segunda-feira, 15 de agosto de 2011

DE ALMAS E DE FLORES

Essa é uma daquelas manhãs em que a alma ainda não acordou: o final de semana de desencontros a deixou com vincos difíceis de consertar. São dias de sombras, talvez o inverno ainda resistente à chegada da primavera; talvez as poeiras que esvoaçam com os ventos do planalto... poeiras de construções eternas, Brasília é. O alívio da seca são as flores. As patas-de-vaca florescem em meio ao pó e ao cinza dos gramados ressequidos, as barrigudas insistem em prolongar seus momentos de glória, teimando em não deixar que seus galhos nus apareçam, então dão flores solitárias; os ipês começam a anunciar o tempo novo. Anunciam devagarinho, se abrindo ora os brancos, ora os amarelos e muitos rosas. As buganvílias são as mais resistentes: seus laranjas, vinhos, brancos e também rosas enfeitam alamedas inteiras. Há também os azuis das grumixamas, a elegância dos hibiscos e o dourado dos pingos de ouro; também florescem as amoreiras, as flores de quaresma com seu roxo indiscreto, e muitas mangueiras. Pela casa, os vasos de narcisos estão repletos de flores brancas e vermelhas, florescem também a pimenteira, a babosa, as mini rosas, brancas e rosas. E, como numa resposta aos anseios de cada alma viva destes planos infindos, a mexeriqueira do quintal se veste de noiva e os cantos dos passarinhos compoem a orquestra que convida para a festa.
Mesmo assim, é uma manhã inacabada: o sol está quase na reta do céu, mas os ventos assobiam nas janelas fechadas; essas tentam, inutilmente, barrar a poeira que ruma para dentro de casa. É que Brasília, como disse, “sangra” suas entranhas vermelhas: ergue-se do chão fresco perfumado de eternidade, tanto construções quanto desconstruções. O cerrado desaparece, e junto sua exuberante riqueza de seres vivos. E, silenciosa e ignoradamente, são soterrados os veios de "mel" como Dom Bosco chamou as milagrosas nascentes de água pura, o maior dos motivos para que nesse descampado fosse erguida a nova Capital da República. Um exemplo é o Noroeste: os rasgos em linha reta fazem desenhos espectrais nas entranhas sagradas, expõem os segredos de um bioma nas suas últimas manifestações; vai desaparecer, vai se transformar num conjunto espetacular de prédios caríssimos que só mesmo a corrupção lamacenta que nos jogam na cara poderá pagar. Os pobres mortais de Brasília passam longe, nas pistas de fora, e muitos não sabem dos podres, do poder capitalista que constrói esses novos palácios. Só penso, quando passo sobre as pistas batizadas de terra pura pelos caminhões das obras, quem vai pagar a conta?
No Setor Militar há uma gigantesca obra de prédios que crescem a cada vez nasce o sol: é como se as construções de Brasília se alimentassem de orvalho. Em Águas Claras a obra é única: colossal. São dezenas de prédios que parecem querer crescer um mais rápido que o outro em disputa ao que resta de azul. Aqui no bairro, pegaram a mania de derrubar as casas antigas. Antes, elas eram reformadas, remendadas aqui e ali, até formando um espectro de remodelo, o que afinal, só deixava o lugar com cara de favela pintada para o Carnaval. Mas agora derrubam tudo, deve ser a tecnologia da construção que vem exigindo refazer geral.
Isso me lembra, de novo, o amigo querido que me dizia que quando tivesse problemas, olhasse bem para a natureza. Então acho que é por isso que estou de olho nesses dias ensolarados de inverno, sinais de esperança, pequenos brotos verdes, flores abrindo passagem na poeira, o vento mudando tudo de lugar, quem sabe, posso também, talvez possa pensar em mudanças. Devo, talvez, também copiar a idéia de tecnologias modernas que me ajudariam a jogar por terra meus valores, meus guias de sempre, minhas psicoses, claro, isso também, e recomeçar. Recomeçar do raso, da terra nua, do nada, apenas com a força de um dia depois do outro. Talvez eu devesse olhar mais para esse céu, talvez me içando ao espaço eu consiga visualizar coisas novas, quem sabe, teria a definitiva vontade de fazer diferente. É... porque as feridas estão se juntando tanto e de tal forma fundas que tudo o que consigo é continuar doendo. Me lembro também daquela historinha que me contaram quando era bem pequena: o galo sacrificado pelo João Jiló que ficava gritando “dói, dói, João Jiló!!”.
É por isso que digo que essa é uma manhã inacabada: minhas manhãs até hoje, em geral, foram gloriosas, não importando quais problemas tinha. Nessa, parece que não amanheci.
Por Magda Castro
Brasília, DF, 15 de agosto de 2011.