PERSPECTIVA
Chove há dias;
já faz muito tempo que vi tanta chuva emendada. Com pouco, ou nada, a fazer a
respeito, resolvo não me preocupar com as goteiras: me assossego de preocupações
do que não me compete resolver por agora.
É mais uma circunstância para o
momento: não se abre portas para sair à rua e também não se abre janelas:
isolamento maior, impossível. Agora de manhã o sol vem tentando amanhecer, mas tão
incipiente que nem enxuga o chão do terraço; mesmo assim, escuto farra de passarinhos,
e faz frio, e é verão,
ainda.
Nestes meses,
que somados dá quase um ano, depois de arrumar todos os armários, limpar a casa
toda, já taquei o pé no balde muitas vezes, agora estou indo buscar. Recuperar
coisas já cansou, dai passei a recuperar os arquivos de textos que estavam em
backup antigo: entre riso e lágrima, constrangimentos e surpresas em penca, foi
como passar a vida a limpo, melhor, foi um exercício de compreensão do que vivi
até agora.
Se nos
conhecer é exigência para a
vida plena, me reconhecer inteira entre abismos e colinas ensolaradas é dádiva quase insuportável. De palavra
a palavra, montar o quebra-cabeças de mim é ganho inesperado e precioso, e doloroso. Poderia, mas não o fiz, apontar erros: marquei
as decisões corretas, os valores ensinados e aprendidos, a essência de cada
sentimento registrado nos mais diferentes momentos do passado.
Olhar daqui
de onde estou, com o olhar de mim do que sou, traz tão vivamente à luz
personagens de minha história que quase os posso ouvir e sentir. E mais do que
todos esses personagens, quase posso ver a mim mesma percorrendo esse caminho.
E mais do que contentamento pela oportunidade de ter escrito sempre sobre a
vida ao meu redor, sinto gratidão. Sim, sou grata ao descobrir que minha vida em
perspectiva é muito mais que vitória:
é imensurável milagre.
Brasília, DF, 22 de fevereiro de 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário