segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 PERSPECTIVA

Chove há dias; já faz muito tempo que vi tanta chuva emendada. Com pouco, ou nada, a fazer a respeito, resolvo não me preocupar com as goteiras: me assossego de preocupações do que não me compete resolver por agora.

É mais uma circunstância para o momento: não se abre portas para sair à rua e também não se abre janelas: isolamento maior, impossível. Agora de manhã o sol vem tentando amanhecer, mas tão incipiente que nem enxuga o chão do terraço; mesmo assim, escuto farra de passarinhos, e faz frio, e é verão, ainda.

Nestes meses, que somados dá quase um ano, depois de arrumar todos os armários, limpar a casa toda, já taquei o pé no balde muitas vezes, agora estou indo buscar. Recuperar coisas já cansou, dai passei a recuperar os arquivos de textos que estavam em backup antigo: entre riso e lágrima, constrangimentos e surpresas em penca, foi como passar a vida a limpo, melhor, foi um exercício de compreensão do que vivi até agora.

Se nos conhecer é exigência para a vida plena, me reconhecer inteira entre abismos e colinas ensolaradas é dádiva quase insuportável. De palavra a palavra, montar o quebra-cabeças de mim é ganho inesperado e precioso, e doloroso.  Poderia, mas não o fiz, apontar erros: marquei as decisões corretas, os valores ensinados e aprendidos, a essência de cada sentimento registrado nos mais diferentes momentos do passado.

Olhar daqui de onde estou, com o olhar de mim do que sou, traz tão vivamente à luz personagens de minha história que quase os posso ouvir e sentir. E mais do que todos esses personagens, quase posso ver a mim mesma percorrendo esse caminho. E mais do que contentamento pela oportunidade de ter escrito sempre sobre a vida ao meu redor, sinto gratidão. Sim, sou grata ao descobrir que minha vida em perspectiva é muito mais que vitória: é imensurável milagre.

Brasília, DF, 22 de fevereiro de 2021.

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