quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

DE RAZÕES E DE CULPAS

A culpa pode ter sido daquela foto. Imóvel, parte verde, parte infinito, estampada na tela do computador. Era quase bonita mas não parecia pertencer ao lugar. Não era uma foto artística, digna de museus e galerias de arte. Era daquelas batidas na carreira, depois que o carro desacelerou sem parar, rodando sem desligar o motor; em movimento, mas devagarinho. Entre outras fotografias, algumas imprestáveis, essa ficou até razoável. Então, foi escolhida para o protetor de tela.
Mas não era, mesmo, uma obra de arte; talvez porque deixava aquela sensação de coisa eterna desenhada na linha da montanha. Ou porque parecia faltar parte da folha do coqueiro menor, apenas sugerida a um canto. Faltava a cerca de arame, claro, quando podia-se também apenas adivinhar em razão do tronco torto, escalavrado, repousando na sombra de um arbusto. Talvez um arbusto de “vassourinha”, desses tinha muito, todos com pequenas cachopas de flores brancas; a imprecisão não deixava ver os detalhes. O primeiro plano parecia estar claro: um macaúba grande sem cachos à mostra no perfil à vista; talvez existissem escondidos do outro lado. Se não tem cachos talvez seja por ser coqueiro muito antigo, daí não daria mais coco. Não daria mais aquelas pequenas delícias redondas, de carne amarela; de castanha quebrada à custa de qualquer pedra do quintal, em cima de um tronco velho. As castanhas verdes eram mais macias, mais suculentas, não machucavam os dentes.
Mas talvez também não fosse esse coqueiro, a causa. Talvez fossem as linhas escuras das grotas arborizadas. Sim, o sol de uma possível tarde marcava os cumes dos espigões, mas as valas fundas, como ossos da espinha de grande esqueleto, estavam na penumbra. Havia muitas, desenhando um mosaico na serra silenciosa. Vê-las assim, na foto, em perspectiva, lembravam grandes serpentes deslizando pelos vales inocentes.
Poderia, ainda, ser o azul do céu destemido, pairando sobre seres e coisas, pairando sobre a rocha, o tronco, o coqueiro, outro vale distante; cobrindo com seus segredos todas as curvas, as de idas e as de vindas; um azul envolvendo as vozes do passado ao silêncio espectral; um azul deixando entrever histórias verdadeiras e lendas verdadeiras que se conta do lugar; ah! que azul!
E poderia ser também o verde; indicando vida, seiva, água, sabor, frescura. O verde também manteando o chão, as árvores, os arbustos, o cume mais distante; que depois cede lugar, de novo, ao azul misturado de horizonte até onde não se podia mais alcançar.
Poderia ser a foto, sim, que apertou a garganta, que esquentou o peito e fez rolar uma lágrima. Uma só que já não havia tantas mais, mas talvez tenha sido culpa dessa lágrima; ou foi ela a razão de se esclarecer a culpa de quem. Sim, talvez tenha sido assim que se descobriu a razão: foram os cheiros. Aquela foto não podia fazer aquilo tudo sozinha. Precisaria de algo mais para fazer aquele estrago todo. Mesmo assim, foi através daquelas imagens que as paixões, as lembranças e a saudade vieram à tona; ela levava a imaginar o silêncio de uma tarde, à esperança de manhãs, aos cheiros de orvalho, capim, animais, flores do pé de manga e dos assa-peixes, hortelã rasteiro, jasmins. É, foram os cheiros sim; não foi culpa da foto, afinal.

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 29 de janeiro de 2009.