segunda-feira, 8 de setembro de 2014

BRASÍLIA-MÃE (50 ANOS)

BRASILIA- MÃE (50 ANOS)

De verde seiva era seu cheiro.

de vermelho sangue, seu céu.

Em terra rubra aberta sua alma

assim como eu, e tantos, começava.

 

Vinha de caminhos antigos,

de outros amores, construída.

Assim como cheguei, eu e outros tantos,

Em ti para viver a vida.

 

Das vermelhas, negras veias romperam

levando, conduzindo, trazendo

de braços, de corações, de coragem

seus moldes, estátuas e viagens.

 

Do ventre da terra seu grito se elevou

Sua alma bradou

Seu espectro se fez

Assim como eu, e tantos outros,

o grito da vida despertou.

 

De nós duas, almas vencidas, vidas unidas.

Eis nesse vale, o amparo.

Eis nesse planalto, a paz,

a alegria da chegada, de festa

E dos dias, e noites, de construção,

à deriva: tu e eu, e tantos ainda.

 

De brados e ventos vieram

tantos lamentos.

De tantos recantos e paragens

chegaram a ti, o pobre, o rico,

o sábio, outros nem tanto,

Mas de ti, todos tiveram,

em igual medida, a esperança.

 

Capital já nascia; capital assim seria

A platina a chamar em seu alvo brilho

Em-canto de sereia do Cerrado

do mais remoto rincão, do afastado

trouxe o riso, o sizo, o viço

que em teu regaço aconchegou.

Tanta vida, tantas, e também eu.

E mesmo que a saudade de outros planos

tenha um dia vindo bafejar teu esplendor

para sempre aqui fiquei, como tantos...

e jamais de ti parti, como muitos.

 

Tantas vindas: porque em ti

em teu regaço doce

em teu frescor de nascentes assombreadas

me deleito, e os demais,

filhos adotivos ou naturais ou comensais.

 

De tanta fartura, mel, doçura

A mais fina semente germinada

a mais fria alma desencantada

que em ti renasce e floresce

porque tua alma, na minha,

e na de todos nós, jamais fenece.

 

Eis então, que de sonho um dia hoje é verdade!

Eis que tua esperança se torna viva

Eis que em tua história sem par, o lugar,

Eis que chegas em esplendor ao palco da maturidade.

 

Ainda juntas, tu e eu, e junto a tantos que em ti renasceram.

Eis que presenteia com beleza, gloriosa grandeza.

Nobre, bela, doce, eterna.

Tu és o paraíso para tantos.

 

E, como outros, fomos duas jovens que juntas

Enfrentaram os próprios destinos; e os venceram.

Escrevemos nosso enredo, tu e eu, e tantos mais

e agora, festejas, provas teu valor, teu apogeu

como berço de nova era

És tão forte, tanto que outros milhares tantos vão contar.

 

E eu, como último apego que me cabe, e posso

quero em teus campos suaves

descansar eternamente

silenciosamente, enfim.

... como tantos...

Brasília, DF, 29 de abril de 2010.

ATIREI MINHA VAQUINHA NO PRECIPÍCIO

Pode ter sido o escandaloso por do sol: tarde de outono, fresca e iluminada em todos os matizes possíveis. Fiquei da minha mesa, paralisada por alguns minutos, observando o vasinho branco repleto de rosas pequenas. Rosas. Elas estão gostando do clima: fresco, seco, cheio de luz. Além da pequena platibanda do terraço, se destaca ao fundo, depois de telhados parciais e fios invisíveis, o céu azul, azul. Estava muito agradável, a tarde; ainda mais que eu acabara de enviar algumas mensagens eletrônicas definitivas. Era tempo, talvez tarde, talvez. Creio que não teria o mesmo efeito se fosse em outro momento. Estava quase feliz, o que ainda não me atrevia. Era cedo; e haveria consequências. Minha filha caçula subiu a escada e eu, com as mãos sobre os cabelos lisos deixei sair pela minha boca algo que eu queria dizer há muito tempo: anos, muitos. “Pedi para sair”, num fôlego único, esfarrapado, com traços de rouquidão. Eu tinha pensado muito; e, como poucas vezes na vida, me atirei ao precipício. “Pedi para sair” e minha filha me olhou surpresa, quase sem entender o que eu dizia. Pedi para sair do emprego que paga as contas da casa. As mensagens informando isso à escola tinha seguido o caminho virtual e deveria em breve produzir efeitos desconhecidos. Foi um semestre letivo digno da mais cruel câmara de tortura. O desrespeito por professores é algo doloroso a ponto de os alunos determinarem o que querem estudar. Comentários, olhando no olho da gente, como “essa aula é chata demais!”. Perca tudo, mas não perca o bom humor alguém disse. Eu, me debatendo nas ondas de decepção que me arrastavam para o rés da autoestima, insistia em achar que todas as coisas estavam bem e que tudo iria melhorar, que tudo nem era tão ruim assim. Então, decidi que pode-se perder tudo mas não o último rasgo de dignidade. Quando outro aluno me chamou de velha na sala de aula, vi que estava forçando a barra. Pedi ao Coordenador para me substituir, mas isso não aconteceu. Engoli o amargo da vida inteira e resolvi terminar o período letivo. Não melhorou muita coisa depois disso, e foi pisando dolorosamente sobre cada pedra da escola que continuei a tarefa. E, eis que se avizinha o final do período letivo, Coordenadores já organizam a grade do próximo período, é, pois, a hora certa de dizer o que estava querendo brotar de mim inteira não quero mais ser professoraaaaa!!! Hoje, quando os e-mails dos coordenadores pediam que marcasse minhas disponibilidades, não tive escolha senão avisar que não continuaria. Confesso que o alivio não foi tão grande: outras preocupações substituíram essa. Como vou fazer para pagar as contas, por exemplo. Por Magda Castro Brasília/DF, 16/05/2014

A CULPA PELO MUNDO SER O QUE É

Não tenho insônia; tenho um sono saudável e regular, ao contrário. Me sinto bem dormindo até sete ou oito horas por noite, de dia não, mas esta noite acordei de madrugada, acho que pelas quatro e não consegui mais dormir. Acordei pensando na minha caçula que está com uma diarréia insistente, apesar de que ela tem isso vez ou outra e até foi, recentemente, ao médico ver, mas nada foi conclusivo. Há uns três dias o quadro vem se agravando e ela viaja em algumas horas... Acho que foi meu coração que acordou primeiro pensando nela. O que será que ela tem? Uma pergunta. Há algo que eu possa fazer para ajudar? Outra. E ela não seria capaz de se cuidar? Pergunta de novo. Então, sei que olhei as horas, pela primeira vez nesta madrugada, o celular marcava 5:46. Isso porque já fazia mais de uma hora que havia acordado e rolava de um lado por outro, mas como a preocupação não se dissipava, me levantei e fui verificar se ela tinha febre, se dormia sossegada. Ela acordou, disse que estava bem, fechei o lap top dela para diminuir a luz do quarto e voltei pra cama, que essas madrugadas de verão ainda estão frias demais pro meu gosto e achei que fosse dormir já que tinha ficado mais tranquila. Ilusão, a minha ideia de querer dormir com os pensamentos em redemoinho quase pulando de meus cocurutos. Pensar, pensar: num, noutro, em mim, por fim. Isso porque quebrei mais um dente ontem e daí voltei a pensar, coisa que venho observando muito de perto, nesse processo de desconstrução natural de nossas capacidades. É que reconheço que já pude mais trabalhar de sol a sol; hoje já não é tanto; e a tendência é que isso se reduza mais ainda. É fácil para mim ver esse quadro de futuro: minha mãe está comigo e hoje sou responsável por ela. Não apenas pelo estatuto do idoso ou por determinação judicial, mas porque só restou a ela essa opção. Essa responsabilidade não é oficial: as circunstancias da vida dela a trouxeram de volta à minha vida e parece que ela não sai tão cedo. Em 2012, ela completa 80 anos. Parte dela é forte, as pernas e os braços, por exemplo, tem até uma força poderosa quando ela quer, mas a cabeça não existe mais. Me surpreendi ontem à noite quando ela riu até sobre uma graça que o Toni Ramos fez no filme que começamos a ver no Festival Nacional. Era tarde, já, para ela, mas eu estava tão exausta que não conseguia desgrudar o traseiro do sofá para botá-la na cama. No geral, ela não sabe nem qual é a porta do quarto onde dorme. Saber em que cidade está, com quem fala vez ou outra é querer demais. A gente cuida dela com esmero, seu estado geral é razoável, mas sua capacidade mental, entretanto, é nenhuma e o aspecto físico é avassalador, portanto, vejo a decrepitude de um corpo muito de perto. O constrangimento de lavar e esfregar partes íntimas de um adulto que não eu mesma, de tirar xixi e coco dessa pessoa, cuidar dos machucados, alimentar é um amontoado de lições sem igual: a de que na vida há coisas para nos mostrar o quão nada somos. Não me canso de repetir, para mim mesma, de que minha mãe já não compreende quase nada, que devo tirar as lições que me cabe nessa situação, e assim aceito que levarei o tempo que for necessário para dar a ela o mínimo de decência neste período de preparação para a passagem final. E essa é uma coisa com a qual não nos preocupamos tanto. Acho até porque nada que façamos vai mudar nosso destino, mas principalmente porque o tempo que levamos com nossas picuinhas do dia a dia toma as horas que poderíamos refletir a respeito. Quanto a mim, estou preocupada em me organizar para que quando chegar essa hora de total incapacidade, eu tenha a estrutura mínima que não precise tomar o tempo de meus filhos. Essa organização, entretanto, nunca começa, já que a vida que tenho hoje, ou a morte, é mais forte do que essas minhas elucubrações sem sentido. No devido tempo, tudo se resolverá. Acredito nisso? Não. Acredito que temos sempre algo a fazer, há sempre a parte da vida que depende de nossas atitudes. Por ai é que espero que a vida me dê, no mínimo, o que dei também. Pensar assim quase me dá crise de riso, ridículo seria, dada a hora do dia, apesar de que a cidade já faz barulhos lá fora... é que a vida não é justa e depois que toda essa movimentação aqui de casa passar, posso até sentir falta dela, portanto, devo ficar de olhos bem abertos para avaliar certo tudo o que se passa. Mas a madrugada acordada não é coisa comum, então, enveredei por perguntas um tanto diferentes dessas que faço todo dia. Me obriguei a pensar dolorido sobre a razão de eu ser tão Maria-mole, ou seja, fazer coisas além de minhas obrigações e descobri que tenho a culpa, nos meus pobre ombros, do mundo ser o que é. Pelo meu jeito de ser, gostaria de construir um mundo perfeito, não só para mim, mas para todos. Sinto demais o sofrimento de pessoas, as que estão nas guerras, nos desertos, no meio da violência, doentes. Queria que todos vivessem o shangri-lá, eternamente. Isso é mais pesado quando se trata de meus filhos: quero o melhor para eles, então, sempre, invariavelmente, penso que poderia fazer algo para ajudar. Assim foi que minha filha veio aqui para casa com a família toda, quase ao mesmo tempo que minha mãe, e hoje, nessa madrugada, perdi o sono imaginando o que vou fazer para pagar as contas que vão pelas alturas. Calma! Me digo... o dia amanhecerá em breve, os passarinhos já cantam lá fora, há um raio de luz no friso da persiana fechada... e se eu tiver firmeza, vou sair dessa e voltar ao meu próprio caminho, e ainda vou rir muito disso. Sei, o tempo passa, a vida passa, a noite também, que ouço o ronco do primeiro ônibus fazendo manobras pra parar no ponto. O barulho aumenta, aumentam os piados dos pássaros e a luz que avança pelo quarto antes em penumbra. Se apagar agora o abajur e desligar o computador, talvez ainda consiga cochilar antes que o celular desperte. Ih, é celular ou relógio? Ai, que canseira essa mania de fazer perguntas... Magda R M de Castro Brasília, DF, 04 de janeiro de 2012.