As lonas coloridas disputam a atenção com as luzes brilhantes e as bandeirolas tremulam à brisa da noite. Com o quarteirão todo tomado, foi preciso impedir o trânsito de uma rua para instalar as carroças e os animais. O vai-e-vem é animado com as pessoas que erguem o rosto para o alto, apontando os trapézios, certamente imaginando as acrobacias que acontecerão ali. Há um burburinho na bilheteria; nos alto-falantes, ouve-se, altíssima de estremecer ossos, a música “Os Milionários”... e tudo é festa.
Numa das cercas laterais, meio na penumbra, uma moça observa o circo. Como mágica do palhaço atrapalhado, ela pensa em outros momentos iguais àquele e até em outros um pouco diferentes, mas num tempo muito antigo. Retoma outros dias, quando menina de tranças e vestido curto, rodopiara no “Dango” do parque de diversões habitualmente instalado ali, no mesmo lugar e sente de novo a emoção de estar voando, livre, poderosa, feliz. Lembra que tudo parecia ser feito de luzes. Recorda que sentia, então, o chamado da vida, para partir e procurar o próprio destino, atender às próprias vontades.
O circo, o símbolo de toda fantasia, a maior prova de liberdade, quem quando jovem não quis partir com ele? Quem, quando tolo, ou menos tolo, não sentiu o coração parar no peito quando o trapézio subia para as alturas e, ao acompanhá-lo, extasiado, não divisou o céu cheio de estrelas e então não acreditou ser assim, simples, o palco para cada um?
A moça continua na sombra, deixando o espírito voar e buscar sensações tão caras, como o primeiro namorado, o primeiro beijo, as descobertas de pequenas delícias como tomar Guaraná com a tampa furada de prego, dançar à beira de fogueiras de São João, ler os romances de M. Delly. Nesse tempo, tão distante, sonhava com um bom emprego e um apartamento só seu. E quem não sonhou sonhos nunca vividos? Quem não guarda para si a confusão de querer e temer ao mesmo tempo?
Em meio aos devaneios, alguém puxa a moça pelo braço que, parecendo meio perdida, se assusta. As imagens evocadas cedem lugar a um rosto pequenino, a um garoto chamando “Mamãe!”
A mulher recobra devagar a consciência e tomando, suavemente, a mão do menino se dirige ao caminho que os levarão para casa. Na avenida, o último olhar para o circo colorido mostra, num rosto jovem e sério, a eterna surpresa da vida, o susto de viver algo muito maior do que pôde imaginar um dia. Aqueles olhos parecem ver com pesar as luzes desaparecerem quando dobram a esquina, como se a dona deles estivesse virando as costas para si mesma e para os sonhos de menina...
Por Magda R M de Castro
Novembro de 1991
quinta-feira, 10 de julho de 2008
A CAVERNA
Ainda não posso sair para a luz: não terminei de vasculhar as grotas da caverna escura onde me meti. É alta, posso caminhar em pé, olhar os veios escuros das paredes, andar dentro, chutar a poeira, pegar uma pedra, atirar longe, ouvir o eco da queda. Estou consciente da amplidão desse poço, de sua profundidade, do que ele guarda. Não estou confortável, mas também nem tão assustada, apenas insisto em ficar, olhar, reconhecer, descobrir.
Ainda tenho que ficar aqui porque não recuperei todas as tralhas que joguei na escuridão: as valiosas não entendidas, as naturais não reconhecidas, os sonhos soterrados, os muitos traços de mim, feios e bonitos, que sejam, mas que me faziam inteira, portanto, verdadeira.
Enterrei caveiras, com medo do que elas significavam. Para mim, sabia que estavam lá e até que sombras delas me acompanharam, mas tentei disfarçar, escondê-las para os outros, por medo. Só que joguei fora junto a espontaneidade, o riso estralado, a inocência, a alma pura e ingênua. É que ser ingênuo nesse mundo de hoje é fato certo para quebrar a cara. E enterrei a infância, o bom e o ruim dela, a minha raiz, meu tipo de caipira criada com lama, capim e manga abóbora. Minha espontaneidade sem classe, escancarada risada de alegria, a história de menina e de jovem, enterrados juntos, na ilusão de me tornar adulta inteligente, competente, forte. Soquei tudo ali, na mesma caverna e é por isso que ela é grande demais, tanto, a ponto de me caber dançando dentro.
É que tive vergonha, muitas vezes, do que eu era, da história que vivi até então, santa ignorância, tão rica história. Achava que para merecer a felicidade suprema de ser amada e aceita, teria que me negar por inteiro. Oh! Tola! Tanto isso se mostrou impossível que agora vasculho cada pedregulho, cada osso enterrado em meio ao pó. Espreito cada possível pedaço jogado, seja bom ou ruim, porque quero me encontrar, quero me conhecer, desvendar esse mistério do que sou. É incógnita a mulher que busco agora: é que esgotei meus recursos; fui jogando fora valores originais, traços sutis e sagrados; fui me enredando em teias de mundo, tão falsas que agora se rompem e me deixam nua, exposta, ao desabrigo, ao vazio do que fiz de mim mesma.
Giro ao redor da caverna, chuto a poeira, as pedras grandes, as pequenas, os gravetos escuros. Apalpo, cavo, caço, avalio, descubro: partes de mim, muitas das quais não me lembrava mais, outras que enterrei sem conhecer, num ritual macabro de me negar, de achar que não servia do que jeito que era.
Ainda não posso emergir, subir à superfície porque não consegui a reconstituição do esqueleto inteiro. Está faltando osso. Perdi muito tempo esperando, na superfície, que alguém me desse a pista de qual modelo deveria seguir; um que garantisse o alcance de todas as expectativas, principalmente a dos outros. Vã espera: não achei ninguém disposto a arcar com tamanha responsabilidade. O lado bom é que hoje isso permite me construir com o que tenho de real e autêntico. E talvez seja essa a lição, afinal.
Mas ainda não posso emergir porque meu rosto está incompleto: não achei todos os cacos que joguei no abismo. Preciso de mais tempo, mais procura, mais escavação. Enquanto isso, me pergunto: qual será a forma de meu rosto inteiro? Quais desses pedaços ainda poderão servir para a construção de uma alma? Quais se deterioram definitivamente? Quais conseguirei salvar? É que o tempo não perdoa. Se vivemos bem tudo o que se nos apresenta na jornada, somos sábios, mas, oh! sina! não há como recuperar tudo. Mesmo que ache o mais ínfimo fragmento jogado e negado por anos a fio, a reconstrução deixará sinais. Me resta aprender a viver com eles de agora em diante.
É por isso que a cada pedaço recuperado, creio mais que só a mim compete escolher os detalhes, ou melhor, que apenas por mim devo fazê-lo. Para isso preciso de coragem, cavo à procura dela também, para mostrar meu real aspecto, não importa qual seja.
Desconfio, em razão de, ainda, não saber qual será a nova forma desse rosto, que precisarei de muita força para mostrá-lo na superfície. Mas estou avançando, cavando e avançando. Entretanto, mesmo sabendo que ainda não dá para subir à luz, sinto que ela se aproxima: vejo que partes da caverna já estão bem claras e nítidas. Apesar de ainda não estar toda reconstruída, já posso perceber trêmulo contorno de mim. Já há luz suficiente para que perceba que no rosto ainda está faltando uma atitude aqui, uma decisão ali.
Falta, ainda, sobretudo, a coragem de encarar os vermes que fazem parte da escuridão, de ver as deformidades de cada pedaço enterrado, as rachaduras e marcas que estarão em mim para sempre. Não só as que me foram provocadas, mas, também, as marcas que gravei nos outros. É. Não se passa ao largo das pessoas sem as sentir, tocar, provocar reações. Todos marcamos nossa passagem. Mesmo com boas intenções, e vejo nas sombras desse poço que nem sempre tudo se deu assim, passei junto a pessoas e as sacudi com minha energia. Elas me sentiram mesmo que como fogo fátuo, e de alguma forma, seus mundos se alterarem por causa disso. Tenho que me responsabilizar, portanto, e avaliar isso também.
Assim, mesmo que ainda não consiga encarar a luz da verdade total, o tanto que já reconstitui de mim traz certo alívio, alguma esperança, um pouco de fé. Serenidade seria pedir demais, devo ter paciência. Mas é também outro espectro que se desenha devagar. Talvez seja esse o sentido dessa jornada noite adentro: encontrar a serenidade. Talvez seja o motivo de ainda teimar em juntar pedaços e colar cacos.
É porque ainda não estou pronta. Mas desconfio, como de muitas outras coisas, que estou chegando perto. Desconfio que se, logo, eu mesma não subir esse degrau que finalmente me levará ao dia, esse monte de ossos que juntei vai me expulsar daqui. Desconfio, apenas desconfio. Certeza tenho de uma coisa: qualquer que seja o meu caminho daqui em diante, qualquer que seja o rosto que mostrar, seja perfeito ou remendado, será o mais verdadeiro de todos os tempos. E farão parte dele todos os meus abismos profundos e todas as minhas colinas iluminadas e, com licença, não voltarei a jogar à caverna o mais ínfimo pedaço de nenhum deles. Eles são o que sou e nessa altura da vida não há mais como me negar.
Magda R M de Castro
Brasília, 28 de abril de 2008.
Ainda tenho que ficar aqui porque não recuperei todas as tralhas que joguei na escuridão: as valiosas não entendidas, as naturais não reconhecidas, os sonhos soterrados, os muitos traços de mim, feios e bonitos, que sejam, mas que me faziam inteira, portanto, verdadeira.
Enterrei caveiras, com medo do que elas significavam. Para mim, sabia que estavam lá e até que sombras delas me acompanharam, mas tentei disfarçar, escondê-las para os outros, por medo. Só que joguei fora junto a espontaneidade, o riso estralado, a inocência, a alma pura e ingênua. É que ser ingênuo nesse mundo de hoje é fato certo para quebrar a cara. E enterrei a infância, o bom e o ruim dela, a minha raiz, meu tipo de caipira criada com lama, capim e manga abóbora. Minha espontaneidade sem classe, escancarada risada de alegria, a história de menina e de jovem, enterrados juntos, na ilusão de me tornar adulta inteligente, competente, forte. Soquei tudo ali, na mesma caverna e é por isso que ela é grande demais, tanto, a ponto de me caber dançando dentro.
É que tive vergonha, muitas vezes, do que eu era, da história que vivi até então, santa ignorância, tão rica história. Achava que para merecer a felicidade suprema de ser amada e aceita, teria que me negar por inteiro. Oh! Tola! Tanto isso se mostrou impossível que agora vasculho cada pedregulho, cada osso enterrado em meio ao pó. Espreito cada possível pedaço jogado, seja bom ou ruim, porque quero me encontrar, quero me conhecer, desvendar esse mistério do que sou. É incógnita a mulher que busco agora: é que esgotei meus recursos; fui jogando fora valores originais, traços sutis e sagrados; fui me enredando em teias de mundo, tão falsas que agora se rompem e me deixam nua, exposta, ao desabrigo, ao vazio do que fiz de mim mesma.
Giro ao redor da caverna, chuto a poeira, as pedras grandes, as pequenas, os gravetos escuros. Apalpo, cavo, caço, avalio, descubro: partes de mim, muitas das quais não me lembrava mais, outras que enterrei sem conhecer, num ritual macabro de me negar, de achar que não servia do que jeito que era.
Ainda não posso emergir, subir à superfície porque não consegui a reconstituição do esqueleto inteiro. Está faltando osso. Perdi muito tempo esperando, na superfície, que alguém me desse a pista de qual modelo deveria seguir; um que garantisse o alcance de todas as expectativas, principalmente a dos outros. Vã espera: não achei ninguém disposto a arcar com tamanha responsabilidade. O lado bom é que hoje isso permite me construir com o que tenho de real e autêntico. E talvez seja essa a lição, afinal.
Mas ainda não posso emergir porque meu rosto está incompleto: não achei todos os cacos que joguei no abismo. Preciso de mais tempo, mais procura, mais escavação. Enquanto isso, me pergunto: qual será a forma de meu rosto inteiro? Quais desses pedaços ainda poderão servir para a construção de uma alma? Quais se deterioram definitivamente? Quais conseguirei salvar? É que o tempo não perdoa. Se vivemos bem tudo o que se nos apresenta na jornada, somos sábios, mas, oh! sina! não há como recuperar tudo. Mesmo que ache o mais ínfimo fragmento jogado e negado por anos a fio, a reconstrução deixará sinais. Me resta aprender a viver com eles de agora em diante.
É por isso que a cada pedaço recuperado, creio mais que só a mim compete escolher os detalhes, ou melhor, que apenas por mim devo fazê-lo. Para isso preciso de coragem, cavo à procura dela também, para mostrar meu real aspecto, não importa qual seja.
Desconfio, em razão de, ainda, não saber qual será a nova forma desse rosto, que precisarei de muita força para mostrá-lo na superfície. Mas estou avançando, cavando e avançando. Entretanto, mesmo sabendo que ainda não dá para subir à luz, sinto que ela se aproxima: vejo que partes da caverna já estão bem claras e nítidas. Apesar de ainda não estar toda reconstruída, já posso perceber trêmulo contorno de mim. Já há luz suficiente para que perceba que no rosto ainda está faltando uma atitude aqui, uma decisão ali.
Falta, ainda, sobretudo, a coragem de encarar os vermes que fazem parte da escuridão, de ver as deformidades de cada pedaço enterrado, as rachaduras e marcas que estarão em mim para sempre. Não só as que me foram provocadas, mas, também, as marcas que gravei nos outros. É. Não se passa ao largo das pessoas sem as sentir, tocar, provocar reações. Todos marcamos nossa passagem. Mesmo com boas intenções, e vejo nas sombras desse poço que nem sempre tudo se deu assim, passei junto a pessoas e as sacudi com minha energia. Elas me sentiram mesmo que como fogo fátuo, e de alguma forma, seus mundos se alterarem por causa disso. Tenho que me responsabilizar, portanto, e avaliar isso também.
Assim, mesmo que ainda não consiga encarar a luz da verdade total, o tanto que já reconstitui de mim traz certo alívio, alguma esperança, um pouco de fé. Serenidade seria pedir demais, devo ter paciência. Mas é também outro espectro que se desenha devagar. Talvez seja esse o sentido dessa jornada noite adentro: encontrar a serenidade. Talvez seja o motivo de ainda teimar em juntar pedaços e colar cacos.
É porque ainda não estou pronta. Mas desconfio, como de muitas outras coisas, que estou chegando perto. Desconfio que se, logo, eu mesma não subir esse degrau que finalmente me levará ao dia, esse monte de ossos que juntei vai me expulsar daqui. Desconfio, apenas desconfio. Certeza tenho de uma coisa: qualquer que seja o meu caminho daqui em diante, qualquer que seja o rosto que mostrar, seja perfeito ou remendado, será o mais verdadeiro de todos os tempos. E farão parte dele todos os meus abismos profundos e todas as minhas colinas iluminadas e, com licença, não voltarei a jogar à caverna o mais ínfimo pedaço de nenhum deles. Eles são o que sou e nessa altura da vida não há mais como me negar.
Magda R M de Castro
Brasília, 28 de abril de 2008.
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