados, os cheiros já se misturam e se tornam um só... indefinível: todos são tão importantes ou nada importantes. O movimento se espraia; valores antes tão fortes se distanciam, se afastam para dar lugar a outros mais necessários para o momento.
São as substituições naturais que fazemos para nos permitir uma sobrevida. Não gosto de pensar em perdas e em ganhos compensatórios: a idéia me leva sempre a dinheiro, esse vil papel, tão vil razão para tantos desvarios e conseqüentes desperdícios. Gosto de pensar em substituições: é que a viagem à qual todos estamos condenados faz com que as coisas, e a gente também, se movimentem. Então, o que sai deixa lugar vazio, e daí algo se encaixa na medida do oco que ficou, se acomoda ali por um tempo; até que tudo gire de novo.
Contemporaneamente, talvez pelo número crescente de elementos na superfície do globo terrestre, há muito movimento. Tudo gira muito rapidamente e os vazios se sucedem, assim como os recheios dos espaços vão sendo realocados muito rapidamente. E esse suceder de vazios e preenchimentos nos mantém a caminho, na linha de forças tão diversas que nem sempre somos capazes de reconhecer, mas que nos põem no rumo.
Creio que há sempre um rumo; mesmo que não reconheçamos nem lhe damos nome. É esse, num ponto qualquer, que nos iça para a vida, para o caminhar. Até mesmo um ponto de parada é movimento; mesmo quietos por instantes estamos na estrada. Introspectivos também, mesmo quando não preparados para isso, estamos participando da sinergia que nos ata uns aos outros. Isso torna o refletir trabalho árduo, exigente de disciplina e dedicação e, persistência.
Parar para refletir é chance, preciosa, de batermos palmas para nossos acertos e preparar os próximos passos de modo a errar menos. Refletir é juntar o que sabemos de modo a criar o que não conhecíamos. Refletir é exercício solitário, mas que nos permite reconhecer como vivemos ao lado dos demais. Uma reflexão só pode ser assim chamada quando nos amplia, quando nos remete para além do espaço conhecido e, sobretudo, nos dá a conhecer nossa alma com o que ela tem de melhor, e de pior.
É então, que identificamos o efeito da pessoa que somos sobre o que tocamos e sobre o que nos toca. Desenvolver especial sensibilidade pelo mundo que nos rodeia permite-nos reconhecer o nosso valor para o movimento da vida, em todas as suas formas. E formas, há muitas, tipos e cores, paradas ou em movimento.
Portanto, parar um pouco, tomar pausa para refletir pode permitir que o suceder contínuo de movimentos nos leve, conscientes então, ao encontro da verdadeira plenitude que é o viver.

Por
Magda R M de Castro
Agosto de 2008.

sábado, 27 de setembro de 2008

NOITE

Noite de sexta-feira. As moças se prepararam, cada uma com o próprio namorado, claro, para sair. Também eu resolvi que não ficaria em casa. É que se deixar me guiar pela vontade apenas, fico enclausurada o tempo todo; insisto em sair porque sei que me arrenpederia depois se não o fizesse. Nessa noite, decidi que iria para um clube dançar.
Dançar seria me colocar na linha do acaso: depois de tantos anos de decepções, ainda acredito poder encontrar o grande amor num salão de dança. Gente, é que ilusão tem seu propósito: um pouquinho dela ajuda de vez em quando. E imagino um baile, com uma mulher linda, eu, e um dançarino encantador. Acho que são livros demais ou as poucas histórias que papai me contou. Possivelmente os romances porque meu pai não teve tempo de contar muita coisa depois que já tinha capacidade de memorizar. Ou é meu inconsciente que se lembra? Sei lá. Resolvi tentar outra vez, o que tinha a perder?
Assim, me vesti com o que me servia, molhei os cabelos e renovei o creme, passei sombra nos olhos, coisa rara, e estreei o perfume que minha filha trouxe do exterior.
Apesar de ainda ser inverno, Brasília tinha também estreado o verão, antes do tempo: o dia tinha sido quente, sem sombra e sem dúvidas; mas deixaria no carro um casaco leve, para desencargo de consciência.
Cheguei ao clube quase à meia-noite. Marquei, comigo mesma, que não chegaria depois disso: era a hora da estrela. Parei na entrada e pedi permissão ao porteiro para aguardar até desocupar uma vaga no estacionamento privativo. Ele respondeu, gentil, que podia esperar. Fiquei imaginando o que aquele rapaz pensaria de uma mulher de meia idade, sozinha, com sombra nos olhos, num clube noturno. Comecei a rir sozinha da possível resposta certa de que muita coisa o porteiro nem imaginaria. Não demorou muito para o rapaz vir me entregar um cartão. Perguntei e ele indicou o lugar da vaga; estacionei, firmemente, no fundo queria mesmo era estar enrolada em minhas cobertas, e desci rumo à bilheteria.
“Boa noite. Professor paga meia?” – “Sim, se mostrar a carteirinha ou o contra-cheque”. Não tinha nenhum dos dois na bolsinha de noite que só cabia o batom, o dinheiro para uma cerveja e a carteira de motorista. A chave do carro não cabia, mas a espremi, formando um murundum do lado de fora. Paguei a entrada inteira, pensando que não sabia até quando teria dinheiro para isso, mas me comprometi a não sofrer muito quando não pudesse mais bancar tal aventura. Por enquanto, faria o possível para a noite valer mais que aquele ingresso.
Entrei brincando com os porteiros entregando o cupom errado, e depois destrocando. Ergui a cabeça ao passar pelo tapete vermelho rumo ao salão escuro. A música estridente já conseguia trepidar meu coração. Gelado, petrificado, o efeito do som era a primeira compensação pelo esforço. Besa me mucho me recebeu "machucando". Virei à direita na primeira fileira me perguntando por que sempre viro à direita. Talvez porque desse lado o salão é maior, e dá para uma porta que leva à cobertura de fumantes. Não que eu fume, mas que ali é lugar mais iluminado: as pessoas poderiam me ver, me descobrir e um simpático homem se encantaria comigo e me chamaria para dançar. Aí dançaríamos a noite toda; depois, exaustos, me imploraria o número do telefone, que, airosa e inatingível eu negaria, dizendo que não poderia existir nada depois daquele baile. Explicaria que vou ali apenas para dançar, nada mais, e partiria para sempre. Levaria muito tempo até que voltasse ali e assim, o homem encantador teria encontrado alguém para ele e não me pediria mais o telefone; e nem qualquer outra coisa que não teria para lhe dar.
Sim, era isso que pensava enquanto dava a volta ao salão, de cabeça erguida e com o fôlego na última prega para disfarçar a barriga. Depois voltei e fiz de conta que sofria incontrolável sede: comprei uma latinha de cerveja, pedi um copo, de vidro, por favor. Um rapaz de camisa vermelha, também no caixa, reclamando que não tinha mesas vagas, me deu boa noite. Retribui, distante.
Peguei copo e lata juntos e, muito segura, atravessei de novo o salão em penumbra, tentando nem chamar a atenção demais nem passar despercebida. Peguei uma cadeira da área externa e a coloquei entre duas mesas, desocupadas, mas ocupadas, se é que se entende o que estou dizendo. Bem, é que os ocupantes deveriam estar na pista de dança, mas havia copos e garrafas a meio caminho sobre os forros vermelhos. O salão cheio, garçons e pessoas entrando e saindo, indo e vindo, me coloquei num lugar em que pudesse observar a pista animada e tomar a cerveja.
Notei que um senhor passou olhando as mulheres sentadas. Ansiei que me visse, que me chamasse para uma dança enquanto fiquei imaginando, que tipo, afinal, seria o de homem que me agradaria. Conclui que seria um que soubesse dançar, que tivesse uma grande história de vida, que não fosse moleque nem bandido: posso estar esperando demais dos homens. Enquanto isso, o senhor escolheu uma mulher pequena, usando calça jeans apertada. Será que deveria vir de calça jeans para a seresta? Penso que não ficaria muito confortável na hora de alguns passos de dança mais sofisticados, como se eu fosse capaz disso, mas com um bom dançarino nunca se sabe. Definitivamente, não, o vestido que escolhi estava perfeitamente adequado para o lugar.
Saboreei a cerveja, vagarosamente. Depois, recoloquei a cadeira na varanda e rumei de novo para o bar. Pus, firmemente, no balcão de granito, copo e lata; caminhei, a passos seguros, para o banheiro. Como alça, puxador de porta, guarda-chuva, o banheiro era o porto seguro: podia ir sem ninguém criticar. Indo ao banheiro, não atrapalharia ninguém, nem quem dançava, nem garçons e nem ficaria plantada que nem bananeira com as pessoas se esbarrando em mim e me olhando estranhamente, ou não me olhando de jeito nenhum; não sei qual é o pior. Não, ir ao banheiro eu podia e ninguém poderia reclamar de mim por isso. No banheiro, eu caberia e o banheiro caberia em mim. Não, sem o banheiro não ficaria, mesmo que só entrasse e saísse rapidamente. Às vezes só me olhava no espelho para ver se tinha fechado um pouco os olhos assustados; vez ou outra tinha que dar uns tapinhas nas bochechas para disfarçar a palidez: mas sempre saía mais animada da toalete.
Numa das vezes nem cheguei a entrar. Na ante-sala, com bancada e grande espelho, uma mulher se admirava no vestido longo. Será que seria chamada para dançar se viesse de vestido longo da próxima vez? “Ei, você!!?” Eu, euzinha, eu mesma. A mulher era a esposa de um colega de trabalho de outra encarnação. Décadas, se não no plural, no singular estava certo: década, um pouquinho mais; linda ela. Como num rodopio de redemoinho, me vi tragada para o passado. Ainda bem que a memória não me falhou totalmente e me lembrei do nome logo que alcançamos o marido esperando do lado de fora. Ele, sim, o mesmíssimo. O mesmíssimo espetacular cabelo black power só mais ralo pela ação do tempo e o rosto com um pouco mais de vincos, mas o mesmo.
Santo Deus, um casal que conheci há tanto tempo ainda está junto. Como um milagre do infinito, queria que aquilo me fosse explicado. Perguntei de tudo, batia palmas, ria, me admirava, a cada vez que me contavam de suas vidas. Também perguntaram da minha: contei que estava só; por opção, o homem falou, e concordei. Ao pedido de detalhes, disfarcei e mudamos de assunto, que as novidades estavam de bom tamanho. O salão cheio, ali em pé, tentava dar espaço para um e outro que passava, então, ao me desviar de alguém, vi um vulto recostado à pilastra, bem perto, quase me tocando. Era um canto mais escuro ainda e custei a identificar o rosto: a lembrança veio chegando enfumaçada até que identifiquei um homem que conheci em outra noite, naquele mesmo lugar, fazia meses. Falei com ele, como velhos camaradas, e o apresentei aos meus amigos. Esses logo se despediram indicando onde estavam, qual mesa perto da janela, que eu fosse para lá. Pensei ser agradável a companhia dos dois, era mesmo uma boa idéia, se não fosse por me lembrarem de coisas que queria não lembrar; talvez mais tarde.
Me voltei para o espectro no escuro. Perguntei-lhe o nome, para me lembrar: respondeu o mesmo da outra noite. Depois disso, fui resgatando o que conversamos antes: água, pessoas, música; ele se sentou comigo perto da pista quando uma mesa se esvaziou. Naquela noite, tinha contado poucas coisas de si, eu de mim, partes sem importância; rimos um pouco, até que alguém o chamou. Ele se foi e eu fiquei, apenas assim.
Nessa noite, nos falamos menos ainda, lhe cochichei meu nome, também para lembrá-lo: nunca se sabe. Muito magro e pela segunda vez, vestido de escuro; escuro no escuro dava pra ver só os cabelos prateados; e não sei a cor dos olhos. Perguntei da namorada, disse que estava sozinho dessa vez. Comentou que aquele lugar fora melhor um dia; perguntei por que continuava indo se não gostava mais. Respondeu que para ouvir música. É, eu também: ouvir música bem alta, estridente, o bumbo atingindo o coração, para assim ele se mover; vendo pessoas rindo, assistindo à alegria dos outros; observando, quem sabe assim aprendo como se faz.
Um fantasma esse homem, mistério: interessante, mas não assustador. Do tipo que é comprometido e não se rende, que insiste sempre em nova busca porque o que tem não lhe basta mas também não se desvencilha do laço de uma vez. Sei demais o que é isso; realmente sei. O frio que me percorreu serviu de alerta: a mesma situação? Não!! Por isso, me despedi, saí recomeçando nova ronda pelo salão.
Resolvi atravessar a pista rente ao palco. Depois, parei como poste, pertinho da caixa de som, do outro lado. Um casal dançava passos ensaiados e me distrai admirando. Bati palmas e os elogiei quando passaram perto de mim. Havia me comprometido a fazer de tudo para a noite valer a pena... novos amigos valeria a pena. Só que eles se afastaram rodopiando quando começou outra música.
Então, o rapaz do bar, o de camisa vermelha, claro que isso não precisava ser explicado porque não tinha outro, me chamou para dançar. Perguntei: por quê? Ora bolas! Perguntei por que queria dançar comigo, pode? Pode. E dancei com ele, sem entender a resposta, duas músicas. Depois agradeci alegando cansaço, até que dançava direitinho, mas ainda não era o dançarino que queria. Me justifiquei: fui educada em lhe dar a chance; daí voltei para minha posição de poste até que o vocalista anunciou o intervalo.
Sai, batendo firme o salto no piso liso. Assim que cheguei à varanda, supresa! Encostado à tela de proteção, estava quem? O rapaz de camisa vermelha! Pensei: como é que ele passou na minha frente e não o vi? Rematei: e desde quando você enxerga alguma coisa? Ele chamou: “Marina!” era comigo, apesar de não ser o meu nome. Cheguei perto, cochichei meu nome certo. Ele riu e perguntou se o ajudaria a tomar uma cerveja. “Claro!” o que teria a perder? Fiz rapidamente as contas do horário depois que me lembrei da lei seca. Um copo daria, sim. Procurei uma mesa ao fundo e juntei duas cadeiras; esperei. O rapaz veio com um copo só, ai, doenças transmissíveis. Talvez ele tenha pensado a mesma coisa porque buscou outro copo. Perguntei onde estava a garrafa, explicou que estava na mesa, tinha encontrado uma e a garrafa estava lá para marcar território. A primeira coisa que me contou depois do nome foi que era de Minas Gerais. Depois, que estava de plantão. Acho bonito essa coisa de estar de plantão, parece escoteiro, “sempre alerta!”. Pensei que se fosse médico eu saberia logo, mas fui descobrindo devagar que era funcionário de um sindicato : estava na cidade fazendo não sei o quê. Acho que a cerveja fez efeito muito rápido porque essa parte ficou em branco na minha cabeça.
Ele disse que eu era bonita. Pronto! Destampou a filósofa: expliquei que não fico muito confortável com elogios desse tipo. Se tivesse dito que eu parecia inteligente, ou que parecia conhecer alguma coisa bem, até que seria mais fácil, mas falar em beleza comigo me desconcerta. É que beleza não é tão importante; hum, será? Ou é porque não a tenho e nem sou burra o bastante para acreditar em tais elogios? Ah, gente, tem dó!! Conta outra!
Para mudar o rumo da conversa perguntei dele: arrimo de família, não tinha filhos. E quem você amou? “Oh, amei uma mulher mais velha. Tem mais de sessenta anos, mas nunca vi tão doce. Ela é rica, mas nunca liguei para isso”. Nossa! Que bonitinho! Falou que fará quarenta e sete no fim do mês, deu o endereço de onde está hospedado, o número do celular, daqui da cidade, diga-se. Falei para lutar por aquilo que quer de verdade, que é sempre tempo de ser feliz e coisas desse tipo. Que conversa é essa? Ai. Ele perguntou de mim e contei uma coisa aqui, outra ali. Se tenho alguém? Não. Por quê? Porque mandei embora o homem que eu amava. Me olhou torto, expliquei: pedi para o companheiro de muitos anos ir embora porque não suportava mais ser insuficiente para a felicidade dele. Aí o rapaz de camisa vermelha, profundamente, me explicou que meu companheiro foi embora porque tinha que ir. É verdade: tinha mesmo que ir. E de repente parece que ele também teve que ir porque se despediu rapidamente: puft! e se foi. Fiquei sentada, quieta, na varanda já de vento fresco da madrugada, terminando a cerveja.
Quando o conjunto voltou a tocar, recomecei a ronda, indo primeiro, claro, ao banheiro. Passei observando as mesas perto das janelas, lembrando dos amigos encontrados inesperadamente. Também vi que, se fôssemos educados, as torneiras do clube poderiam voltar a ter o controle manual para economizar água. Dessa vez, nem me olhei no espelho. De volta ao salão, ah, a essa hora não havia mais homens simpáticos procurando alguém para dançar: já haviam encontrado. Pensei em ir embora, mas o preço do ingresso me obrigou a ficar: compromisso é compromisso.
Fui ao canto onde meus amigos indicaram a mesa e já quase todas estavam vazias. Perguntei, ao garçom, por um casal assim e assado mas ele não soube informar. Descobri um homem sentado sozinho, usando fulgurante camisa estampada de verde e preto. Os cabelos, na penumbra, bem, estavam em penumbra. A pele era clara. Me deu vontade de falar com ele, mas fiquei observando a direção do olhar e vi que eu não parecia ter o que ele parecia procurar. Me recostei por ali, entre a porta para o hall de entrada e a primeira mesa da pista: cuidei para não atrapalhar a passagem, enquanto assistia aos dançarinos. Agora, além de mais dois casais desfilando passos ensaiados, um par contava com uma mocinha em vestido rodado que parecia bailarina tal a perfeição dos rodopios. Notei que as pessoas parecem estar se importando em aprender a dançar de verdade. Não pude deixar de pensar nas poucas aulas que freqüentei numa academia.
Passou por mim uma senhora linda num vestido preto cheio de laços com os cabelos presos em cachos despencando: brincou com dois homens que a disputavam. Dançou divinamente com um, depois com o outro. O que será que ela tem de atraente? Será que dá para aprender?
Nisso, o príncipe das trevas tinha reaparecido e se sentado numa das mesas vazias na linha reta da minha visão. Só registrei o fato, mas me mantive longe: o deixei lá, na sua total escuridão e continuei firme grudada à parede. Pensei em me sentar numa das mesas depois de tirar os guardanapos amassados de cima da toalha, mas me peguei achando que aquilo era serviço do garçom e se ele não estava se incomodando porque deveria eu me incomodar? Continuei em pé, grudada à parede, assistindo aos casais dançando. Fui me lembrando da minha paixão pela dança, de agora até os primeiros anos de adolescente. Naquela época, quando demoravam muito a me tirar, o que pode ter, afinal, acontecido por toda a minha vida, pulava no salão, não importando se vazio ou cheio, e me punha a dançar mesmo sozinha. Poderia até estar sendo ridícula então, mas e daí? Bem, pensei, se já era difícil me chamarem naquele tempo, imagina não sendo tão mocinha mais? Acorda, mulher! Já não é sem tempo, acorda!
Isso me fez pensar em sair dali. Olhei o relógio do celular, também espremido na bolsa, me esqueci de dizer, mas não eram nem três da manhã. Olhei a pista: ainda havia uma chance para mim. Me aproximei da linha marcada e fitei a luz do palco: direto no cérebro, a faixa iluminada parecia me colar ao chão. A música, mais alta dali, fazia meus ombros seguirem a cadência. Um homem se aproximou, convidou e fomos para a pista. Ou eu não sabia dançar nada ou ele não sabia ou estava bêbado ou as duas ou três coisas juntas: foi um desastre. Devo ter beirado ao tombo uma dúzia de vezes tentando seguir os trejeitos do condutor. Só consegui suportar uma música inteira e na metade da segunda tive que inventar que o sapato estava machucando; pedi desculpas e sai mancando.
Me plantei perto da porta de novo; em seguida o cavaleiro das trevas fez o mesmo, pertinho de mim, de modo que pude observar o rosto de cadáver quase tocando o meu. Comentou que não dançava porque as pessoas não gostavam de gente velha; me recusei a me enquadrar naquele ponto de vista. Conversa vai, conversa vem, falei que minha caçula iria se apresentar na cidade e que gostaria de convidá-lo. Ele aproveitou para dizer que também tinha uma filha estudando no conservatório de música em Belo Horizonte. Quando peguei um guardanapo da mesa para anotar o telefone, ele avisou que decoraria o meu número. Ah! Tudo bem! Disse que só tinha o número do trabalho, uma multinacional americana, que era digitador, ou coisa que o valha – me vi remendando pedaços de informações. Falei meu telefone e ele o repetiu imediatamente. Ah! olha como é difícil entender o mundo: para um não quis dar o telefone, para outro dou. Fantasia, seleção natural, estupidez? Uma coisa, ou todas, e vamos levando enquanto não há necessidade de concessão ou compromisso.
Ainda o homem em negro e prata me apontou o homem da camisa em verde e preto, dizendo ser o melhor bailarino do clube em todos os tempos. Trim! Alarme, informações com muitos significados. Então, o príncipe em negro que não tem telefone, nem e-mail, que não gosta mas vai e que conhece um pouco de história, se foi, por sua vez, me dando dois beijinhos no rosto.
Voltei para a linha da pista, teimando em ficar ainda no clube. O homem dos tropeções se aproximou de novo e queria me passar a mão. Chamou para dançar, neguei dizendo que estava com os pés machucados e só esperando minha turma se dispor a ir embora para ir também. Posso telefonar? Pediu tantas vezes que até me deu vontade de dizer que podia. Queria só saber da próxima pergunta: qual é o seu número de telefone? Aí me lembrei do que queria quando entrei no salão e o que diria ao senhor simpático com quem dançaria a noite inteira. A vida é irônica, não é não?
Tive que sair de perto da pista para me livrar do insistente. Fiquei de longe, agora observando o homem de camisa verde e preto dançando com uma moça de saia branca rodada. Será que aquela minha saia branca rodada está muito velha para usar aqui?
Quando o dançarino saiu da pista, depois de já ter dançado com outra mulher e girado lindamente pelo salão, não resisti e lhe estendi a mão que foi apertada de volta. “Nossa, você dança muito bem! Esteve ótimo!” - “Não estou nada bem hoje, estou muito cansado.” “Não, o que é isso, esteve ótimo!” ele ouviu enquanto se afastava no escuro.
Não, definitivamente, nada mais aconteceria naquela noite. Saí, sem brincar com os recepcionistas, calada, com a cabeça baixa, talvez pelo frio que começava, pouco, mas começava. No carro, vesti a blusa e manobrei, friamente, rumo à saída; agradeci ao porteiro e espiei pelo retrovisor: não estava sendo seguida. Piada? Não é não. É sempre bom prevenir.
Dirigi pelas ruas escuras, o mais rápido que pude. A casa calada me recebeu segura, a cachorra se abanando para mim. Todas recolhidas aos quartos, procurei não fazer barulho; já tinha deixado a cama arrumada e me enfiei sob as cobertas. Tinham se acabado o longo dia e a longa noite. Só consegui pensar, num último rasgo de consciência: “Oh, Deus! O que há de errado comigo para ser assim ainda tão difícil?” Adormeci sem cogitar a resposta.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 16 de agosto de 2008.

PRIMAVERA, EI-LA!

Não é que estivesse distraída porque me assustei quando ela amanheceu. Eu a esperava, mesmo que sua chegada sempre seja ausente: ela manda parte da bagagem, uma lembrança, pedaço de susto – ai, chegou?!! – Não, não ainda. É só um sinal: aquele ipê é temporão, aquela paineira é exagerada! Mas calma, ela vem, não é ela ainda, mas está chegando. Espere... Acho que é para fazer teatro, criar clima, fazer furdunço, ventania. Mostra a amostra do que pode vir a mostrar. Se mistura ao inverno e ao verão, tentando enganar, querendo fazer suspense. E suspensos a gente fica, secando, vigiando o céu e escutando o silêncio do descampado do cerrado. Será que esse ano ela chega antes da chuva? E as cigarras, anunciantes, ainda não começaram a cantar... mas que bagunça é essa de secura, cigarra e chuva. Você não está esperando a primavera? É porque quando ela vem traz tudo junto e mais: a luz de Brasília é sempre a espetacular claríssima luz de Brasília; a chuva que acompanha alivia tanto o ar quanto o coração com suas cantigas de cobertor; o vento que já passou os brabos de fim de inverno, esses agora acariciam as quinas; as folhas novas vestindo de novo as árvores cansadas; e ... as flores. Pode ser que exista, claro que existe, coisas tão lindas quanto as flores, mas, não em significados: nascer, renascer, recomeço, início, semente... Isso sim é coisa boa demais!! O novo, a hora de respirar diferente, pensar diferente. Pensar em felicidade possível, em sonho antigo bom de ser realidade. É essa confusão, agora perfumada, que sinto com a chegada da Primavera. Mesmo que ela sempre faça esse jogo de nunca chegar quando a gente quer que venha. Mas ela pode fazer jogo, ela pode. Mesmo porque a gente tem paciência em penca para agüentar: é que ela sempre vem, dia menos dia ela chega; e aí... a Primavera!! Ei-la!! Por Magda R M de Castro Brasília, 23 de setembro de 2008.

domingo, 21 de setembro de 2008

UMA MULHER BEM AMADA

Depois de um show, minha filha artista pegou os programas que sobraram para colher mensagens dos amigos e guardar de lembrança. Mania que herdou de mim, guardar lembranças delicadas como se fossem pequenos pedregulhos marcando o caminho percorrido.
Uma das mensagens que recebeu foi a do namorado, recente assumido como fazendo esse papel na vida dela. Não foi uma mensagem piegas, ou copiada de poeta, disso nem sombra, aliás. Como sou viciada em leitura, deu para ver que era original o elogio, criativa a forma que usou, simples, mas não menos certeira, a declaração escrita, ora com palavras salientes mostrando que escreveu por cima muitas vezes, para reforçar talvez, ora com letra fina e clara.
Eu tinha os olhos lacrimejantes quando terminei de ler a mensagem desenhada entre os vazios do folder do show. Aquela era uma boa lembrança para guardar: preciosa, valiosa. Comentei com minha caçula que a vida tem o milagre de nos permitir tocar os nossos sonhos mais profundos, se não por os vivermos, mas por vermos que nossos filhos os alcançaram.
É que foi meu sonho a vida toda encontrar alguém que me lesse sem que eu mesma fosse capaz. Tolice, talvez, mas para mim, me entender tinha o significado de interesse profundo, transparência de intenções, sinceridade. Fui uma mulher que procurou dar o espaço necessário às pessoas, permitindo que cada uma vivesse de acordo com as próprias convicções e capacidades, e sentimentos verdadeiros, mesmo que isso as afastasse de mim.
Então, olhando para minha filha naquela manhã, transformada de menina birrenta em mulher serena, e sendo definida pelo namorado naquela mensagem, me emocionou demais e fez valer tudo. Ela respondeu ao meu comentário dizendo que tinha encontrado um bom homem, o que todas concordamos na hora. Durante a maratona dos shows, tanta coisa para arrumar, a gente em casa correndo como baratas tontas para cuidar dos afazeres corriqueiros e desses agora, extras, o namorado foi grande. A assistência que deu à debutante no mundo dos espetáculos musicais foi de tirar o chapéu. Ajudou a vender ingressos, divulgou e levou amigos, família, colegas de trabalho. A ajudou carregando mala de apetrechos e caixa de isopor com água e suco; estava na platéia no começo e no fim das apresentações; vibrava com as notas que a cantora distribuía do palco; e esperou, todas as noites, que ela arrumasse a tralha para trazê-la de volta para casa, não importava o quanto demorasse. E, no final, lhe escreve lindas palavras.
Todo mundo correndo também pra lá e para cá, ajuda aqui e ali: a irmã, a babá e eu, todos combinando só ajudar caladas, sem dar palpite, só seguindo os passos da artista, para que tudo desse certo, então, a ajuda do namorado foi importantíssima.
E o show deu certo, foi show mesmo, a semente como comentamos depois, de carreira brilhante. A semente, o começo, o lançamento, depois de longa jornada, de trabalho, de esforços, de desencontros, brigas até. Tinha dias em que a moça parecia ligada na tomada. Isso não só agora, mas no decorrer de sua vida até aqui diante de tantos obstáculos e dificuldades, natural, mas ela era muito, mas muito mesmo, cabeça dura: fazê-la mudar numa coisa era trabalho de Hércules.
Então, aconteceu: o amor fez dela criatura suave, de chamar para conversar e pedir opinião. Aceitou o conselho da irmã a respeito do cabelo, deu espaço para as pessoas mostrarem também o próprio brilho, soube esperar pelo seu momento. Soube esperar pelo seu amor também: o primeiro namorado, de verdade, aos 18 anos é coisa rara hoje em dia. Ela esperou.
Como vem esperando os momentos certos para as decisões mais profundas. Esperou pelo melhor, não aceitando o meio-termo, nem o morno, nem o mais-ou-menos. Estreou o show, com tudo que tinha direito: mostrou no palco o resultado de trabalho árduo e disciplinado, mas com a serenidade de um coração preenchido, de uma alma que chegou, de alguém completo. Sua expressão, no show e depois dele, é de quem confia, em si, principalmente.
Isso é obra do amor. Foi preciso mundos e fundos para fazer dela uma mulher feliz? Não. Presença, sinceridade, entendimento, apoio em momento importante; valores que batizaram pessoa nascente: nova mulher, bem amada.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 10.09.08

sábado, 13 de setembro de 2008

GOOD MORNING, BALTIMORE!!

Foi essa música que me saltou da memória, automaticamente, assim que acordei. Eram 7:48 da manhã; e estava tão claro, mas tão claro que achei ter dormido demais e fosse meio-dia. Assim que abri os olhos, as faixas de luz entrando pela persiana entreaberta escancararam a iluminação translúcida. Durante a noite, acordei de vez quando; espiei a rua como o ladrão espia o que pode roubar, talvez por isso quase perdi a hora.

Assim que acordei, fiquei alerta como quando se vira o olhar para observar nova paisagem: emoções prontas, lembranças, futuro, presente. Um presente meio incerto, que venho tentando superar em teimosos passos arrastados, puxando canga, quase, insisto em avançar. Meu passado e tão rico que permeia o presente e parece fazer parte do futuro: às vezes tenho a sensação de estar vivendo, outra vez, experiência antiga; ou que pessoas longe no tempo e no espaço estão ao toque de meu olhar.

Isso assim, imagino, tão estranho! Tão estranha me acho vez ou outra; não uma estranha de três pernas ou cabelo verde, mas incompreensível tanta teimosia; dessa vez, é teimosia. Abomino não conseguir que o vazio tome conta das perguntas insistentes, das dúvidas que me perseguiram até aqui e que não têm, não têm mesmo, o menor sentido, como se um emaranhado de cipós me prendesse a coisas mortas.

Acho que foi isso, por ainda não ter desembaraçado as amarras que não consegui falar com ele. Andei pelos vãos do teatro depois do show, falei com pessoas perto, mas não consegui encarar o rosto. Venho fazendo o trabalho cirúrgico de relegar a imagem ao mais profundo ostracismo, há quase dois anos, entretanto, não consegui enfrentar a besta-fera; seria prova de maturidade falar com ele, mas não fui capaz, não ainda.

Sabia que iria encontrá-lo lá: era a estreia do show da caçula. Perguntei quando o pai iria, até brinquei que seria bom irmos em dias alternados para que tivesse sempre alguém que a amava na plateia, mas era o primeiro dia de muitos significados; sabia, pois, que estaríamos no mesmo recinto, ao mesmo tempo. Então, pensei me preparar como uma lady: retocar as raízes brancas do cabelo, fazer massagem, pintar as unhas ou passar o dia lendo para estar calma na hora fatal. Correndo daqui e dali, organizando roupas, adereços, comidinhas, e evitando estresses em casa, hora ou outra me distraí, sim, mas, sem avisar, lá vinha o espinho fincado: vou vê-lo!!!

Mesmo não fazendo as coisas que pensei fazer, razão de tantos afazeres mais importantes, a bendita noite chegou. Minto, fiz uma coisa: cheguei cedo. Aboletada na primeira fila, me dispus a não olhar para trás. Vi quando a amiga ao lado acenou para alguém, mas me recusei a ver quem era. Não era, sabia, quem gostaria de ver. No final, afinal, não vi, o que é até engraçado.

É que pavoneando entre as pessoas, cumprimentando os artistas, emocionada por ver a filha driblar notas e trejeitos no palco provando ser a artista que é, não o vi. Sentia a sombra, a presença fátua de névoa indecisa ao lado de amigo de minha infância, padrinho da estreante. O amigo estava de muletas, não podia descer o chão inclinado da sala, então, fui até ele, ao lado do dito cujo. Ouvi a voz pertinho, mas não tive forças para direcionar os olhos para aquele rosto. Não pude fazer isso de jeito nenhum; sentia a presença, ouvia a voz falando com meu filho, sobrinhos, nora, conhecidos comuns. Estava tão perto que podia ouvir tudo, mas só isso consegui. Ouvir o som, ouvi sim, mas fiz de conta ser cena no palco: não era comigo, não me dizia respeito, não precisava encarar; e não encarei.

Depois dos cumprimentos e de combinar o barzinho para comemorar, saímos para o estacionamento. O carro dele estava perto: a silhueta se deslocava no mesmo rumo. Acompanhei filho e nora de quem ganhara a carona e entrevi, no lusco fusco da noite brasiliense de muitos postes de luz sobre muitas copas de árvores que ele estava numa camionete. Disfarçada pela miopia profunda, via apenas entrecenas e senti as vibrações do barulho: quase apalpei a força do motor a diesel rasgando o espaço. Pensei na camada de ozônio...

Quando meu filho manobrou para pegar a pista, percebi, num relance, as luzes traseiras da camionete à frente. Era fila indiana com cada carro saindo por vez, então, aproveitei para me recostar ao estofado de couro e relaxar, e evitar olhar. Me recusei a ver detalhes do carro, como cor e placa: iria ficar procurando pelo trânsito por um igual, assim como faço com os homens: pode ser ele. A fuga está sempre preparada tal o pânico ante a possibilidade de encontrar aquele rosto. É aterradora a perspectiva de dar de cara e não ter como desviar o olhar. Ah! Não! Me recuso a alimentar esse ciclo doentio!

É por isso que ando escolhendo que caminho andar, o que e com quem falar. Já tem presença demais, ainda tem traços de intimidade demais: por mais que me organize, me reestruture, a presença imaginária anda comigo lado a lado. Ironia, presença imaginária: “a força do hábito”?

Às vezes me deixo levar por cada pensamento doido que quase me interno no hospício. Só doido para pensar que ainda não superei totalmente esse episódio da vida e olha que já estava acostumada a viver tão totalmente só. Ei, você continua do mesmo jeito, Sá! Assume! Não há razão para continuar pensando nele: se foi, busca a paz, a felicidade que disse querer e tem razão em tentar, merece o melhor, como todo mundo.

Quase posso ver o riso no meu rosto ao pensar assim. A salvação é que a penumbra me torna invisível. Quando os carros chegam à L2 e param no primeiro semáforo, ficam lado a lado. Sabia disso apenas seguindo o barulho do motor a diesel e meus instintos. Fiz de conta que cochilava, de olhos fechados, mas estava atenta ao movimento lá fora. Quase pedi para meu filho avisar quando se afastasse o suficiente para eu admirar a linda noite de Brasília já cheia de prenúncios de Primavera, mas me contive. Meu filho não precisava saber do que ia por aquele coração jogado sobre as poltronas escuras atrás dele; meu menino querido não merecia parte desse peso, não mais.

Seja porque cada um pegou uma direção, seja porque meu filho escutou minha alma, numa dada altura, ele acelerou e se afastou. Foi minha pele que sentiu distanciar o ronco agressivo que vinha nos acompanhando. Imediatamente, voltei os pensamentos para o que vinha a seguir: um barzinho moderno, o “Pipa” de um amigo de meu filho. Homem agora esse amigo, que frequentou nossa casa em tempos de adolescentes, tantos, a preenchendo de alegria. Bons tempos aqueles!!

Bons tempos também esses, de pessoas que vi nascer e crescer, se tornando adultos de sucesso, lutando com tudo que têm direito para encontrar o próprio destino. Bons exemplos esses, penso recostada na cadeira de madeira que ficaria perfeita numa casa de campo em serra silenciosa: “talvez seja a hora de aprender com esses meninos”. Olho ao redor e vejo gigantes, filhos de Brasília, personagens da cidade onde “jorra leite e mel”: aqui têm as chances de se tornarem os melhores entre os melhores.

Satisfeita, observo os rostos à mesa. Sem medo agora, vejo, olho de pertinho com olhos bem abertos, rostos divinos que riem e brincam num lugar lindo falando de sonhos. São protagonistas da vida que acontece agora; a minha, penso com alívio, é passado remoto. Aconteceu no devido tempo, do jeito que consegui fazer e os frutos são exatamente os que mereço, deliciosos, aliás, e que estavam pertinho, ao alcance de um afago.

Sim, tenho o luxo, a plenitude de estar viva num tempo de contornos diferentes do que imaginei, mas mesmo assim muito boa. E quem somos, afinal, para nos atrever a querer coisas que não têm nada a ver conosco? É o universo, a energia do mundo que nos leva para o caminho certo. Claro nem sempre aceitei tudo passivamente, principalmente quando o estado de coisas me cortava em fatias finas e me sangrava em demasia. Então, “taquei o pé no balde” como costumo dizer, uma vez ou duas. Vezes houve, sinto, que nem tudo foi escolha minha, mas a mim coube escolher entre viver plenamente ou perder a passagem do trem.

Lembrar que escolhi não perder o meu trem, mesmo com o preço raro que paguei, dá vontade de rir de novo; é que perdi o avião uma vez. É porque estive tão ausente da realidade, proteção contra a dor, mas não agora: tudo se expande, tão nítido, tão iluminado; acho posso até ler pensamentos.

Pensar assim dá vontade de sair dançando tal a alegria que me toma. Agora não é teimosia, mas penso que se dependesse de mim, pegaria todos os trens, portanto, está fora de cogitação deixar essa noite ser menos do que é por causa de um passado esmagador. Especial noite de Inverno, esse nos últimos embates com a Primavera, que comemoramos, os que de nós estão juntos, a carreira de nova musicista. Não dá, absolutamente, para me arrepender de nada, para reclamar e, não cabe de jeito nenhum, ficar triste. É que foi linda estreia, o que terá ótimos desdobramentos, acredito piamente.

Acredito, também, não mais em contos de fadas, mas em contos de bruxas porque em todas as histórias que me contaram ou li, a alquimia deu o empurrão para que a heroína fosse resgatada do dragão e vivesse feliz para sempre. O meu resgate foi obra da alquimia porque não vi nenhum herói de armadura. É que, ao avaliar minha vida em profundidade, me descobri vestindo o traje da bruxa: aqui e ali me deparo com fuligem, um cinza, um chapéu torto.

Ora, que seja, mesmo não sendo a vida o que imaginei um dia; paciência. Mesmo assim, acho que a visão lá de cima voando numa vassoura também é válida, como tudo o mais é válido; inclusive, me preparar para ver o show de novo amanhã com a diferença de poder olhar de perto todos os rostos desta vez. Bravo!
Por Magda R M de Castro Brasília, 6 de setembro de 2008.

domingo, 31 de agosto de 2008

O CASAMENTO

Quando cheguei em frente à Matriz, a noiva esperava sozinha do lado de fora. Estava de pé, no último degrau e a cauda do vestido bordado pendia graciosamente pela escada abaixo. O cabelo preso, pena porque era deslumbrante cascata negra, segurava uma tiara de pérolas.
Manobrei o carro para minha mãe descer e fui procurar estacionamento. Quando voltei, já se ouvia a marcha nupcial e tateei pela calçada lateral para entrar discretamente. Encontrei Mamãe e a fui puxando para perto do altar, para ver melhor. Eu, meio cega, não queria perder nada. Queria ver e participar de tudo. Para compensar.
Compensar o grande esforço que fiz para estar ali naquela noite. A vida atribulada de cidade com família, casa, emprego não dava tréguas, então, tive que fazer muitas combinações para poder estar ali, naquele sábado, às 21 horas. Também dirigi um automóvel por 600 quilômetros pouco antes.
Mas, principalmente, estava emocionada. Quase histérica. Depois de 25 anos iria ver pessoas que fizeram parte importante da minha vida: tinha até rezado para que todos estivessem lá. Queria rever rostos queridos e sentir de novo alguns abraços em particular para ter certeza, afinal, de que tudo aquilo tinha existido de verdade. Ou, desejo meio inconsciente esse, para trazer de volta um tempo de adolescente ansiosa pelo futuro e cheia de sonhos quando namorava, por sinal, o pai da noiva.
Eu era uma garota magricela ao extremo, sardenta, nariz aleijado e cabelos desgrenhados. Mas tinha os olhos sinceros e cheios de ilusão. Amava aquele homem de cabelos sempre bem aparados, sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Ele era o calor da minha vida: me lembro ser só metade quando comecei a namorar com ele. Antes dele sentia até dor de tanta solidão. Nas vezes que brigamos, chorei muito, o que me lembra também de uma tia querida me consolando. O carinho por ele era tão verdadeiro que nunca aceitei outras propostas de namoro enquanto vivi naquela cidade.
Mas éramos pessoas simples, e eu, tão simples que quase boba queria que ele gostasse de mim da mesma forma. Pode até ser que isso assim fosse, mas me sentia muito mal quando ele me dizia o que vestir, o que falar, como me comportar. Para confessar a verdade, eu era mesmo meio escandalosa: quando queria rir, ria, me espalhava, me entregava à alegria. Eu não me importava com a vida alheia e achava estranho que pudesse haver alguém se preocupando com o que eu era.
Esse, pequeno, fato me fez pensar um pouquinho, e juntando outras coisas, foi que, mesmo apaixonada, poucos meses depois de colocar a aliança de compromisso, terminei tudo. Ele não acreditou até o último minuto que eu poderia ir embora. Mas fui. E tudo mudou para sempre. Ainda lhe escrevi duas ou três cartas, mas ele nunca as respondeu e muitos anos se passaram. O vi certa vez, mas não a todos os seus parentes, irmãos e pais.
Por isso estava ansiosa. Eu amava muito essas pessoas desde o tempo de namoro e noivado, com elas me sentia em casa. Falavam comigo com carinho, fazendo me sentir bem-vinda. A casa era deliciosa, sempre limpa e cheia de guloseimas: ali vivam muitas moças, cada qual mais bonita e prendada que a outra. Elas eram modelos para mim e me faziam sentir fazer parte.
Tinha medo de que as lembranças me pregassem uma peça misturando as reais e as imaginadas por isso aquele evento era tão importante. Cheia de saudade, queria vê-los todos outra vez, me certificar de que era lembrança genuína, falar com eles antes que fosse tarde e agora, graças aos milagres da vida, pode-se considerar assim, eu tinha a chance de atender a esse desejo.
Em pleno vigor dos meus quarenta e poucos anos, vestida de prata, estava, então, chegando para assistir ao casamento de uma moça que poderia ser minha filha. Gloriosa em seu vestido champagne representava a imagem do que eu queria ter vivido um dia. E o homem que poderia ter sido meu companheiro estava agora circulando nervoso pela nave, sem saber se ria ou se chorava pela emoção de casar a filha mais velha. Me viu, piscou para mim e as bochechas luzidias se juntaram quase numa careta na linda cara de bolacha e por um átimo de segundo vi um olhar antigo, razão da alfinetada que senti no fígado. Sim, estava quase desconfortável, meio sem graça, preocupada com a possibilidade de ele vir falar comigo naquele momento. Mas, por alívio, isso só aconteceu depois do “...os declaro marido e mulher.” Tive, portanto, tempo de preparar meu coração.
Tinha uma razão por estar naquele casamento: o noivo era meu primo. Isso quer dizer que não convivia, há muitos anos, com a família do meu ex-noivo, mas ao contrário, convivia estreitamente com a família do atual noivo, de quem partiu o convite para mim.
Isso mostra as peças que a vida pode pregar na gente: estavam se casando ali, as duas partes que poderiam ter se casado há mais de vinte anos e não conseguiram. E eu ali, assistindo, dava risinhos nervosos ao imaginar que aquela noiva estava desempenhando um papel que me coube um dia e que não tive coragem de assumir. Era a pura realidade, mas essa não sempre é piedosa e parecia esfregar na minha cara aquilo tudo. Não conseguia parar de pensar que tinha sido covardia minha, que abandonei o barco. Pode ser.
De qualquer forma, tudo estava feito: como uma mão invisível fui conduzida por caminhos nunca imaginados e dos quais nunca mais consegui voltar. O que me cabia, portanto, era falar com cada um e matar as saudades. E isso fiz. Tantos primos e primas, tios queridos, reavivando a imagem de pessoas que nunca esqueci. Ah! Foi um banho de carinho: abraços e abraços aquecendo o coração, beijos, palavras de amor. Saciei-me.
A festa de recepção aos convidados foi oferecida no salão de um prédio de apartamentos onde morava uma das tias da noiva. O menu era churrasco, cerveja gelada e bolo. Tudo no capricho, ainda mais que tanto aquelas mulheres quanto aqueles homens, incluindo o pai da noiva, cozinhavam divinamente. Também me fartei de comida. Mas não mais que de carinho.
Tantos parentes juntos, dos dois lados da família, dava gosto ver. Eu flutuava entre as mesas, falando com um e outro, me surpreendendo com as novidades, com as histórias de cada um. O engraçado é que quando a noiva jogou o buquê, tomei o cuidado de ficar bem longe. Acreditei que o tempo disso tinha passado para mim; e o que foi bom é que pensar assim não me incomodou nem um pouco.
Estava acompanhada de meu filho mais velho. Viajamos juntos, curtindo o longo passeio. Para a festa, minha mãe e dois irmãos se juntaram a nós e estávamos ali, todos misturados no salão parecendo um balaio de gatos. É que mesmo sendo uma festa só para os mais chegados, esses mais chegados eram muitos porque as famílias mineiras geralmente são grandes. E essas duas que se uniam agora, finalmente, eram típicas: fartura de tudo, gente, carinho, alegria, comida e bebida. Festança.
Depois de checar um a um, vi que faltava uma das moças, tia da agora recém-casada. Um ponto triste em tanta alegria. Mesmo assim, tinha que aproveitar a chance e, parecendo um papagaio, circulando entre as mesas, não ficava num lugar por muito tempo. Queria saber de todo mundo e, primeiro soube do meu ex-noivo: casado de novo depois de se separar da primeira mulher, mãe da noiva, tentava carregar as bandejas de comida para servir às mesas ao mesmo tempo em que vigiava dois filhos pequenos, gêmeos, lindos bebês rechonchudos. Não caminhavam ainda e iam de um braço a outro, ora do avô ora da mãe, chamando, com adoração, pelo pai. Esse depois me apresentou à esposa. Mulher linda, bem vestida e gentil. Ele estava orgulhoso. Quando me perguntou o que achava dela, respondi: “todo homem tem a mulher que merece.” Politicamente correta, queria dizer que se ela era tão fantástica, certamente ele fez por merecer. Do fundo do meu coração, desejava que ele fosse feliz.
Igualmente, muitos amigos ali me contaram partes de suas vidas. Alguns, envelheceram, cabelos cor da prata, pensamentos indecisos, passos claudicantes. O avô da noiva, quase sogro meu, apesar de tantos anos, estava lúcido e ainda fazendo as brincadeiras que alegravam todo mundo. Um olhar direto, sem desculpas ou receios, era como ele olhava pra gente. Estava sereno, parecendo contente, e ainda brincava como antes.
A esposa de tantos anos se dividia entre a alegria pelo casamento da neta e a contrariedade por uma discussão entre as filhas, acontecida recentemente. A encontrei à mesa da cozinha do apartamento, para onde fui em busca de água. Me contou, chorosa, partes do fato, então, peguei com carinho as mãos dela e disse que todos se amavam muito, portanto, que ficasse tranqüila que tudo se resolveria logo. A mulher à minha frente, ainda de rosto liso e pele rosada, apesar do cabelo totalmente branco, era apenas miragem de antigamente. Meu coração doeu, a abracei com cuidado. Ela começou a recitar uma poesia que falava dos desencontros nas famílias. De própria autoria, sabia de cor longos versos que recitava rapidamente como tentando substituir, pela velocidade das palavras, os passos que as pernas cansadas já não podiam dar. Tive a impressão de que ela queria, com os versos duros e diretos, compensar a sua ausência na solução dos conflitos ao seu redor.
Logo a seguir, uma das filhas a levou para descansar. Voltei ao salão. Foi por pouco tempo que fiquei sentada. Descobri logo um lindo homem de cabelos longos se balançando feito espantalho num paletó largo. Os cabelos carentes de um trato tentavam esconder um rosto moreno, de covinha no queixo. O riso, quase deboche, puxava o rosto para um lado e o olhar acompanhava dando ao conjunto a impressão de estar criticando, e desprezando, o mundo todo. Valtinho. Sinceramente, não sei mais se V ou com W, mas, definitivamente, não era “...inho” um varapau daqueles. Mas era assim conhecido quando criança. Não pude deixar de me lembrar do Daniel Day-Lewis no “O último dos moicanos” quando o vi pouco à frente. Quando me aproximei, fui recebida com muito carinho e fomos tropeçando nas histórias um do outro, querendo ouvir e contar ao mesmo tempo. Ele contou do casamento, da separação, da nova união que lhe daria o primeiro filho agora. Um raio passou pelas minhas contas automáticas e fiz uma avaliação das idades de meus filhos. Pensei que ele começava tarde a missão de ser pai, mesmo sendo bem mais jovem que eu. O que, na verdade, não tinha a menor importância. Foi me puxando pela mão, como namorados, que me levou à atual esposa. Enquanto nos falávamos as imagens de um menino de calças curtas pulando muros se misturava ao homem à minha frente, falando das agruras do casamento, da carreira no jornalismo, de amor e da alegria de ter filhos, coisas que sempre quis. Depois, passou a falar de mim, de meu sucesso, que eu tinha ido embora e tinha construído a minha vida. E me disse, com ares de segredo, que o irmão jamais tinha se esquecido, o que também não podia influenciar nada na altura em que ia a vida de cada um.
Magia, doce magia. A festa parecia um acerto de contas, de todos nós, tão unidos e tão puros antigamente. Agora éramos adultos cada qual com montanhas de problemas, e lembrar o que passamos dava a perfeita forma dos resultados em que nossas decisões se transformaram.
A alegria continuava pelo salão agora misturado à fumaça das brasas do churrasco. Instintivamente, passei a seguir uma cabeça branca que passava rapidamente entre as pessoas, servindo cerveja. Era um olhar sereno, podia quase apalpar meu passado dali, por sentir que tudo estava na mais perfeita ordem e nada poderia ter se dado diferente do que se deu. Ainda como mágica, a visão dessa cabeça branca trouxe outra imagem à minha alma. Não uma de passado, dispersa nas voltas do tempo, mas uma quase palpável que faz a alegria de minha vida hoje. Lembrando da cabeça branca, não pude evitar pensar em dois pares de braços fortes que me abraçam agora, como presente do meu presente.
Talvez pela overdose de emoções, talvez pela saudade, ou pela constatação da vida maravilhosa que tinha, me descobri ouvindo vozes infantis – “Mamãe!” – e mais, que nunca, fiquei feliz por estar ali, por tocar de leve, por algumas horas, a vida que tive um dia, a menina que fui um dia. Vi que tinha conseguido provar que todos aqueles personagens existiram e que podia agora, sem ressentimentos ou mágoas ou saudade até, guardar, para sempre, aquelas imagens. Todas me acompanharão, todas serão sempre caras.
Pouco a pouco, o sonho do encontro, tão ansiado, foi se dissipando e tudo se tornou realidade. Naquele momento, era aquela que estava valendo. Só que, com esse descortinar, vi que muitas pessoas daquela festa não faziam mais parte do meu dia-a-dia: pertenciam a um mundo do qual me afastei há muitos anos, um mundo que não era mais o meu e que estava habitado por outros agora. E foi muito feliz que me lembrei de que não poderia ir dormir muito tarde porque teria que me levantar cedo no dia seguinte. Tinha prometido ao povo do meu agora mundo que sairia cedo, com tempo de chegar em casa antes do anoitecer.
Ainda falei com muitos, não me despedi de todos. De um e outro que estava mais perto da saída peguei um cartão ou deixei meu telefone. Tinha a sensação de que ninguém procuraria ninguém, tão claro estava o significado de cada um para o outro agora. Sentia que, com tanta coisa maravilhosa esperando por mim, não haveria nada que justificasse procurar de novo aquelas pessoas. Se o acaso ou a cidade onde vivemos um dia nos brindasse com novo encontro poderíamos nos falar e apreciar isso. Mas só.
Saí com minha mãe, filho e irmãos, pensando que, afinal, tinha cumprido aquela missão: provei que tudo existiu mesmo. Mas também compreendi que aquelas pessoas não faziam mais parte de minha vida porque escolhi assim. E vendo o que vivi, como num filme de trás para frente, me assisto vivendo com o coração inteiro. Alegre coração, cheio de fé no futuro, certa de ter o melhor junto a quem amo e que está ao meu lado todo dia. Mais uma vez me descubro – magia – feliz, tranqüila; certa de que, mesmo se fosse possível, não trocaria os caminhos que percorro agora por aqueles que poderia ter percorrido. Sinto que o que sou hoje dependeu de mim, de minhas decisões e de alguns momentos encantados que só podem ser explicados como as mãos de Deus me guiando. Creio que se me quedar de joelhos até o fim da minha vida, não será suficiente para agradecer a fortuna de ter escolhido a estrada que, afinal, me trouxe hoje aos tesouros que conquistei.

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 11 de setembro de 1998.

CASINHA DE ESCOLA

Fim de verão, manhãs douradas e úmidas depois de chuvas na noite: clima perfeito para um feriado. Nesses dias, é bom rever a terra natal; é puro prazer vagar o olhar pelos morros e árvores de folhas brilhantes pelos campos da juventude.

Estou no alto de uma colina de onde vejo a casa, os currais, arvores, a estrada que percorri tantas vezes que nem conto e sempre com muita alegria. A relva, aos meus pés, vibra cheia de vida. As montanhas, longe, azuis, seguem o céu cor de mar. Esse, tem nuvens de algodão de desenhos inéditos e misteriosos, e nuvens de chuva, cinzentas, que rolam no infinito levadas pelo vento, ora forte, ora suave. Nesse exato momento, o vento é suave e constante tombando levemente o capim alto a meu lado. Sentada numa pequena elevação, arremedo de cupim, observo a natureza ao redor.

As formigas, um bando delas, me atacaram há pouco quando cheguei; arranquei pequeno arbusto e as espantei. O mesmo arbusto serve para espantar também os mosquitos. Penso no que vivi aqui e sinto muita saudade; é onde vivi parte dos melhores momentos quando criança e adolescente.

Com os primos, corri pelos campos em busca de muricis e azedinhas, nadei em açudes morrendo de medo e pulei riachos em cipós, mais apavorada ainda. Andei a cavalo, comi pamonha, tomei leite espumante em copo de lata trepada nos moirões dos currais. Adorava vigiar o engenho cantando puxado pelos bois resfolegantes. A roda de moagem ia espremendo as canas até ficaram brancas e o caldo escorria por um cocho de madeira até cair no enorme tacho e virar borbulhas.

Lembro do fogo em labaredas saindo da boca da fornalha, sempre com alguém vigiando para a criançada não se queimar. Das tachas ferventes subia a espuma verde, cheia de ciscos, retirada, pouco a pouco, com cuidado com enorme colher de pau. A espuma ia sendo apurada e a garapa engrossava até que virava melado escuro e brilhante. Esse a gente comia com queijo branco, delícia. Depois, num ponto mais apertado, o melado ia para formas de madeira: as rapaduras; a Tia as embalava com cuidado para durar até o ano seguinte. Lembro de um jirau, preto de fumaça e picumã cheio de rapaduras em folhas de bananeira.

Daqui do alto, diviso a casa branca à distância, espanto os mosquitos e me deixo enveredar pelas lembranças preciosas. Lembranças desse lugar que se misturam com as de outro lugar talvez porque os hábitos eram os mesmos, as tradições eram seguidas da mesma forma aqui ou ali. O carinho, curioso, era o mesmo pra todas as crianças, fossem filhos, sobrinhos ou agregados.

Inesquecíveis também os tempos de milho verde. O mesmo tacho de fazer rapadura cozinhava o mingau até ficar amarelo, no ponto de corte, que ia quente para as travessas de louça nos guarda-comidas: não havia geladeira na roça. Dali o mingau era servido em fatias cobertas de canela; do que não gostava então.

No mesmo tacho eram cozidas as pamonhas. A palha verde ia amarelando aos poucos na água fervente. Quando prontas, as abríamos quentes e por cima, era jogado o creme de leite caseiro. Eu adorava abrir as palhas quase queimando os dedos para encontrar a fatia de queijo derretido no meio da massa doce. Qualquer canto servia para me acomodar e saborear a delícia: capim, cocho, degrau de escada.

Não eram esses os únicos quitutes de que me lembro: bolo de fubá, petas, biscoito frito ou tarecos de polvilho acompanhavam o leite tomado no curral ainda fumegante. Na “volta do dia”, como dizia minha mãe, isso querendo dizer, na hora do almoço, a comida espalhava cheiro pela casa e quintais tirando a gente das goiabeiras, dos pés de manga ou amora, e das brincadeiras. A meninada cercava o fogão à lenha onde panelas pretas abarrotadas se equilibravam em pés pequeninos. A caçarola maior era do arroz pilado, meio marrom, grosso, fumegante e cheiroso. Par perfeito para o feijão vermelho de bagos grandes temperado com toucinho e enfeitado de cebolinhas. As outras panelas, todas em cima da chapa de ferro ofereciam carne de porco, ou de gado, ou de frango. Verdurinha da horta sempre tinha. E farinha, de mandioca ou de milho, indispensável.

Eu comia depressa porque a peteca esperava, ou o riacho, o pique-esconde, a corrida apostada, a queimada. Também adorava catar pedrinhas: acreditava que encontraria a pedra perfeita, redonda ou quadrada; ou surpreendente diamante.

Voltando os olhos à estrada de terra muito vermelha, lembro que gostava de passear por ela, com um graveto, para desenhar árvores e flores na poeira fina. Também gostava de ficar encarapitada nas cercas dos chiqueiros observando os capados mastigando o milho duro. Depois de muita atividade, quando o cansaço batia, os moirões mais altos serviam de ponto para procurar o horizonte distante.

Daqui de onde estou ouço uma rolinha “fogo-pagô”; parece que assisto peça de teatro: montada com lembranças. No mundo real, pouco resta daqueles tempos, tanto hábitos quanto pessoas. Os personagens prediletos eram as crianças com quem brincava e essas cresceram tanto quanto eu, então, não fazem parte do cenário atual. Parecíamos saber disso porque aproveitamos todas as brincadeiras até onde conseguimos.

Enfim, crescemos; virei moça de cidade de coração plantado nas serras e nos horizontes das fazendas que me viram crescer. Depois, seguindo a correnteza, parti para um mundo maior, longe. Me tornei esposa, mãe, empregada com rotinas, compromissos, responsabilidades enquanto que dos tempos de criança e mocinha levava algumas cicatrizes e muita saudade.

Reconheço aqui, com doce emoção que senti saudade durante todos os anos que passei longe. Sempre com pressa, vejo agora, cismando aqui debaixo desse dia luminoso,  fosse pela correria ou pela distância, voltei poucas vezes, entretanto, aqueles momentos me acompanharam onde andei. Não eram dias felizes: eram mágicos, puros, perfeitos.

Sim, mesmo longe, as pessoas que fizeram parte daqueles dias estiveram sempre comigo, mesmo agora, depois de quase trinta anos, as sinto por perto. Tenho saudades, inclusive, da menina magricela de cabelos desgrenhados cheia de alegria. Alegria que ocupava o coração inteiro e iluminava a cara de sarda e a bocarra de dentes falhados. Branquela, excessivamente magra, desajeitada, e feliz: isso era eu.

Ainda agora, sinto vontade de correr gritando a toda altura contra o vento; de pisar a terra fria ou me deitar sob o sol forte. Penso nas formigas... não resisto: tiro os tamancos. Fazendo o braço de travesseiro, me estico no calor e fecho os olhos, cismando. Os abro de novo para observar dois gaviões: voam baixo piando miúdo e rápido. Porque fazem tanto barulho? Não vão espantar a presa? Respondo eu mesma: esse piar é só a comemoração antecipada porque sempre pegam a presa, de qualquer jeito vão pegá-la.

O ar tem perfume: de mato verde, de sumo do capim, do arbusto que arranquei, de urina e esterco. Os cheiros me estimulam a levantar. Pego o tamanco e sigo a estrada para o lado da casinha de escola. Quase posso apalpar o mesmo coração de antigamente enquanto sigo a estrada estreita. Observo desde longe: calada, quieta, fincada no meio do mesmo terreiro, cercado de arame, a mesma casinha.

Chego devagar e dá para ver que o mato toma conta das goiabeiras do quintal. Descubro, surpresa, que agora há uma fileira de eucaliptos gigantes que não fazem parte de minhas lembranças. É, o tempo passou mesmo. O vento nas folhas parece fazê-los murmurar no vazio quebrando o silêncio desmistificando a solidão. Abro a cancela quebrada e entro descalça no cercado pisando a terra macia agora talvez porque não tem sido muito usada ultimamente. Acho pequeno pé de tênis meio enterrado num canto, e também cacos de telha e vidro. Subo a calçada manchada de lodo; outra carreira de formigas, de novo, essas, cabeçudas, atravessa o caminho carregando folhas cujas sombras dançam em ziguezague ao longo do trilho de terra fofa.

Um tomateiro silvestre no meio do capim alto está carregado de frutos vermelhos e verdes; um dos galhos tomba com o peso. Gosto deles espremidos no arroz, pena, não tem como levá-los agora, talvez quando passar de carro, na volta para a cidade. Ainda colho quatro e os acomodo nas palmas da mão: para mostrar às meninas.

Me aproximo das janelas num misto de alegria e apreensão: e se algum riso de criança ainda estiver ecoando nas paredes solitárias? Ou se alguma cobra tiver feito, debaixo do amontoado de carteiras quebradas, um ninho? Meu pensamento se mistura aos murmúrios do eucalipto, ao zunido de um marimbondo e aos fantasmas de outrora. Próxima a uma janela, me estico para investigar o interior da sala grande: o quadro verde ainda tem restos de aula. Será que nesse ano não haverá aulas aqui? A escola está desativada? O telhado tem rombos e a água que entra forma mares verdes de lodo no chão de cimento amarelo. Uma cadeira torta está encostada contra a parede embolorada.

Dou a volta à casa e entro noutra sala. Está mais suja: há papéis espalhados pelo chão, carteiras empilhadas e mofo. O compensado da porta está descolando e a maçaneta está quebrada. Vejo uma caixa tombada; não me aproximo, perigo. O buraco do teto aqui é maior: o chão está alagado. Um besouro irrompe pela vidraça partida zoando alto. Tenho que fazer uma manobra rápida para que a trajetória não o traga aos meus cabelos, efeito de lembrar o quanto tinha que puxá-los para tirar abelhas. Saio, atravesso o corredor aberto para o terreiro e abro a porta da sala em frente. Giro a maçaneta que, dessa vez, está intacta.

A porta se abre sem barulho deixando ver, ao fundo, um colchão com manchas de molhado encostado à parede. A sala é grande, alta, clara e arejada, e não tem buracos no telhado. Imagino que as carteiras em fila e as vozes das crianças poderiam dar certo encanto ao lugar. Eu poderia viver ali, penso não sei por quê.

Ainda matutando a razão para os últimos pensamentos, saio para o corredor, então, descubro, atirado ao chão, um caderno amassado e encharcado. Seguro-o por uma ponta enquanto dou a volta total à casa e o apoio a um parapeito para escorrer. Nos fundos, há outra parte da construção, mais baixa. Empurro devagar a porta entreaberta espreitando o interior que se ilumina. Cautelosa, observo que há outra carteira da sala de aula escorando a porta. Do ângulo que alcanço, vejo um guarda-roupa em bom estado enviesado pelo cômodo. Decido que prefiro não entrar; volto para fora.

Há outra carteira ao ar livre, meio apodrecida pela chuva. Circulo o olhar: mesmo com o quintal cheio de mato, as goiabeiras têm frutos; as bananeiras não. Aparece outro pé de tênis meio enterrado, esse, grande. Percebo que preciso ir à toalete, mas desisto quando vejo que o caminho até as privadas foi invadido por altos pés de carrapicho. Olho ao redor, para o caso de vir alguém e, disfarçadamente, faço minha necessidade num canto quebrado da calçada.

Volto para a frente da escola, apanho o caderno. Escrito a lápis em letra redonda tem ditados e contas, soluções de problemas de matemática.

"Rogério Roberto da Silva. Escola ....Hoje o dia está ensolarado... o nome de minha professora é Tia...” As anotações de todos as aulas começam com a data, de um ano atrás: fevereiro de 1997. A letra é bonita e legível.

Me sento na calçada pensando que deveria ir embora, mas não resisto em olhar de novo as árvores e em calar os pensamentos para ouvir o vento nas folhas. Olho mais longe e começo a imaginar que a capoeira em frente pode abrigar onças. O nome do lugar diz tudo: Oncinha. O pensamento preocupante faz com que me levante, mas resisto a ir embora, apesar do medo por estar sozinha; pego um graveto grande e começo a escrever no chão. Desenho os quadrados da Amarelinha e o “céu”, pulo três vezes e volto a fazer garranchos na terra solta e fria. Faço semicírculos ao meu redor como construindo cerca de arame, um começando no meio do outro. Quando termino, vejo que havia desenhado enorme rosa no chão vermelho, então, completo a obra acrescentando talo e folhas.

Fico observando a linda rosa no chão, surpresa, até que me lembro outra vez das onças. Penduro, então, os tamancos no graveto e passo por baixo da verdadeira cerca de arame. Meio assustada agora, até talvez por causa do silêncio, mas muito pela definitiva solidão daquele lugar, disparo correndo até avistar, no outro morro, a casa da fazenda.

Quando começo a ouvir vozes, refreio a correria e, outra vez devagar, começo a descer a ladeira, sentindo o sol na pele e o vento nos cabelos soltos. Aspiro com prazer o ar e me deixo abraçar pela natureza. É com prazer que piso, devagar, a argila fria e úmida, fazendo moldes dos meus pés ao longo da estrada.

Só chegando à casa grande é que me lembro dos tomatinhos e do caderno, renegados à janela enquanto explorava o lugar. Penso, com pesar, do que estava escrito no caderno, em letras infantis:

“Hoje é segunda-feira, 24 de fevereiro de 1997.”

“Meu nome é ...”

“ O nome da minha professora é ...”

“Gosto de estar aqui na escola.”

“Está um dia nublado.”

“Bom dia para todos.”

Pena, agora não dá mais para pegá-los, penso, e entro no casarão fresco. Há quase uma multidão em volta da mesa grande, no meio da varanda, cheia de comidas e bebidas. Típico, diga-se, isso não mudou.

As conversas duram até o anoitecer, e um pouquinho mais. É noite muito escura quando, ao voltar para a cidade, o farol do carro ilumina a casinha de escola parecendo gargalhar mostrando os ocos escuros das janelas de vidraças quebradas. Num relâmpago, vejo o caderno lá, quieto e calado. Nem tento apanhá-lo, com medo das onças imaginárias, apesar de querer tê-lo como lembrança. Me conformo ao pensar que ele não me impediria de lembrar cada momento daqueles tempos nem substituiria nenhuma de tantas emoções.

Emoções: quase rio sozinha pensando que pareço ter um tacho delas, fervendo e fumegando. Algumas são até confusas, não sei se por causa de medo inexplicável pelo não sei o quê, ou saudade, ou felicidade por ter vivido tudo isso; ou excitação, expectativa, pelo que ainda posso viver. Se vivi coisas tão lindas até agora, imagine o que ainda virá!! Mesmo assim, mesmo que não compreenda tudo claramente, tenho a sensação de estar deixando algo importante, mas me resigno: está tudo bem quando tudo está onde deve estar.

Algo quase posso apalpar: a certeza de que não importa quantas estradas de terra vermelha ainda vá percorrer, não importa o quanto tudo ainda vá mudar, o quanto vou amadurecer, ou quantos mundos ainda vou conhecer, ou quantas coisas ainda deixarei para trás, aquela menininha vai me acompanhar, e todos que ela amou com o jovem coração, me fazendo acreditar que o futuro é sempre grande segredo, mágico segredo; e que cabe apenas a mim desvendá-lo e vivê-lo. E que, apesar de saber que esse futuro pode também ser cruel, como o é a vida muitas vezes, nada seria capaz de mudar aquilo que tinha vivido. E que caberá a mim, e a ninguém mais, a escolha de ouvir aquele riso cristalino solto ao vento. O mais importante levo comigo: a menininha que só eu posso ouvir, que faz parte de mim. Me sinto rindo, agora finalmente, de puro júbilo, em silêncio, enquanto observo os rasgos de luz abertos pelo farol do carro através da noite escura me levando para destino longe.


Por Magda R M de Castro Brasília, DF, fevereiro de 1998.