sábado, 6 de novembro de 2010

ENTARDECER

Uma coisa é você imaginar.... montar imagens ... que talvez nunca se realizem. Outra coisa é você tocar o fato, ver, passar perto, apalpar, participar do que está acontecendo, mesmo que seja algo que você jamais quis que acontecesse. Seu coração sempre soube, a razão muito mais. O fato era assim, mas era só imaginação, poderia nunca vir a ser uma verdade. É diferente demais quando é um fato, que você vê, realiza, acompanha...
Um sábado de tarde, quase crepúsculo. As luzes se misturavam entre as dos postes e as do por do sol. Podia-se ainda ver as pessoas ao longe, a luz era suficiente ainda. Vi o movimento de um homem despreocupado – a camisa de listras brancas sobre fundo azul eu conhecia... ajudei a escolher... faz muito tempo. Anos... o movimento, um homem de cabelos brancos, dá uns dois passos... sai da beirada do telhado no boteco perto do supermercado onde eu fazia compras com meu neto e minha incansável amiga: à noite minhas filhas, os namorados e amigos iriam assistir a filmes. Eu comprava milho de pipoca, chás em promoção, cinco long necks de cerveja – para acabar com aquele queijo gostoso que durava há duas semanas. Me distrai com um rapaz vendendo abacaxis, provei um pedaço, o rapaz um moreno bonito arreganhava os dentes tentando me vender as frutas. Estava boa, mas eu já tinha gastado tanto dinheiro... “Não, obrigada!” me virei para seguir a vida, as compras já guardadas no porta-malas pela amiga e o neto. Ela fez o comentário. “Fulano e Sicrano estão ali ...” “Onde? Eles viram a gente?” “Não...”
Olhei, foi aí que vi os passos do homem despreocupado que alongando os braços fortes e peludos em direção ao balcão do boteco deixou algo com o atendente. Não vi o que era, não vejo bem à distância. Aliás, vejo muito pouco de qualquer distância. Eu sabia que estava com a chave do carro na mão... sabia que tinha algo a fazer... titubeei por alguns segundos... vi os cabelos brancos se afastarem... e eu me obriguei a abrir o resto do carro para meus acompanhantes entrarem. Íamos para casa...
Meu coração estava em algum lugar que não sei ainda agora onde. Eu respirava, mas não tinha razão nenhuma para isso. Me obriguei a fazer o que tinha que fazer: entrar no carro, dirigir para casa... poderia ter seguido o caminho à direita, virado na rua de cima, mas então, vi. O conhecido homem de cabelos grisalhos de camisa listrada de azul e branco segurava algo pela mão. Ele caminhava tranqüilo como se a rua lhe pertencesse e não parecia dar muita importância a muita coisa além daquele passeio numa direção qualquer. Eu poderia ter pego a rua de cima, mas ao contrário, dirigi o volante, concentradamente, determinada, para a esquerda.
Seguia um casal caminhando devagar como se tudo o que fosse esperado no mundo fosse aquela caminhada sob o por do sol.... tudo o mais não parecia existir para eles. Tanto que andavam no meio da rua, como se a segurança que sentiam fosse tão poderosa que nada os afligia ali, no asfalto cujo negrume já anunciava a noite próxima. E o que oferecia a noite? O que será que fariam ... juntos... naquela noite? Num átimo de segundos pensei: “Ah, desta vez ela veio... ele vai todo final de semana e no único que não, ela vem. É sério assim...num relâmpago imaginei o pequeno apartamento ali tão perto onde um dia habitaram outras pessoas... mas nele hoje se regalam um homem grisalho e uma mulher que vem do interior. ..”Ah, tão irônica a vida. Nem se iguala ao filme de mais fértil imaginação! Coisas como essas deviam ganhar prêmios de “melhor roteiro original”. Ah, que não me enganem nunca dizendo ser a vida justa!
Quando virei o carro à esquerda, me coloquei atrás do casal. Queria, de alguma forma, chegar bem perto. Para ter certeza; queria provas. Queria esmagar minhas esperanças, quase ri pensando assim, ou o que quer que pudesse ser assim chamado. Queria eliminar qualquer sentimento remotamente parecido, esfregar na minha própria cara aquilo que falei um dia ... que a vida nos levaria por caminhos incontroláveis. E queria ver de perto, daí avancei devagar, o carro na banguela, em silêncio, o mundo parecendo paralisado. Passei pertinho dos dois, buzinei de leve, repeti, daí o homem viu, se virou, pareceu indiferentemente surpreso e balbuciou um “Oh!! Olá,...” joguei uma mão espalmada em sua direção como se lhe jogando um monte de beijos. Não olhei para a mulher... era algo indefinido naquele cenário... me lembro de ter visto alguém segurando aquela mão de homem com total direito de propriedade... parecia usar uma blusa branca, poderia ser uma túnica amarrada na cintura. Parecia ter cabelos escuros... a única certeza que tenho daquele ser era que talvez pela luz da tarde parecia muito à vontade percorrendo aquele caminho, possivelmente conhecido. E aquele entrelaçar de mãos era antigo, nada recente, nem inaugural... Corriqueiro, familiar.
Vir para casa não pareceu mais real do que aquela miragem; o caminho, as árvores, as pessoas, tomaram um colorido espectral. Tudo parecia em sépia como se sombras, memórias vagas, distâncias. Tirar as compras do carro, organizar na geladeira pareceram ações tão surreais como se eu estivesse vivendo o Avatar.
Quando liguei para a filha mais velha, longe, como havia combinado, lhe contei o que tinha visto como se tivesse sonhado. Algo estranho, eu disse, fora do lugar. Inacreditável, apesar de saber que era o natural. Natural.
O que é natural? Você amar alguém tanto e por tanto tempo e tão eternamente que um dia você se senta na varanda com uma garota e lhe anuncia que está pedindo para o pai ir embora porque ele não sabia o valor que a família tinha? Foi isso o que disse: que não conseguia sentir nele que dava valor à família ... ah, mas isso já faz tanto tempo; sim, muito tempo!
Mas se isto está acontecendo agora, se essa visão atravessou meu caminho assim, essa conversa na varanda também aconteceu e tudo que restou foi que prometi para minha querida filha morena que se o pai dela um dia dissesse que nós éramos a família dele e que por nós estaria disposto a lutar contra qualquer coisa; se dissesse que queria viver com a gente para sempre, que éramos importantes para ele, então, poderia voltar sem medo.
É que ele parecia tão indiferente a tudo que vê-lo daquele jeito era doloroso demais! Preferia vê-lo longe tentando achar o próprio caminho do que ali perto de nós, perto de mim, claro, porque das meninas ele nunca se apartou tanto. Ah, gostaria que isso fosse verdade! Ah, que pelo menos isso fosse verdadeiro: que ele não se afastaria das meninas! Só que a vida é muito mais forte que isso; pensar que não seria tentar tampar as estrelas com véus!
Ah, nem o maior amor do mundo poderia vencer a distância, o afastamento de todos os dias, seguidamente. Não! Eu mesma escrevi um dia que a força da vida é muito maior do que nossos vãos sentimentos de esperança! Ah, como queria que ele estivesse, por elas, ao redor, sempre...
Como poderia? Passar uma manhã, arranhar uma tarde para xícara rápida de café, se sentar na mesma cadeira que ainda está desocupada por algum minuto seria presença? Como se poderia nominar, então, as pequenas coisas diárias que tão sem importância, são, afinal, as mais importantes? O "boa noite" ou o "bom dia" de todos os dias?
Ah, nem sei dizer quantas vezes me perguntei o que faria se as coisas fossem diferentes! Ainda o amo? O amei um dia? Qual é o real sentimento que tenho por ele? São perguntas que martelam minha cabeça dura e que parece só meu coração conseguirá responder um dia.
Então, mesmo que a conversa na varanda tenha sido prova de muito amor, ninguém poderia saber o que o futuro traria, ou o tamanho daquela decisão. É, apesar disso, é quase engraçado que há poucos dias, tenha pensado algo do tipo: "e se ele chegasse de repente e pedisse para voltar?" Respondi a mim mesma, rindo, imaginando a cena ao dizer a ele, serenamente: “Por que demorou tanto?”...
Agora, depois que tentei me distrair com um filme, com a cerveja, em conversa com meu filho, vejo que essa é pergunta que jamais será feita; e que não haveria como ser diferente... penso com o coração enquanto olho minha imagem no espelho.
Carinhosamente apalpo os sulcos do rosto e do pescoço, passo a mão pelos cabelos enluarados, suspiro: "não sou mais uma menina...e aquela moça parecia tão mais jovem!" Esse era o sonho dele, alguém jovem e bonita... "será que ela é bonita?". Procuro a escova de dentes, empurro os pensamentos até a cama, um conforto branco em noite de véspera de verão... tanta coisa boa para acontecer. Seguir em frente, um dia depois do outro. Uma lágrima, mas que seja discreta porque ninguém mais espera que eu chore... nem eu. Passou esse tempo e "você não achou que a vida fosse sempre agradar, achou?"
Vestindo o leve pijama verde ainda insito: "é que a vida não é como imaginamos; a vida é como ela quer ser..." "Paciência", respondo aos meus botões e teimosamente resisto: continuarei a viver mesmo assim, mesmo que não seja fácil, mesmo que doa, mesmo que tenha que me arrastar em alguns momentos porque sei, disso tenho certeza, tudo se acabará um dia, então, mesmo que não seja a minha verdade, algo real deve existir. Também para mim deve haver, em algum lugar, uma mão para segurar num por de sol.
Além do mais, ainda existo, ainda respiro, mesmo que não seja perfeita, mesmo que tropegamente, seguirei a minha estrada do jeito melhor que puder fazer. E, mesmo que eu não espere, amanhã será domingo. "E, olha, moça, já faz muito tempo, tempo demais, aliás, que esse homem é totalmente indiferente a você! Cuide-se, boneca, porque ele vive a própria vida e nem se lembra que você existe! Vê se enxerga isso de uma vez por todas!"... repito, e repito, enquanto desligo a luz mortiça do pequeno abajur de cabeceira.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 07 de novembro de 2010.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

É MADRUGADA

Um dia eu consegui passar a noite em claro. Foi nos tempos de menina desgrenhada – não que isso tenha mudado hoje em dia – mas no tempo em que eu era bem magrinha, um palito, mas parecia que a energia do universo estava todinha concentrada em meus cambitos; podia pular e dançar a noite toda. Não é de faz de conta essa história não. Um dia até amanheci numa fazenda. Pobre o lugar, me lembro sentada num tronco, riscando a poeira do terreiro com um graveto e me aquecendo nas últimas chamas de uma fogueira. Tinha gente perto de mim, nenhuma mulher se é que isso tem, ou tinha, alguma importância para mim. Nenhuma tinha; nem tem hoje.
É assim, agora, madrugada; madrugada no meio de dois dias de muito trabalho. Trabalho avançando pela madrugada, diferença grande de diversão; e nem de longe a energia ou disposição daqueles tempos. Hoje o que me acorda até tais horas que o rádio anuncia de “madrugada especial” é a força dos compromissos. Tenho a casa para sustentar; tenho os alunos da faculdade, a Funai; minha palavra e a teimosia de enfrentar qualquer coisa para cumpri-la depois que a boto a cavalo pelas pradarias aos ventos. É que tem também as contas, que nem são mais em fim de mês como se dizia antigamente, na verdade, durante todo o mês: é, todos os meses, as contas batem à porta.
Mas é de madrugada que tenho esse tempinho para me confessar. Já disse que o faço sempre com esse teclado porque qualquer pessoa que me ouvisse fundamente hoje em dia me tacharia de louca, desvairada, imatura ou coisas que não lembro agora. Trabalhar virou obsessão porque não consigo fazer nenhuma outra coisa. Dormir também é bom mas nunca tenho tempo suficiente então uma madrugada como essa é quase de revolta que teimo em não ir pra cama mesmo depois de ter despachado algumas dezenas de mensagens, depois de ter corrigido nem sei quantos trabalhos, elaborado prova, checado compromissos... e observando o mundo ao redor.
Minha caçula viajou para um grande evento musical em São Paulo, foram três dias de suspensão tanta a preocupação com ela no mundo e mais quatro jovens... meu filho anda agarrado aos livros... o mais novo que o mais velho parece viver noutro sistema solar apesar de ter um lado meu colado nele, naquele riso iluminado que nunca mais tive a felicidade de ver... e do qual nem posso me lembrar muito algumas coisas na vida são dolorosamente inexplicáveis como se quisessem forçar a gente a andar de joelhos... mas também quem mandou achar que podia tudo... não; não é mesmo uma pergunta é um tapa na cara. "Você achava que podia, confessa!! Agora é uma ordem! Para com isso!". De cima de meu orgulho idiota pensei um dia poder tudo...
Mas é madrugada mesmo, de, sei que será, um dia glorioso como costumo dizer já que a chuva chegou e o verde de Brasília também se esfrega na impaciência da seca. "Tome-lhe distraída!! Vim provar que a vida gira mesmo que não possa fazer tudo como queria".
Então, eis-me aqui, olhos ardentes, me lembrando do espetáculo dos flamboyants que agora enfeitam os canteiros de Brasília. É essa ciranda de flores o ano todo e eu procurando ansiosa por cada uma delas como se fossem o bálsamo pra todos os meus medos. Ah, as flores, eis que algo lindo existe! Só que essas são quase dolorosas agora porque plantei uma carreira dessa espécie num lindo canto do mundo que também parece sonho hoje... e que nunca mais terei a felicidade de botar os pés, porque não posso voltar lá... não teria forças para sair... porque talvez eu sairia em disparada me batendo nos pés de jatobás, nos pés de baru, nos jenipapeiros... ah! Os flamboyants incendiando a minha saudade.
Sou tão doida que todo dia passo perto de uma árvore linda que dá uma flor branca em cinco pétalas com pistilos amarelos e cheirosa que é uma beleza. Todo dia pego uma flor do chão, perto da calçada onde passo vindo do estacionamento para entrar na Funai e levo para minha mesa. Levo ela assim disfarçada pela bolsa prá ninguém pensar que sou ridícula com essas minhas paixões tão grandes quanto inúteis. Passo admirando a cachopa de flores no meio das folhas verdes e falando baixinho, segredo para a dona da exuberância: “você é linda demais...” Sou doida não mas de que adianta gostar tanto de flores? E isso é agora, depois de velha? Não gente também não é assim! Gosto de flores a vida toda desde que li aquela fotonovela na Grande Hotel da minha avó: Rosas Vermelhas para Bárbara.
No meu aniversário do ano passado ganhei um buquê lindo. Só que foi aquele buquê de adeus, sabe? Veio para pagar algumas pendências que poderiam ter ficado, mas, sinceramente, não ficou nada depois daquelas belíssimas rosas vermelhas: coisa de fotonovela. De vez em quando me lembro de um rosto simpático, de uma mão roliça de unhas tratadas. São aqueles sonhos que passam pela gente e a gente nem percebe que é real tão bons e inacreditáveis são.
Observei isso pensando nas minhas aventuras: a gente não percebe o tamanho da coisa quando ela é grande demais então vamos assimilando devagar, devagar, até ... tão devagar que não percebemos de perto só à distância.
Então, é madrugada. As músicas não são de piedade não, falam de amor, pele, fins, sonhos... e por aí afora. Tantas coisas. O bom é o silêncio que posso sentir depois da música. Raro momento esse de parada e quietude; de deixar correr o rio, ver a água doçura fazer o barulhinho ao transpor a pedra pequena. Um ruído de paz disfarçada, inatingível, de eternidade, a água transpondo a pedra. Tantas águas ainda correrão... talvez... quantas para mim ainda? Pode ser a qualquer momento não é? Pode ser a qualquer momento...
Mesmo sabendo disso gostaria de poder fazer viver esses sonhos que tenho... tão bonitos... e queria poder dar forças às minhas preciosidades... queria muito ser a solução para as dificuldades de um povo, minhas meninas tão amadas, meus garotos tão queridos e admirados. Queria tanto ...mas essa madrugada, sabe como é, não parece cooperar muito. Tenho pensado o quão triste e frustrante é ver a morte chegar, ou nem ver, e ficar esse tantão de coisa que ainda poderia ser feita.
É por isso que trabalho até a madrugada: o tempo escoa depressa demais, chego a contar os minutos. Mato um leão todo dia, vou avançando mesmo aos pedaços, mesmo lacrimejante, trôpega, insisto, empurro os entulhos para o lado, ignoro, desvio o olhar desse lado, me fixo em frente, em frente, para o sol que vem vindo, para a frente. A impressão que tenho é que vou deixando pedras fora do lugar, pedaços de tudo o quanto há espalhados, corações despedaçados. Não, isso não, pretensão. Ninguém sofre por mim desse tanto; acho que é porque o meu sofre vendo quem sofre ... por outras razões.
Minha filha morena está sofrendo – e calada que nem uma rocha, ou um portão de ferro. Não, acho que ela é um carvalho daqueles enormes que sombreiam o mundo inteiro. Sei que minha loira sofre. Tem problemas prá caramba, mas está tão longe, não vejo, acompanho com meu coração sangrando uma trilha seca até ela. Até aqueles cachos de ouro, até seus olhos inocentes de menina-mulher guerreira que se surpreende tanto a vida tem. Tanto.
E sei que minha caçula sofre. Luta com seus abismos a cada minuto, se agarra a uma pílula colorida, se veste de branco, abre as cortinas, se aferra a uma esperança esmaecida, remota, mas também teima em olhar para a frente; também sai chutando pedregulhos, avançando dois passos, recuando um e meio. Tropeça, se levanta, se agarra às mãos estendidas, pede socorro a quem não ouve seu silêncio. Nossa babá se enrosca em seu mundo e se agarra às próprias sombras... se tocar, derrete.
Assim, vamos, essas mulheres e esses homens vivos, conscientes, inteligentes, trabalhadores, apaixonados, esperançosos. É incrível como ainda temos fé. Contra todas as possibilidades e prognósticos, insistimos em esperar pelo melhor. Bem, esperar, não, estamos lutando com tudo o que temos para conseguir o que queremos.
É, enfim, tempo de pensar: o que queremos? O que quer cada membro dessa família linda que se arranha nas paredes, que mergulha na lama, que se arrasta ao longo de muros e penhascos? Aonde vamos, nós todos que nos amamos mas que não temos como estender a mão para tirar da alma de quem amamos esses negrumes? Que paródia é essa que nos obriga, nos oprime, nos arrasta, da qual sabemos tudo e nem mesmo nada? Como é que ainda temos forças para prosseguir?
É madrugada...

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 3:55’ de 19 de outubro de 2010

domingo, 12 de setembro de 2010

EM PASSO DE DANÇA...

Às vezes penso que se pararmos o que estivermos fazendo, especificamente quando as emoções mudam, ficaríamos surpresos com o número delas. Se acordo cedinho, sonolenta, penso devagar, indecisa. Se acordo depois de muitas horas de sono, me sinto confortável, descansada, com um pouquinho de fome, e preguiça. Em geral, tenho a sensação de que estou cansada, talvez por já vir trabalhando há meses sem férias: às vezes fica dificil pegar no tranco, mas estou fazendo o que faço para sustentar a vida que escolhi viver. Me pergunto o quanto mais estaria disposta para continuar a marcha da mudança.
Bem, de emoções, voltando ao começo, tenho muitas, uma atrás da outra. Como estava dizendo: começam a me atacar, essas emoções borbulhantes, logo que acordo: preocupação, por coisas em geral, é a primeira que me pega. Depois, vem a urgência do dever, aquela força empurrando escada abaixo ainda sem terminar de passar o batom, ainda com o cabelo desgrenhado, o ziper aberto, a bolsa numa alça só ... me jogo porta afora... não sem antes beijar quem está acordado, fazer o sinal da cruz ao pé da Santinha, gritar um tiau já de dentro do carro de vidros fechados e já prestando atenção na rua, saindo devagar-correndo pelo portão ... e lá vem o dia.
O caminho para o trabalho está escrito no para-brisas do carro: cada curva, cada preferencial, os minutos em cada pista, em qual fico nessa altura, de qual devo sair agora para não pegar o trânsito. Até aqui de quantas emoções tratei? Preguiça, ansiedade, preocupação, fé, carinho, cuidado, atenção... hum. E o dia nem começou propriamente. Mas essas são emoções que circulam pela minha órbita sem que tenha consciência plena delas.
Então, quando tenho a chance de reparar que as estou sentindo, que elas estão muito vivas em mim, é que parecem todas serem mais fortes do que se imagina.
Nesse sábado passado, que como os demais havia tanta tarefa para cumprir, depois de uma semana de redemoinhos e montanhas e, confesso reticente pela emoção que dá pensar assim, também de abismos, esse sábado à tarde funcionou como canoa que seguramente me levaria a enseada calma, ensolarada. Ah, esses sábados, quando me encontro com amigas para jogar baralho, são ótimos!
Bem, isso não quer dizer que a sexta-feira à noite, bem mais à noite, depois que cheguei da faculdade, o que aconteceu depois da repartição pública, essa que exige dedicação total, não tenha sido especial. Aliás, foi especial porque a filha caçula ouviu um desabafo meu ao telefone sobre problemas nos dois empregos – e até estava me perguntando agorinha como é que se pode travar tantas lutas ao mesmo tempo – e daí quis me consolar: preparou um fondue de frutas, queijos e chocolate, uma festa.
Além da comida farta e saborosa, o tempero especial era estarmos juntos, ao redor do balcão da cozinha. Sabíamos, nesse momento, podíamos sentir a emoção da felicidade plena fazer parte de nossos corações. Num momento como esse, de comunhão, de riso, de liberdade, tanta cor até, é que se percebe, melhor, até se toca a felicidade pura. Entre azulejos amarelados, a alegria fazia parte de nós, e sabíamos, melhor, sentíamos isso. Reconhecemos a alegria, a felicidade, o prazer, como se a felicidade pudesse ser palpada.
E não era porque tudo era perfeito que estávamos felizes, aliás, havia até uma tristeza, descontentamento forte: o carro do namorado da caçula havia sido arrombado no minuto em que ele foi comprar ingressos de teatro. Roubaram guitarra, lap top, roupas, tênis de marca equivalendo a prejuízo material de cerca de sete mil reais. Isso sem contar que os arquivos dele eram as fotos que vem colecionando, o book da namorada, letras e arranjos de músicas nas quais os dois e um dos meus filhos vêm trabalhando.
Mesmo assim, depois do susto, depois do boletim na delegacia, depois da filha morena também voltar do trabalho, nos reunimos para o fondue. E, de quantas emoções falei aqui, só as dessa noite de sexta-feira? Alegria, felicidade, desencanto, medo, susto, superação, esforço, resiliência, gula, amor, liberdade, prazer.
Então, chega o sábado. Não dormimos tarde na sexta porque depois de consumido todo o fondue, o sono bateu em todo mundo. E queríamos aproveitar o sábado de dia.
Esse amanheceu glorioso. E não poderia ser diferente esse final de inverno espetacular que está acontecendo em Brasília. É de tirar o fôlego esse tempo desértico, de capim amarelo, de árvores enormes ostentando galhos desfolhados como espectros em meio à neblina. Seca, a de Brasília, confunde a gente o tempo todo com a fumaça das imprestáveis queimadas. Não é uma neblina cinzenta: é amarelada, densa, circular. Até onde o olhar alcança, o céu se fantasia. Não é bonito, mas a gente sabe que é por pouco tempo, que o azul refrescante está por trás daquilo e que logo poderá ser visto emoldurando os modernos monumentos. Mas eis que não são só galhos e gramados desnutridos o inverno aqui: há flores. E a cidade só não é um jardim exuberante por causa de seus espaços quilométricos: precisa de muita árvore para preencher os Eixos, as alamedas entre as quadras, os infinitos na Esplanada, os jardins temáticos de cada avenida, de cada álea dos Parques, da beira do Lago, dos clubes.
E mesmo esparsas, as flores desfilam por toda parte. As primeiras são as das paineiras: rosa claro ou rosa escuro, escancaram os galhos subindo cumeeiras. Depois dessas, vêm os bougainvilles, ou melhor, as primaveras, mesmo ainda sendo inverno no calendário. Menina, tem cada um maravilhoso arrastando pelos canteiros que até dá susto na gente. Meu coração costuma ficar menor talvez para bater com mais força a cada cachopa que descubro nessas retas da Capital. No final do Eixão sentido Sul, a alameda é de uma espécie de arbusto com galhos parecendo tentáculos longos que, na ponta, florescem bulbos rosa, brancos ou vermelhos. Numa tarde de trânsito muito devagar tentei contar quantos arbustos floridos havia, bem pertinho da janela do carro poderia tocá-los, mas me perdi na contagem tantos eram.
Seguindo o desfile de flores, depois das paineiras vêm os ipês: rosa claro, rosa escuro, abrindo os braços em flores, em dádiva aos seus admiradores. O espetacular ipê branco vem depois, mas é muito raro e encontrar um desses é como encontrar tesouro surpreendente. Depois, vêm as patas de vaca: flores brancas, azuladas, rosas forte ou rosas claro. Seguindo as “patas”, os ipês amarelos; alguns desses são tão exuberantes que a gente pensa que o céu veio para a terra, definitivamente. Como é possível que nesse mundo tão seco, tão pálido, e ainda antes de qualquer gota de chuva, uma árvore daquele tamanho floresça tão completamente se revestindo de ouro? Elegantes troncos se esgueirando soberanamente para a imensidão, vestindo gala e pompa. Não tenho como comparar tanta exuberância. Cachoeira cantarolando? Uma montanha azul? As ondas do mar dançando? Talvez...
É esse o inverno de Brasília. Seco, frio, pálido em grande parte, mas a sua beleza escapa às suas agruras e nos dá a fé suficiente de que novos e melhores tempos virão. E foi assim que começou o sábado. E com pessoas se espreguiçando satisfeitas e rumando para a mesa do café da manhã. Nem vou relacionar aqui o que tinha nessa mesa, mas a invitável conversa foi sobre o roubo da noite anterior, sobre o corte de cabelo da caçula, sobre compra dos ingredientes para a salada do almoço, sobre festas de aniversário. Também falamos com a filha mais velha, convidando-a a vir a Brasília com a família para essas festas.
À tarde, tinha o tal compromisso com as amigas e o baralho. Assim, a manhã passou muito depressa com as lidas da casa, o quarto p'ra ajeitar, sapatos para limpar, roupas para guardar e os trabalhos de alunos para corrigir pululando nas caixas de e-mail. A salada não estava pronta quando deu a hora de sair e minha morena encheu uma tigela colorida para mim. Não comi no caminho, mas quando cheguei à casa de minha amiga. Lhe entreguei o queijo minas que havia comprado pra ela, pedi que guardasse dois para as outras meninas que ainda não haviam chegado e fui comer a salada. As “damas” não demoraram que até terminei a salada já com as cartas me esperando sobre a mesa.
Conversas, jogo, brincadeiras, e música. O primeiro disco foi com músicas francesas; daquelas que ouvia quando adolescente no interior de Minas Gerais. Charles Aznavour, Piaf e outros. “She” foi a primeira música... a sala pequena fazia as paredes claras vibrarem. E como buraco é um jogo no qual não se pode falar, a música foi envolvendo, me transportando para outros lugares. Ahm... interessante, me vi conjeturando, não são lugares de passado os que começaram a se desenhar na minha imaginação. Deus, descobri perplexa, não estou sentido nada em relação ao passado... Deus, essa quentura no peito, esse acelerar firme do meu coração é pelo que está vindo aí, é pelo que tem chance de acontecer ... Que surpresa boa descobrir tal sentimento. Bom mesmo, de libertação. Acho até que essa sensação já rondava, mas não tinha parado para senti-la.
Ah, que delícia de calor no meu peito. E aí a imaginação vai automaticamente circulando entre os prós e os contras tentando justificar aquela coisa boa de sentir. Faço impiedosamente as contas do quanto de vida me resta: 54 anos não é 20! O corpo cansa.... mas não consigo evitar esse galope... e, no suceder das músicas, a cada uma, meu pobre coração mudando. Essa é uma valsa, a imagem de esguio principe me pegando pela cintura, eu de vestido longo, os dois sozinhos num salão brilhante com orquestra ao fundo vem sempre à minha cabeça. Nessa tarde de música francesa, esse pobre coração parecia menor que nunca tal o calor surdo que o atacava. Vez ou outra eu tinha que respirar fundo, balançar a cabeça para voltar da “viagem”.
Outra imagem inevitável é a de minha serra ventante tão no alto do mundo, tão solitária, tão longe. É reincidente essa imagem, faz parte de mim... E, de novo, pensava na deliciosa noite de sexta-feira, vinha para a tranqüilidade da tarde. Minha imaginação voava para o deleite de ser dona do meu destino. Depois me lembrava do quanto sou medrosa... tenho medo demais de mudanças... Teimo em pensar que tenho também coragem de provocar essas mudanças. Isso me dava tal grau de contentamento que tive que me esforçar de verdade para não levantar e sair dançando. Não, não pegaria bem, deixar a mesa de jogo e começar a dar passos ao redor da mesa. Não, ali não, mas com licença, posso deixar meu coração sair bailando por verdes campos. De volta à realidade, me perguntei porque ser tão medrosa? Por que ter medo? Se eu era feliz mesmo tendo tristezas porque não vou em frente e faço o que quero fazer mesmo sentindo medo? Ele não me deixaria, sei que não, mas teria a coragem de não fazer o que quero fazer porque tenho medo?
Os pensamentos ficavam mais vívidos a cada música, a cada som enlevante, até o ponto de quase não conter o choro, vontade forte mesmo de soluçar, algo estava tão grande em mim que queria sair pela garganta. Nesse estado, de reconhecer o tanto medo que tinha de viver, foi que o vi se transformar em energia tão poderosa. Queria dançar, sair em disparada, rezar tal a força daquilo. Me senti ficar quente, ardente, o medo palpável; descobri o quanto ele me fazia frágil, que me impedia de alcançar a vida que quero, a que tenho certeza que mereço. E, de repente, depois de me deixar sentir aquela espécie de vulcão em erupção, que senti a liberdade. Algo maior tomou o lugar do medo. Que coisa boa de sentir, que calmaria, que remanso: será isso a felicidade?
Ainda, ali, na mesa de jogo, ao lado de minhas amigas, agora ouvindo a Simone em Castelhano que quase pude tocar a transformação, a substituição da apreensão pelo dia de amanha pela tranqüila certeza de que meus sonhos são possíveis sim, que tenho 54 anos sim, que tenho lutas a travar sim, que, afinal, tenho medo sim, mas que nada disso me impediria de dançar ... onde, quando e com quem bem entendesse.
Emoções... sim, quantas mais delas ainda citei? Ah, que nada, não vou listar mais... deixe-me voltar ao mundo que me rodeia, tão mais real agora, tão claro. Terminado o jogo ainda dei carona para uma de minhas amigas. Dirigi para casa o mais rápido que pude. Queria começar imediatamente a tomar as providências para as mudanças que queria fazer. Já mudei muita coisa, umas até muito depressa, outras tardiamente, só que mudando algo de lugar, descobri, só então pude descobrir, que havia mais mudanças a serem feitas. Elas aconteceriam, tive certeza quando a casa branca apareceu à minha frente, depois que embiquei meu pequeno carro na entrada. Claro que não foi só a casa, nem as empolgantes emoções, nem as possibilidades de futuro que trouxeram lágrimas aos olhos: foram os vasos ao longo dos muros verdes abarrotados de mini rosas: um vaso delas cor de rosas, um vaso delas brancas ... a primavera ainda não estava no calendário, mas estava se realizando à minha frente... e confirmando que há mais energias no mundo do que aquelas que a gente consegue ver ou apalpar....Energia que, apenas, precisa ser sentida... em emoções de todos os matizes.

Por
Magda R M de Castro
Brasília-DF, 12 de setembro de 2010.

sábado, 12 de junho de 2010

O PRESENTE

Ontem à noite foi que descobri que uma das coisas mais frustrantes da vida se chama “presente”; em todos os sentidos. Se for presente representando o tempo que passa agora, nesse minuto, será impossível se satisfazer com ele porque estará entre a tristeza, ou a alegria, que se teve há pouco, ou há muito tempo. E também porque o amanhã, daqui a um minuto à frente também não tem nada a ver com o que se sente, faz ou espera. E se for presente, daquele tipo que vem embrulhado em papel, menino, que complicação!
Esperar também, taí, outra coisa difícil à beça. Já me descabelei por ter que esperar, um minuto, dois, vinte. O que dizer,então, de quando se espera por dias, meses, ou anos? Frustrante a espera é, agora, junto com a espera de um presente a coisa fica feia, feia mesmo. Difícil se contentar com o que quer que seja. Se for uma flor que a gente espera e vem uma flor ela poderia ser azul, poxa! Se for um carro, mas que droga que não é amarelo, é vermelho, caramba! Não dava prá ser amarelo, não? Ele não me conhece, não me entende.
Penso, em casos como esses, sempre, que a vontade é ser criança eternamente. Minha caçula disse outro dia que “ser adulto é difícil demais”. É mesmo. Porque falo isso? É para chegar aonde quero chegar. Então, juntando a espera do presente, uma mulher já adulta, haja ciência, tecnologia e filosofia para acertar no presente. Veio o presente, “não era bem isso”. Não veio, ahan, o mundo acaba.
Isso tudo foi para dizer que o dia dos namorados é coisa de doido. No shopping ontem à tarde onde fui pagar contas, você só via casais de mãos dadas prá lá e prá cá. As lojas, as propagandas, tudo era chamando para o dia dos namorados. O hotel onde minha filha do meio trabalha estava lotado. Os produtos, então! Fui procurar um chaveiro: achei um de coração vermelho e outro com um casal de gatos um branco outro preto, com pedrinhas brilhantes no lugar dos olhos.
Por aí se tem uma idéia de quanto é frustrante esperar um presente, já não sendo a filhinha luxenta do papai. E sem namorado. Aliás, não me lembro quando ganhei presente de dia de namorado. Ultimamente estava difícil ganhar no meu aniversário, menos dos meus filhos claro que nunca falharam, agora ganhar presente de namorado faz muito tempo, muito tempo, uma eternidade.
Então, se esperar é difícil, se o presente é sempre frustrante, passar o dia dos namorados esperando por um presente que não existe é piração total. Estou brincando claro que não esperei presente nenhum, e talvez por isso ele não tenha vindo mesmo, é aquela coisa da Lei da Atração, que para mim não funciona nem que a vaca tussa.
Agora, não funcionar prá gente, é uma coisa, mas não funcionar para quem a gente ama, a não, não dá para agüentar não. Quando se vive uma vida tão comprida quanto a minha se acaba aprendendo alguma coisa; mas só aí, quando os anos socaram você no chão e você pode berrar a plenos pulmões, bater a cabeça na parede, se afogar, pegar fogo, ir à falência que não haverá ninguém mas ninguém mesmo para lhe ajudar, ou não querer fazer nada para lhe tirar de sua mais profunda dor, se aprende.
Agora, uma jovem de vinte anos, vivendo o primeiro amor, e já com experiências difíceis que muita gente de cabelo branco não teve, é pior do que o pior. Um dia antes do dia dos namorados perguntei à minha filha caçula se ela poderia me ajudar a preencher algumas pautas de aula porque agora trabalho de dia e de noite. E de madrugada, se considerar que roubei meu sono para escrever esse desabafo. Mas eis que minha caçula responde que estaria ocupada porque tinha que se arrumar para o dia dos namorados. E ela vem fazendo isso há dias, na maior expectativa pelo momento glorioso de encontrar o lindo namorado e trocar beijos e presentes. Não vou aqui descrever o que ela fez que essa parte pertence a ela, mas todos da casa entraram na preparação da data.
No dia, um sábado, ontem, saí para uma reunião de trabalho, mas fiquei sabendo que ela tinha se levantado cedo e tomado sol no pátio da frente. No almoço, faminta, comeu rápido demais. Tinha que tomar banho e ficar pronta. O namorado iria ligar logo. Tomou banho, ficou pronta, o presente sobre a cama; e o telefone não toca. Saí, como disse, fui pagar as contas. Voltei trazendo lanchinho sabendo da possibilidade de ela já ter saído quando chegasse em casa; mas trouxe assim mesmo.
Quando entramos em casa, ouvimos a conversa pesada. Ela estava completamente alterada ao telefone: o namorado havia combinado não sei o que com alguém e não tinha falado prá ela. Eu fiquei ao pé da santa implorando para minha filha parar de chorar e discutir com o namorado. Pedi também prá minha querida umas três vezes. Chorei também vendo a tristeza, a frustração naquele lindo coração. Ouvi o tanto ela estava decepcionada; até aquela hora da noite, o namorado não tinha lhe dado a atenção esperada. E ela se preparando há dias. Quando vi que eu também perderia as estribeiras, como se diz lá no interior de Minas Gerais, porque já me propus a não mais sofrer por causa de ninguém, e nem me permito mais ser magoada, peguei meu carro e fui chorar longe. Não longe, estacionei na rua, algumas casas depois da nossa e fiquei lá quietinha até me acalmar. Isso me lembrou: fiz isso por muitos anos.
Bem, final da história: minha caçula parou de brigar, quando entrei de novo em casa, me pediu para abraçá-la e ficamos as duas um tempo agarradas uma à outra; me pediu desculpas, não tenho o que desculpar, sei o que ela estava sentindo. A cabeça martelava com as lembranças embaçadas das também frustrações; e me perguntando quando é que nós mulheres vamos desistir de esperar que os outros façam o que queremos.
“Mulheres que amam demais” é um livro que li e reli muitas vezes, grifando as frases que grudavam na minha vida tão exatas. Depois de lê-lo fui me conhecendo melhor e esperando menos, portanto, sofrendo menos. No caso, minha filha terá o tempo dela, mas o que arrebenta o coração é saber que o caminho não será nem um pouco suave.
Ela me garantiu que é forte, cochichou isso enquanto me abraçava envolta em um roupão branco e cheiroso. Linda ela, fofa, inteligente, bela por dentro e por fora. Dá raiva, revolta até vê-la sofrendo assim. E, talvez para provar o quanto é forte, se arrumou muito bonita, e eu supervisionando, para sair com amigos. Quando ficou pronta, ainda olhei o relógio do computador onde estava às voltas com minhas tantas tarefas de professora. Será que ainda daria tempo de minha querida comemorar o dia dos namorados com o namorado? Fiquei torcendo calada para que o telefone dela tocasse antes da meia-noite.
Mas não tocou. A garota acabou de pintar os lindos olhos em meio às lágrimas, o branco do olho vermelho e ela fungando. Se despediu muitas vezes antes de pegar as chaves do carro e sair de casa. Saiu. Voltei ao computador sentindo algo não muito agradável, mas ao mesmo tempo, rezando para que o resto da noite daquela jovem mulher fosse um pouco melhor depois do dia de espera inútil que teve.
Ainda recomendei que não bebesse nada na rua já que ia dirigir. Fui ao quarto dela para, como de hábito, deixar a cama pronta para quando chegasse mais tarde. Num último gesto, peguei o sofisticado embrulho de presente e o coloquei numa cadeira. Quando olhei para dentro do quarto no momento em que me virei para apagar a luz, o vi de novo, intacto, ostentando o coração vermelho sobre o fundo preto. O último pensamento foi de que há coisas na vida que acontecem num momento e duram a vida inteira. Senti os olhos arderem quando meu coração sentiu que aquele dia de namorado seria inesquecível para aquela linda jovem.

Por
Magda R M de Castro
Brasília – DF, 13 de junho de 2010.

terça-feira, 18 de maio de 2010

DIFERENÇAS ENTRE CORAÇÕES

Uma coisa que estou aprendendo, com um tapa depois do outro, é que as pessoas são mesmo diferentes. Aboletada na minha solidão escolhida como disse um amigo de antigamente dias desses, estou reparando mais profundamente nas pessoas.
Convivo com pessoas tão diferentes fisicamente quanto espiritualmente. Ainda misturo isso de espírito e alma, são muito próximos os seus entendimentos, então, falo de corações. Sim, corações significando dessa vez, não o órgão fantasticamente rubro e vivo que nos envia de lugar prá lugar, os que abrigam sentimentos de todos os tipos.
Ahn, é tão estimulante ficar observando o jeito de cada um. No meio dessas tantas almas-corações, conheço pessoas doces mas tão doces que a gente até estranha. Tenho uma amiga de muito tempo assim. Ela foi mais doce; acho que a vida a vem derretendo devagarinho, mas ainda é doce, deliciosamente.
Outra amiga é o contrário dessa. É tão arisca, viva, energizada que as coisas estão sempre em movimento ao redor dela. É tão vivamente lúcida que, acho, ela poderia inventar a vida toda de novo. Não é uma garota, mas poderia passar por uma em qualquer lugar tanto brilha o seu olhar. Até fiz um verso...
Tenho outra amiga que vive lutando contra a mediocridade humana, aliás, como todos nós. Só que ela faz disso o seu principal encanto. É uma esponja: absorve tudo que é informação que alcança, pede conselhos, adora “filosofia”, a daquela que diz verdades eternas em frases de efeito. É uma graça vê-la ficar pulando de uma “descoberta” à outra, aprendendo, a cada “mensagem de estilo”, a forma de viver diferente, a forma de ser, e fazer, feliz; e vem progredindo mesmo.
Sobre os amigos, tenho muitos. Desses homens, sinto algo muito comum: a indecisão. Nossa, como são indecisos os homens. Vejo colegas numa luta renhida entre “ser e não ser”, se casam, se separam. A cada nova pessoa que conhecem acham que conheceram o par perfeito, o amigo perfeito. Isso porque a inconstância os fez assim. São muitos dos homens que conheço que deixaram a família por um “mundo melhor”... e tantos deles, numa linda manhã de maio descobriram que apenas mudaram de endereço.
Das mulheres que conheço, muitas têm algo em comum: a dor de serem trocadas por outra, de serem abandonadas em tempos de crise, de estarem sendo esquecidas no meio dos móveis, dor também por estarem envelhecendo sozinhas, sozinhas de corpo e de alma. Isso é outra coisa que estou desconfiando: os homens têm um medo terrível da velhice, da própria e da de quem está por perto. Claro que há exceções, mas estou falando de homens não de exceções: o Príncipe Charles é só um.
Homens!! Delícia falar deles, gosto, me peguei hoje cedo comparando dois dos que conheço. Tem um que anda charmoso, esticando o pescoço, mão no bolso, rosto virado ligeiramente de lado. Fala muito pouco, e quando fala espere uma crítica ou uma piada. Elogiar jamais, discutir a relação de jeito nenhum, aliás, se não se usasse a capacidade de falar, seria perfeito. É um homem de gelo, desses que até desliza quando tocado. Nunca toma um partido: quer agradar a gregos e troianos, ser amigo de todo mundo. É aficcionado por mulheres jovens e bonitas, treme a cada uma que vê. E acha que todas são ótimas para brincar, se divertir. O compromisso é outra conversa. Se comprometer em acompanhar, em estar por perto em caso de problemas só se for pego no susto. Primeiro tem ele, depois ele, depois ele, e, em caso de acidente do destino, ergue sua manopla para ajudar alguém, mas quando o esforço extra termina, volta a se dedicar a si mesmo imediatamente, exausto. Esse é o tipo de homem mais terrível que pode cruzar o caminho de uma mulher: joga todo seu charme para envolvê-la, mas se isso acontecer, o problema é dela. Tim Maia tem uma música dolorosa, e lindíssima, a respeito.
Como disse, me vi comparando dois homens, assim do nada. O outro, lindo também, basta você tocar de leve, vai se virando para você, ouve e olha você. É só você sugerir que tem um problema que já toma a primeira providência que puder para ajudar. Penso nele como o bom samaritano só que ele não é tão puritano, tem até um encanto meio selvagem; e é vaidoso também. E é sério quando é preciso e brincalhão quando é possível. Tem a capacidade de ficar horas conversando, tomando vinho, só a dois ou com uma turma de amigos. Ele diz o que precisa ser dito de um jeito que a gente entende imediatamente e não sofre e nem fica humilhado. Tem dúzias de pessoas amigas porque foram ajudadas de verdade, em momentos realmente sérios, e ele não espalha isso a nenhum vento. É um homem que não apenas toca a vida; a vive plenamente com tudo que isso significa e parece não ter medo de nada nem de ninguém. Com a mesma desenvoltura que vai a um boteco perto de ponte, entra no Francisco’s ou num hotel cinco estrelas em qualquer lugar do mundo. E cabe direitinho. Agora, o melhor de tudo: os sentimentos que ele desperta na gente. A seu lado se é especial, inteligente, interessante. No meu caso, até me sinto bonita, pode?Um homem como esse é bom demais ter por perto...
Mas como disse antes, esse também é indeciso, em certos aspectos; mas não permite que ninguém se magoe por causa disso. Isso me dá a deixa para terminar essa reflexão: fisicamente, e até subjetivamente, esses dois homens têm algumas diferenças, e algumas coincidências, mas no caso dos seus corações, penso que posso comparar um com o Alaska e o outro com, talvez, o Etna?
É, taí...
Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 18 de maio de 2010.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

TRISTEZA

A vida moderna nos impulsiona a cumprir sua jornada de diferentes maneiras. Às vezes a força vem do ideal, daquilo que se quer ser ou conseguir; dos sonhos, mais simplesmente dizendo. Esses, em geral, são feitos de alegria, de boas expectativas, de fé no futuro; de esperança, em resumo.
Outras vezes as forças são as correntes naturais como a promoção no emprego, a finalização de um curso, a viagem depois de muitos planos. Coisas boas, mesmo que nem sempre apaixonantes, que acontecem no curso natural dos esforços diários, no correr silente da vida.
Vezes há, menos dessas, graças a Deus, que a força que nos impulsiona não é tão bela. Há emoções que por mais que neguemos estão em nós e até podem ser úteis como sustentáculos de fases difíceis ou de ritos de passagens; e de apoio para decisões. Isso porque há decisões que precisam mesmo ser tomadas: muito necessárias e amplamente transformadoras. Raiva, decepção, ódio, são fortes sentimentos que, na maioria dos casos, brilham repentinamente, como explosão, mas logo se desfazem deixando a calmaria.
Uma dessas emoções, que da mesma forma nos impulsiona, pode até nos dar coragem para decidir grande, não menos dolorosa nem tão repugnante, e que dura tempo demais, até que a gente se canse, é a tristeza. Essa palavra, cujo significado moderno assusta muita gente, tem forças para nos lançar contra rochedos ou nos deixar quietos na pradaria. É porque há vezes em que não são suficientes nossos desejos ou propostas, creio, acaba que quem decide é algo muito maior que nós, fundo sentimento, destino ou coisa que o valha.
A tristeza engana com sua quietude e não se esvai tão depressa quanto se gostaria. Ela não desaparece porque algo novo aconteceu, não alivia por um dado menor, um fato qualquer. Quando a tristeza se instala, é preciso mais que propósito para superá-la. Apesar de que superar a tristeza parece utópico: como é possível fazer isso? Passando por cima dela, contornando-a? Ela ainda estaria lá. Então, a tristeza precisa de outro sentimento tão importante quanto raro: a paciência. Acho que foi isso que me deu forças ontem.
É que ontem, por um fato corriqueiro, vi que ela estava firmemente instalada, tinha teias, estava rondando. Há alguns estágios interessantes dessa coisa: antes é a mágoa sangrenta que faz você chorar mesmo rindo; que está tão colada à alma que mesmo que tenha motivos para dançar ou brincar, você chora. Depois disso, a tristeza passa para a aceitação. Tá, estou triste, mas ela já não incomoda tanto. Difícil é que, a qualquer momento, algo a sacode, ela volta em borbotões, enxurrada misturando tudo. Lágrimas, chutes, tapas na parede, gritos, ou pior: o silêncio. É que a tristeza que se descobre ser funda demais pode ser tão poderosa que nada ajuda; calar, então, é a única saída suportável.
Foi o que fiz ontem: me calei. Peguei o carro, querendo ficar em casa, mas também querendo ir, e me pus na estrada. Queria ir a certo lugar, um marcado, mas sabia que a qualquer momento poderia girar o volante e voltar. Estava em confusão, indecisa até o osso, então, enquanto não resolvia, fui seguindo devagar até alcançar os raios de fogo do sol se pondo, quem sabe não queimava alguns de meus tentáculos?
Fui convidada a participar de uma confraternização na faculdade onde trabalhei em Minas Gerais, pertinho, e me preparei para isso como se fosse me casar. Escolhi roupas de pouco uso, sapato, bijus, bolsa, perfume. Passei a manhã em casa como num spa, brinquei com minha caçula: depilação, unhas, hidratação. Fiquei, por toda a semana, imaginando o que diria a antigos alunos, a colegas, a amigos saudosos sobre os caminhos que tenho trilhado nesse ano e poucos meses ausente.
Procurei me certificar da forma de transporte, do programa do evento; preparei o material de trabalho de forma a ter essa folga: queria ir a esse encontro. Assim, foi que me armei com uma latinha de coca light porque não achei a garrafinha de água na geladeira, um pacote de castanhas torradas de baru e um pão de mel ganhado ainda no dia das mães. Chequei documentos, telefone, agenda. Parti. Tinha que pegar um ônibus especial no Plano Piloto, na Asa Sul. O horário era 16:45 hs. Cheguei à Quadra residencial, estacionei o carrinho e parti alegre e saltitante para a Comercial. De longe já fui procurando o ônibus; não o vi, fui atrás de possíveis passageiros esperando nas mesinhas à sombra das lanchonetes... em vão. Comecei a desconfiar de que estava no lugar errado; abri bem os olhos e minhas recordações: aquele era o lugar para onde vim durante sete anos. Então, meu relógio estava errado... e sempre tenho cinco minutos adiantados! Pedi a um rapaz para confirmar a hora: faltavam 17 minutos para as 5 da tarde; ainda estaria no horário marcado.
Talvez tivessem se atrasado – todo mundo – então, esperaria um pouco. 10 minutos, nada. Bem, algo deu errado ou partiram mais cedo, não poderiam saber que eu iria naquele ônibus, acho que não sabiam. Tentei falar com uma amiga que talvez fosse junto. Duas vezes chamei, e nada. Vou voltar para casa, tenho tanto trabalho mesmo!
No interior da Quadra, vi que estava irritada quando minha sacola se dispôs a abraçar uma das grandes árvores, então, no brusco movimento para me libertar, arranhei sacola e blusa. Tomei o rumo de casa, o trânsito já apinhado de automóveis, parei em todos os sinais que existiam. Quando alcancei o pezinho da W/3 Sul, tive ímpetos de descer o Eixo Monumental e tomar a saída da cidade. A conta da gasolina seria mais uma dificuldade, mas daria para sobreviver. Antes que decidisse, fui empurrada para o viaduto e me vi na entrada da Asa Norte. Manobrei por três pistas de uma vez e subi a tesourinha para a Torre de Televisão. Antes de pegar esse caminho, desci de novo: estava de volta à Asa Sul. Iria no meu carro ... a tesourinha para subir de volta ao Eixo Monumental estava livre à direita. Finalmente rumo à saída, o trânsito apertava: era 13 de maio; estavam bloqueando metade das pistas para um evento na Esplanada, talvez missa com procissão. Isso não me impediu de lembrar que quem mora em Brasília tem sempre que se sujeitar a esses eventos grandiosos com aparatos policiais e pistas interrompidas, não importando se você tem compromisso. Parece que a Capital da República tem um único fim: dar espetáculos.
Então, me misturei aos carros de polícia, aos oficiais e particulares, aos ônibus de fim de tarde, às motos, aos pedestres errantes, aos tais cones e continuei, com a proposta de gastar o tanque de gasolina para encontrar caros amigos.
Ruminava qual era minha intenção ao fazer isso. A todo momento, me perguntava: qual é meu objetivo? Me desculpei com meus botões, uma, duas, três vezes: seria boa oportunidade de afiar contatos, quem sabe novas indicações de emprego. Isso não ficava por aí porque acabava me perguntando também porque queria mais indicações de trabalho se não estava dando conta do tanto que já tinha. E ia dirigindo em frente, pensando, pensando.
Enquanto me debatia com os prós e contras, fui driblando também o trânsito, vai daqui, pega ali, até que alcancei a pista para a Ponte JK. Alívio, por enquanto: fora do tumulto me senti livre para seguir viagem, e para pensar melhor. Enquanto isso, seguia em frente, o carrinho arranhando nas subidas e... ainda: vou, não vou. À altura da Escola Fazendária, o trânsito estava de novo engatinhando e assim foi, em fila indiana, até o balão da estrada para Goiânia; a pista estava em reforma. Rem, rem, rem, o carrinho seguia. Pus um CD do Fagner e comecei a acompanhar o cantor nas letras que sabia. Abri a janela para o barulho sair: gritava a plenos pulmões. E ia seguindo... ainda com as dúvidas martelando.
Quando contornei o balão para pegar a estrada definitiva, vi um escandaloso painel avisando “Agrobrasília a 37 quilômetros". Hum, a exposição dos produtos do Cerrado, no Coop-DF. A gente se acostumou a falar a palavra “copadefe” dessa sigla. Muito bom lá, conheço o lugar dos tempos em que fui gerente de banco, visitei uma granja de porcos; foi quando descobri que isso precisava de tanta tecnologia. Ali é um centro de produção muito importante para a região que com o tempo se transformou em quase cidade.
Continuei; agora o sol do poente já tingia tudo de vermelho, exuberante, lindíssima visão, parecia Marte, tanto colorido. Avaliando a estrada à frente, me acomodei relaxando, consciente de que só aquele por do sol já faria valer essa escapada esquisita.
De sobe e desce, pensa e repensa, canta e grita, vi que tinha lágrimas nos olhos. Funguei contrariada porque me deparei com algo saindo de dentro dum fundo escuro que eu não visitava a miúde. Algo se apresentava como espectro na penumbra, e o dia me imitava, se transformava. Viria a noite em seguida e daí o caminho seria tão mais solitário. Voltei a pensar nos objetivos dessa viagem, na justificativa, no real motivo. Ver os colegas, rever os lugares de tantas aventuras... e o pensamento me levando... e onde tive muita decepção e dificuldades também. O pensamento fixou na idéia de que águas passadas não movem moinho, o que não aliviou nada.
E isso me levou a outro agravante ainda não avaliado como deveria. Estaria lá, possivelmente, pessoa que tornaria tudo não tão esplêndido. É aquela coisa do vício: se você é viciado em álcool, drogas, tem que ficar longe. A recaída é certa se você toca de novo na coisa; penso que com gente é assim também. Me viciei em um homem e vê-lo não me faz bem de jeito nenhum; e o vi algumas vezes recentemente. Não foi bom, mesmo que também não tenha sido tão ruim quanto achei, mas me assustei porque dessa vez seria num terreno mais instável, mais balouçante. É diferente quando o desafio acontece num ambiente relativamente seguro. Agora, estaria na arena e me apavorei com a possibilidade de sentir aquelas sensações de derrota, de insignificância, de inexistência absoluta com que fui brindada por tantos anos, ininterruptamente.
Ah, não! Isso de novo não! Não lutei tanto para me limpar dessa droga para me colocar numa situação nem de leve parecida com as que passei. Não mesmo!
Estava já escuro, as luzes iam e viam no pára-brisas, os faróis totalmente acesos. Depois de uma curva, vi a entrada da feira; ali também havia cones separando as pistas. O último pensamento me levou a desviar o olhar do novelo que seguia longe e me voltar para os aparatos da festa: bandeirinhas, barracas brancas, cartazes. Entrei à direita, parei para perguntar a um rapaz a caráter onde era o estacionamento. O moço me apontou uma cerca cortada, fitas empoeiradas, entrei. Ia longe a coisa, carros e carros estacionados num gramado amarronzado pelos pneus e poeira; muita. Parei de novo para perguntar a uma senhora carregando pequeno pacote: para onde é a feira? Para lá, respondeu apontando o contrário do caminho, mas já acabou, agora só amanhã. Agradeci e continuei seguindo os rastros sobre o gramado. Isso me levou à saída: carros em fila atravessando o interior de um conjunto de casas muito bonitas que sempre vi da estrada. Observei curiosa as construções, comparando-as com as do Lago Sul, um dos pedaços mais caros do Planeta.
Ainda poderia rumar para o destino inicial, continuei pensando até que cheguei à BR. Bastaria virar à direita e faria longa viagem no escuro... que poderia dar num breu maior ainda ... outra dúvida saltitando enquanto ligava a seta para a esquerda. Casa, lar, o da gente é o maior refúgio do mundo.
Ainda não deixei as tantas perguntas e respostas que me faziam companhia. Continuei insistindo em esclarecer o objetivo, as possibilidades, o proveito, a alegria que poderia ter com o encontro. Conclui que tudo valia para manter a decisão que tomei de seguir em frente com a minha vida e que essa não era coisa para brincadeira. Tinha decidido, estava decidido. Não que isso não signifique dúvidas. Há sempre dessas, muitas, rondando. Quando todas atacam juntas, me enfraquecendo, recito o refrão que decorei para momentos como esse: ele não é solução para meus problemas, não está, mesmo, interessado; minha vida é problema apenas meu.
Foi voltando para casa, já no breu infinito da noite que descobri meu rosto molhado de novo. Deixei assim, aumentei o volume do rádio e acompanhei pacientemente a fila de automóveis que seguiam para a Capital. Pelo menos, como paliativo pela perda da confraternização, descobri que essa feira é grande mesmo; e que talvez, se adiantasse o trabalho, sobrasse tempo para fazer uma visita apropriada.
Sobre tantas possibilidades, ainda coube mais uma pergunta: quem sabe o que me reserva o amanhã? Não sei não. Paciência, me consolo, enquanto entrevejo a cidade, agora do outro lado da Ponte. Naquela hora, como a brindar a noite jovem, a JK se transformava em real espetáculo: como longo colar de diamantes, suas tantas luzes estavam lindamente refletidas na superfície serena do Lago Paranoá.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, 14 de maio

quinta-feira, 29 de abril de 2010

DE AMOR E DE PORCOS

Uma das coisas que ainda não aprendi foi a lidar com o amor; não o amor paixão que esse não sei se alguém sabe mas esse amor de amor mesmo daquele tipo de amor que a gente gosta da pessoa simplesmente por ela ser o que é e daí acha que essa pessoa pode fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo que você ainda vai continuar amando ela. Eu sou assim quando amo. A pessoa pode ficar longe, calada; pode me falar todo dia, maravilhoso! Pode casar, descasar, vender, comprar, que tudo o que quero é que essa pessoa ache a felicidade. E me deixar por perto para ser feliz de tabela. Para meus amores quero sempre a felicidade, e tenho certeza de que sempre a merecem, sempre. E para quem não amo também que sejam felizes... Percebi que as pessoas que eu amo fazem de mim o que elas querem. É verdade, se elas falam que a piada que contei é “feia” nunca conto mais aquela. Se me dizem para calar a boca fico o resto da vida escolhendo o que dizer. Se falam de uma roupa, se falam de minhas “más” companhias... fico sempre querendo fazer o que esses amigos acham que é melhor. Um dia, uma amiga falou que meus filhos não andavam tão bem arrumados quanto eu. É que eu trabalhava num banco e gastava um terço de meu salário com ternos e sapatos. Conseguia economizar nos “acessórios” que até uma vez um grupo de colegas me deu de presente um conjunto de bijuterias tão refinado, tão diferente, que ele até hoje parece novo em folha. Mas no dia que a amiga disse que meus filhos não andavam tão arrumados quanto eu, pensei em comprar ternos prá todos eles andarem vestidinhos assim tão arrumados nos passeios ao parque, para mergulharem nas piscinas, nas aulas de luta, nos cursos de música e língua, na escola de todo dia. Passei dias pensando quais roupas seriam mais “arrumadas” para que meus filhos andassem como se fossem executivos de bancos nos lugares que frequentavam. Dei uma olhada muito crítica nas camisetas folgadas, nas bermudas grandonas, nos chinelos, nos tênis, nos vestidos... juro que achei tudo tão errado que logo, aproveitando uma viagem de férias, fui a um setor atacadista de roupas em Belo Horizonte e botei as lojas abaixo. Fiz uma compra que levei mais de um ano para pagar, de, principalmente, vestidos lindos e modernos pras meninas e camisas de algodão que podiam ser usadas engomadas para meus meninos. Agora eles poderiam andar tão arrumados. O problema é que não perguntei para eles o que realmente os fariam confortáveis e as roupas foram doadas anos mais tarde, quase todas tinindo de novas. Viver é tão vivo, tão repentino, tão imediato que às vezes nós vamos apenas acompanhando o “rio”... e não fazemos o mundo do nosso jeito, vamos deixando que tudo ou todos interfiram nas nossas vidas. E, da mesma forma, vamos botando nosso nariz na vida dos outros. Acho que isso vem de nossa impiedosa mania de julgar; da gana burra de comparar os incomparáveis; da idiotice de pensar que as pessoas devem ser do nosso jeito. Outra coisa foi um amigo me dizer um dia que não suportava o fato de eu não falar mal de ninguém. Sim, parece esquisito, mas é que ele achava que eu era boazinha demais. E ninguém é bonzinho demais; se parecer assim deve estar fingindo. Não meu caso, esse comentário de meu amigo foi posterior a uma confusão na qual alguém me disse: “Você fala demais!”. Então, decidi que só falaria das coisas certas e para as pessoas certas. Claro que entrei em crise existencial infinita porque o que deveria ser falado foi sendo socado no chão e as coisas passaram a não se resolver mais na minha vida. Passei a viver como a Poliana que achava tudo tão lindo!! E acabou que perdi alguns anos sendo a pessoa mais perfeita do mundo enquanto esse mundo girava o meu redor e eu não via o que estava acontecendo. No dia que descobri que eu estava fazendo papel de boba foi difícil demais me fazer de novo gente: falante, inteira com meus erros e acertos. O efeito Poliana é mesmo muito grande na minha vida, até hoje. Sempre li os romances doces dos escritores românticos e quem merecia toda a felicidade o príncipe, a riqueza, o respeito, era a mocinha perfeita, lindíssima, boazinha. E coitadinha que sofreu tanto antes. Isso é arrasador mesmo quando acabei assimilando que eu tinha que sofrer horrores para merecer o paraíso. Acontece que meu jeito de ser gente, e inclusive jeito de ser desajeitada mesmo, me levou a um ponto de total confusão porque daí eu não era aquele modelo de moça, nunca tive a menor chance de ser. Entretanto, acreditei que merecia respeito mesmo assim. E que até poderia ser bem amada um dia. Fui amada, sim, uma vez. Das outras vezes, toda a consideração que recebi, olhando agora de longe, pareceu estar relacionada ao que existia ao meu redor e não propriamente por mim. E isso não é coisa que se descobre assim, levemente. Dá uma dor danada você descobrir um dia que o que você verdadeiramente, só você, na sua essência, não é interessante o suficiente para que os amores que você ama amem você do mesmo jeito; ou de qualquer outro jeito. É natural, eu diria, pessoas se afastarem. E quando isso é deliberado? Quando isso é decidido? Sim, é natural, seria sim, as pessoas têm o direito de decidir quem elas querem por perto, com quem querem se relacionar. É, falar assim não impede de isso doer. Caramba, como é triste ver que alguém que você sempre amou, admirou, não lhe dá a mínima mais. Ouvi uma vez alguém dizer que “tinha um cemitério particular”: ia enterrando as pessoas que não lhe interessavam mais na vida: questão de sobrevivência. Ai, e quando somos nós os enterrados? E, o pior, é quando você é deixada à deriva, sem responder às mensagens, sem fazer contato; o mais triste é quando você tem que descobrir sozinha que a amizade, o carinho, o que quer que tenha havido um dia se dissipou nas idas e vindas dessa vida e que você não é mais parte da vida daquela pessoa. Gosto muito de amar, gosto demais de carinho, um riso porque cheguei, um abraço porque estou indo. Amar é tão bom; mas quem inventou essa coisa de amar sozinha? O amor não é uma troca, construído por muitos anos? É, tem esse tipo de amor e tem esse outro tipo também. Sempre me volta a ideia de que nos amamos muito pouco para deixar que nossos corações sofram com o desamor. E isso tem me acontecido tanto ultimamente que estou tentando entender se estou usando meu direito de ficar sábia na maturidade ou estou deixando tudo acontecer sem participar, mais uma vez... Dúvidas ou não, o que me acontece hoje em dia é que está aumentando na minha vida o número de pessoas que eu amo e que não me ama. Parece que perdi a curva do atalho...que ia levar à felicidade que persegui toda a minha vida. Tentei tanto ser bonitinha!! Acho que fingi, porque afinal descubro que não é fácil assim ser amada. Eu estava enganada sobre o amor... estou sim porque ele continua ao meu redor, o apalpo vez ou outra, o vejo belo e altaneiro nos meus sonhos insistentes... mas, não tem muita gente interessada nisso mais não. Concluir assim me faz pensar sempre na frase “jogar pérolas aos porcos”... que também não é tão interessante. E seria interessante se o dito fosse “defunto atira pérolas aos porcos”? é feio isso, feio que só, mas estou ligeiramente desconfiada de que alguém andou me enterrando por esses dias passados. Recentemente, eu diria...e fico então pensando, o que a gente faz com estoque de amor? Será que perde a validade? Por Magda R M de Castro Brasília – DF, 30 de abril de 2004.

BRASÍLIA 50 ANOS

De verde seiva era seu cheiro
De vermelho sangue seu céu
Em terra rubra aberta sua alma
Assim como eu, e tantos, começava.

Vinha de caminhos antigos
De outros amores construída
Assim como cheguei, eu e outros tantos,
Em ti para viver a vida.

De veias vermelhas, negras romperam
Levando, conduzindo, trazendo
De braços, de corações, de coragem
Seus moldes estátuas e viagens.

Do ventre da terra seu grito se elevou
Sua alma bradou
Seu espectro se fez
Assim como eu, e tantos outros,
o grito da vida despertou
De nós duas, almas vencidas, vidas unidas.

Eis nesse vale o amparo
Eis nesse planalto a paz
A alegria da chegada festiva
E dos dias, e noites, de construção,
à deriva: tu e eu, e tantos ainda.

De brados e ventos vieram
Tantos lamentos
De tantos recantos e paragens
Chegou a ti o pobre, o rico,
O sábio, outros nem tanto,
Mas de ti, todos tiveram, em igual medida, a esperança.

Capital já nascia; capital assim seria
A platina a chamar em seu alvo brilho
Em-canto de sereia do cerrado
Do mais remoto rincão, do afastado
Trouxe o riso, o ciso, o viço
Que em teu regaço aconchegou
Tanta vida, tantas, e também eu.

E mesmo que a saudade de outros planos
Tenha um dia vindo bafejar seu esplendor
Para sempre aqui fiquei, como tantos...
E jamais de ti parti, como muitos
Tantas vindas: porque em ti
Em teu regaço doce
Em teu frescor de nascentes assombreadas
Me deleito, e os demais, filhos adotivos ou naturais
ou comensais
De tanta fartura, mel, doçura
A mais fina semente germinada
A mais fria alma desencantada
Que em ti renasce e floresce
Porque tua alma, na minha, e na de todos nós,
jamais fenece.

Eis, então, que de sonho um dia hoje é verdade,
Eis, que tua esperança se torna viva
Eis, que em sua história sem par,
O lugar,
Eis, que chega, em esplendor ao palco da maturidade.
Ainda juntas, tu e eu, e junto a tantos
Que em ti renasceram,
Eis, que presenteia com beleza.
E agora também com nobreza,
A sua gloriosa grandeza.

Nobre, bela, doce, eterna,
Tu és o paraíso para tantos,
E eu, como outros
Fomos duas jovens que juntas
Enfrentaram o próprio destino e o venceu.
Escrevemos nosso enredo, tu e eu, e tantos mais
E agora, festejas, prova teu valor , teu apogeu
Como berço de nova era.
É tão forte, tanto que outros milhares tantos desse vai contar
E eu, como último apego que me cabe
E posso,
Quero em seus campos suaves
Descansar em leito eterno...
... como tantos...

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 29 de abril de 2010.

domingo, 18 de abril de 2010

DILEMAS DO OUTONO

Está acontecendo da forma que eu disse, nessa mesma época no ano passado, aconteceria com as paineiras torturadas da EPIA. As pistas em reforma alcançaram as áreas que deveriam ser verdes e essas ainda mostrem veios abertos de terra vermelha do cerrado. As árvores desafiam todas as afrontas desabrochando em róseos múltiplos. São filas de árvores mutiladas, ora lhes faltam um lado inteiro ora se vê a brancura do cerne onde foi arrancado um galho, que se engalanam, se vestem mesmo de festa, e abrem suas flores mimosas ao ar límpido. Um ar que mostra um arremedo da seca que vem aí, prosseguindo, a ordem natural das coisas: choveu demais, aguardemos as secas excessivas, portanto.
Assim é a natureza que gosto tanto de observar do alto de minha vasta ignorância; mas preciso continuar observando porque conheço pouco demais de naturezas, a das coisas e a dos homens.
É domingo, um dia que me obrigo a viver como deve ser vivido: longe de planos de aula, avaliações, relatórios. Tirei 24 horas de folga: ontem me dei ao luxo de descansar à tarde, me espreguiçar sem remorsos entre as almofadas da sala de TV e, ora dormir, ora ver um filme. E agora de manhã insisti, contra todos os montes de pastas, a não trabalhar. Por enquanto...
Também tomei o café da manhã tranquilamente, teimando; claro que com o jornal e a revista semanal me esperando na outra ponta da mesa. Fiz questão de ficar quase uma hora comendo devagar; e falando com as pessoas lindas que me acompanhavam. Pausa, caros momentos: não pensando em problemas ou tarefas da segunda-feira em diante.
Li com cuidado os e-mails da semana: um irmão me enviou texto do Arnaldo Jabor de jornal do dia 13; publicado num Português difícil, marca do escritor, para a maioria dos brasileiros, inclusive eu, consegui, acho, entender que estamos num paradoxo no Brasil. Como levar ao povão que apoia o atual governo paternalista a entender que o verdadeiro crescimento de uma nação está em trabalhar seriamente para cada um conseguir o seu lugar e pagar as contas com o suor do próprio rosto? Não é todo mundo que quer trabalhar não, pelo menos não no sentido de ter um compromisso todos os dias, regular e responsavelmente, e, muitas vezes, ter que fazer algo que exige um pouco mais de esforço não apenas físico, mas, sobretudo mental.
Tenho me deparado com essa preguiça mental por onde ando. Refletir deve doer, incomodar sei que incomoda mesmo. Não o refletir superficial, de apenas conhecer o óbvio da notícia ou do livro. Não o refletir sobre o que vemos com nossos olhares de preconceito, mas buscar a verdade, utopia, sei, de tudo o que nos cerca. Não o refletir sobre o que nos agrada, mas, sobretudo sobre o que não nos agrada: pode estar aí a resposta para muitos dos nossos desentendimentos.
No geral, vivemos ilusões do que é real de acordo com o que nos interessa. Temos pouca visão do outro, natural, já que temos a nós mesmos para aprender e a entender. Se não nos conhecemos, e nem sei se isso se consegue um dia, conhecer o outro fica mais difícil. Conhecer o outro, o vizinho, o bairro, a cidade, o País, então, leva um bocado de tempo, esforço e vontade. Daí, voltamos à preguiça.
Além da preguiça, talvez herdada de nossos antepassados índios, ou africanos, ou europeus, a sociedade no Brasil mostra um comodismo de dar medo. Muitos se esgueiram em silêncios para não botar a mão na massa, dizer o que pensa, tomar atitudes desconfortáveis em alguns aspectos para mudar o que está errado. Pensa-se mais em manter o que se tem do que no que se pode construir para o futuro. Gosto da História para entender o mundo agora. Na aula de pós-graduação de ontem cedo falamos dela. Penso que poderia ser definida, a História, como “a soma de todos os presentes passados”. Isso para explicar que somos hoje o resultado de muita coisa feita anteriormente e é aí que vejo que a falta de ação do povo brasileiro pode trazer consequências muito sérias para os brasileiros de amanhã.
Isso penso também por outra reportagem de jornal: deputado paulista se retira da política em razão das tantas falcatruas no setor. E, vejo aqui em Brasília, além da gangorra política conhecida, e lamentada, o comércio sendo tomado por asiáticos. Nada tenho contra, mas não me furto ao fato de que são alguns bilhões de pessoas e tão trabalhadores; seria exagero prever que tomarão conta do mundo todo um dia? Taí o Tibet como exemplo.
Se voltarmos a conversa para as riquezas naturais, e refletirmos com muita insistência, vamos ver que seguem céleres as ancestrais “invasões brancas” por meio de tantas “missões”. E providências necessárias são adiadas indefinidamente porque nossos políticos atendem a interesses particulares sobrando pouco tempo para os coletivos.
Cadê os brasileiros? Cadê o povo varonil que ama tanto essa terra “verde” de paz e igualdade? Cadê os idealistas? A História também tem esse lado: mostra que quem tentou algo diferente sofreu o diabo, até morreu, e tudo ficou por isso mesmo. Saber disso pode dar medo de tentar; é, estamos tão emaranhados de medos de diferentes formatos que nos protegemos até dos nossos pensamentos.
Concluo que refletir de verdade dói mesmo. O consolo é o exemplo das paineiras rotas das alamedas brasilienses: pintam de rosa o azul transparente do céu ignorando que suas raízes se espalham nuas e desamparadas em meio a estradas, ruas e prédios em construção. Vejo que a natureza, a vida natural, está lutando, enfrentando, resistindo, e se resolvendo. Ao que encerro com os dilemas: estamos fazendo o mesmo? Afinal, temos ou não temos, nós brasileiros, futuro como Brasil?

Por Magda R M de Castro
Brasília – DF, 18 de abril de 2010.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

OS CAMINHOS DO AMOR

No final de semana prolongado fui viajar com minha irmã. Imagine horas e horas de nós duas pelas estradas do Brasil atravessando cidades, rios, matas ou descampados. A conversa girou sobre tudo, mas, principalmente, sobre nossos filhos e netos. Com a nossa idade, digo, idade de mulheres com filhos adultos já com vidas próprias, é lógico que a conversa circulou ao redor deles; acho até: ficaram com as orelhas quentes. De conquistas, desafios, desencontros, encontros falamos de nossos tesouros. Vez ou outra, falamos de nós duas: nossa história, nossos desafios, a maioria vencidos com garra e determinação. De íntimos falamos pouco. A intimidade é coisa complicada de revelar, mas um fato de que rimos muito foi quando minha irmã ficou vermelha que nem um tomate: numa das reuniões de família, falou-se de sexo.
Esse é grande tabu mesmo em tempos de tantas bandeiras despregadas, mas o que sexo significa para cada um, entretanto, é outra conversa. Já de amor temos mais liberdade para falar; e olha que esse tem mais significados ainda. Agora, se o sexo mudou de tempos prá cá, com a liberdade de escolha, principalmente, o amor continua dando panos prá manga. Ele pode até acabar em sexo, ou começar com ele, mas um dia ele é invocado seja porque foi se desenvolvendo ou porque foi minguando.
Nessa viagem, fizemos tanta coisa que até parece mentira: visitas, almoços, jantares, sobe serra, desce colina, passa na poeira e escorrega no barro. E, observando bem, tínhamos mais uma companhia: o amor. Ele esteve sempre onde estávamos, em todos os momentos; em vários aspectos, de diferentes imagens. Por exemplo: no começo da viagem de ida e no começo da viagem de volta, invocamos a proteção divina: minha irmã pegou meu braço avisando: “segura o volante, não se preocupe, que vou fazer uma oração.” Em voz alta, ela discorreu sobre todos os santos e anjos; chamou os nomes dos “filhos e netos”, pediu luz para nossa aventura. Ela reza bonito, tem o jeito certo de falar com Deus através de seus santos conhecidos. A oração parecia inundar nosso pequeno carro: e os trajetos foram tão perfeitos que parecia estarmos elevadas do chão.
Em nossa cidade, visitamos diferentes lugares: uma casinha simples, uma fazenda, uma casa moderna, uma loja de amigos antigos, uma festa. Passamos juntas por ruas que nos viu andar rumo às escolas, um dia; revimos nossa Matriz, nossa Capelinha, os nossos horizontes. E conversamos muito; ora nós duas, ora com nossa mãe, ora com mais gente, irmãos, amigos, vizinhos. Se fosse contar os detalhes de tudo que fizemos em quatro dias daria um livro grosso.
Mas como disse antes, em todas as conversas tinha amor; nalgumas seu nome não foi manifestado, noutras foi escancarado. Não se falou de amor na visita ao casal com neném recém-nascido: o sentimento pairava no ar. Também não se falou de amor, ou da falta dele, onde ele não estava, mas sua falta foi sentida. Foi possível dizer “também te amo”, ou “obrigada pelo que fez por mim quando eu fazia xixi na cama”, ou “nunca me esquecei de você”, ou “sinto muito a falta de vocês: são como meus filhos...”.
Também falamos de amor com nossa querida Mãe, tão velhinha, mas que se mantém em seu mundo apesar de nossas pressões para que viva com a gente por uns tempos. Não, essa é a opinião dela, “tenho meus remédios, os exames, o controle da diabetes, quem sabem num outro dia...” E o coração da gente, apertadinho, sente que esse dia pode nunca chegar.
Voltando, fomos pegas de surpresa quando um rapaz, desses “Para e Siga” de construção de estradas, nos cumprimentou enquanto esperávamos a placa de “Siga” numa altura do caminho: “Oi, mulheres!” Simples assim, o moço disse. Nós duas, as mulheres com quem ele falava, ficamos ali, sem saber se aquilo era ruim ou bom demais: ser abordadas tão de leve, tão lindamente, sem nenhuma intenção. Ele ficou na beira da pista segurando um rádio e a placa; e nós dentro do carro, caladas e confusas: o que significa aquilo “oi, mulheres!”?
Do que falamos de amor e fé, de filhos e dos amores dos filhos durou a viagem toda. Do lado de minha irmã, a filha teve um bebê, mas dizia ser o pai apenas um amigo, logo, não queria se casar. Queria se formar primeiro. Agora, chega a formatura, o pai do bebê ronda sua vida com cuidados tanto com a menina quanto com a mãe. Há perspectivas de que uma amizade boa ampare outros sentimentos bons.
Também o filho de minha irmã espera um bebê da namorada que não namorava mais. Tinha carinho, claro, mas não o suficiente para um compromisso além. O compromisso, entretanto, de cuidar do filho que chega é um laço invisível que o segura suavemente junto à jovem. Ficarão juntos os pais desse novo ser que vem aí? Eles se amam? Perguntas que nenhuma de nós ousa sugerir respostas. Vejo que o coração de minha irmã, e o meu por tabela, crê que vencerá o melhor.
Do meu lado, admiro minha primeira filha que escolheu um companheiro e ambos andam por aí buscando os sonhos em comum. Os filhos chegaram com alegria e o dia a dia os vem envolvendo em laços de ternura. No final desse ano terminam, juntos, o mesmo curso superior, por exemplo.
A caçula daqui de casa é profundamente apaixonada por um rapaz encantado. É lindo vê-los descobrindo, juntos, o que cada um quer ser quando crescer.
A filha morena andou arredia com o namorado de muitos anos; caiu aqui, chorou ali, quicou nas paredes, fugiu. Quando cheguei em casa, na tarde dessa viagem, me disse simplesmente: “Mãe, tô vendo o fulano”. Na voz, sempre controlada, um leve colorido; algo do que eu sentia falta há algum tempo.
Um dos meus filhos se separou, no começo desse ano, de uma família mimosa. Foram meses de cuidados para não aprofundar feridas, nem de lá nem de cá, mas meu coração já pertencia a todos sem distinção e a situação estava dolorosa mesmo. Num dia qualquer, entretanto, se falaram verdadeiramente e o amor foi recordado. Se casam em breve, para fortalecer o que já era indestrutível.
Tanto amor rondando, circulando, vibrando; e fazendo vibrar tanto a quem amamos como a nossos próprios significados. O que acredito perceber é que o amor, em infinitos modelos, ainda cabe nos corações. Creio que nem mesmo a mais fina tecnologia, ou a mais cruel das intenções, tem poder eterno sobre o amor. Sua força pode ser sentida, sua ausência também, mas ele está onde deve estar; e não o vê apenas os que não se interessam por ele. Ou melhor, os que acham que não se interessam por ele. Sim, porque amor é coisa que não se precisa acreditar para sabê-lo lá, ao contrário, para saber do amor, sentir é o bastante.
Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 05 de abril de 2010.

sexta-feira, 19 de março de 2010

O COMEÇO NA PARTIDA

Quando finalmente peguei a estrada levava duas tralhas: a de mim, com tantos sentimentos contraditórios, e a dos apetrechos empilhados na carroceria da camionete emprestada.
Eu vinha pensando insistentemente sobre aquilo havia anos no inconsciente, acho, e já havia alguns meses sonhava, acordada, com essa possibilidade. A vontade era muita, tinha esperanças demais naquela atitude como se fosse virar o globo terrestre ao contrário.
Claro que isso é uma forma grotesca de dizer a revolução, a guerra mesmo que vinha travando comigo. Me sentia a pior das criaturas da terra: desamada até o osso, incompetente como esposa, mãe com desastrosos resultados, profissional medíocre, pessoa da qual nada nem ninguém sentia falta. Nem a cachorrona negra espalhada no chão da varanda sentia minha falta.
Claro, e nem eu mesma me suportava. E não posso dizer de como formei a decisão de ir morar no interior: a vontade era ir direto para uma montanha, e olha que imaginei ser esse um pensamento muito original. Vi que todo mundo quer ir para uma montanha depois que comecei a ler mais livros de psicologia, logo, o que sentia não era nada de novo, o mundo inteiro queria também; e descobrir isso não aliviou a minha pequenez.
Então, depois de decidir sozinha, e depois de comunicar o fato aos meus filhos e à "babá", a caçula pediu a camionete emprestada ao pai e junto com o namorado me deu carona para o interior.
Essa ida, e para a casa de onde eu iria, não foi muito discutida ou avisada: decidi quieta, e quieta arrumei as malas, como se tivesse fugindo. O fato é que queria tanto tentar que ficar bradando isso a todos os ventos poderia “jogar areia” na proposta do que achava ser a minha salvação.
Então, depois de batalhas internas que eu talvez explique melhor mais à frente, e poucas batalhas das pessoas ao redor que achavam que eu estava até fazendo uma tentativa louvável, partimos numa manhã tal e qual qualquer outra. Não para mim, lógico, porque não se abandona uma casa, com duas filhas ainda jovens, uma amiga companheira cuidadosa e gentil, uma cachorra, amigos, as ruas conhecidas, a zona de conforto, assim, fácil. Mas como disse, por enquanto quero falar do começo da outra história e não do fim dessa.
Bem, como falei antes, as tralhas iam amontoadas na carroceria da camionete. Como iria para ficar, inicialmente, na casa de minha mãe, já sabia o que lá não tinha. Então, escolhi quatro cadeiras brancas, de plástico, para compor uma mesa de baralho na garagem, bem rente à porta da cozinha. Ela adora jogar Buraco e eu não tinha a intenção de fugir disso não. A mesa propriamente eu sabia que Mamãe tinha, portanto, não levaria outra. Mesmo porque já estava levando duas: uma para ler e escrever e outra para o computador. O computador estava embalado com roupas e toalhas para evitar qualquer pancada; nele iam arquivos das mais diferentes espécies como meus preciosos textos, poesias e começos de muitas histórias. Adoro começar histórias, não sei muito, entretanto, terminá-las; e isso era outra meta que queria alcançar em outras paragens.
Bem, junto às cadeiras, e havia ainda outra giratória para o futuro quarto/sala de estudo/trabalho para usar na lida de minhas novas obrigações – é que, até aquele momento, iria trabalhar numa faculdade – ia também outras quinquilharias. Por exemplo, misturadas às cadeiras e ao computador iam algumas caixas de livros. Essas foram cuidadosamente preparadas com livros arrecadados de amigos, em casa, e algumas dezenas de livros escolares das crianças que juntei por muitos anos, todos para doar para a biblioteca de outra cidade, foi onde nasci mesmo, a que consta de meus documentos. Então, tinha caixas marcadas “Fulana”, meu nome, e caixas marcadas “Cedro do Abaeté”. Umas dez, acho. Eu realmente tinha intenções muito boas com aquele recomeço. Uma aventura, me disse muitas vezes: tão boa essa idéia!
Então, junto às mesas, às cadeiras, ao computador e às caixas com os preciosos livros ia também uma lixeira seminova, uma gracinha, furadinha, para os papéis resíduos de minhas atividades porque agora arranjei a mania de não jogar o menor pedaço de papel no lixo. Vou juntando onde posso: em sacolas, caixas, enrolados em jornal até ter a oportunidade de doar ou vender. E cama e colchão. A cama despariei porque eram duas iguais, as de toda a adolescência de meus amados filhos. Dormiam os dois no quarto da frente, o das paredes mais altas, brancas, frescas que só. É um quarto interno com janelas dando para um espaço pequeno na sala, uma saleta de música como chamamos porque ali se amontoam violino, violões, potente caixa de som e o piano antigo, já comprado de segunda mão para a filha mais velha que foi passando, passando e agora quem usa é a mais nova. Ou melhor, usava. Essa optou por comprar um teclado eletrônico que pode levar daqui prá li quando descobriu que o piano não daria mais para afinar. A utilidade dele hoje é aparar meia dúzia de fotos de família que, aliás, já estão precisando trocar porque as carinhas que estão ali não são mais as atuais. Essas já podem ir para o “álbum de família”.
Falando essas coisas vejo que minha família é igual a tantas outras; me pergunto: como é que vivemos uma vida totalmente igual a todo mundo e ainda acreditamos sermos tão originais e especiais? Que paradoxo esse de sermos tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais?
Mas voltemos à camionete. Junto às mesas, cadeiras, computador, cama e lixiera ia um colchão, usado, com pequenos estragos, mas como a ordem era economizar até no ar da respiração, afinal em um momento de transição todo cuidado é pouco, o vesti com uma daquelas capas de malha fina com zíper que se compra em lojas de um e noventa e nove então estava até razoável; daria conta do recado que se esperava dele. E, malas, muitas malas; levando também e principalmente, ilusões. É que juntei parte das roupas da cidade e parte das roupas de roça. Faço isso sempre: um dia voltarei para o alto da serra onde nasci, então, vou fazendo pequenas coisas para "criar um clima" me digo rindo por dentro. Quero dizer, guardo vidros com tampa para pimentas, biscoitos; caixas de plástico dessas de sorvete, guardo para, quem sabe, mantimentos ou restos do almoço para o jantar, copos de vidro, muitos de todo tipo, um ferro de brasa, um minúsculo lampião, um castiçal quebrado. Coisas que não servem tanto para a cidade mas para uma casinha na roça enfeita e são úteis que só! Junto roupas de cama, agasalhos para a família inteira, talheres, pratos, jogos de xícara, gamelas, panelas, enfeites, quadros, livros e discos: especialmente guardados para a fazenda do meu sonho. Mas a maioria disso ainda está em Brasília; não daria para levar tudo nessa viagem além do que não existe casa naquela serra, por enquanto.
Então, nessas malas iam roupas de todo tipo, até umas que meu filho mandou doar, dessas tirei umas duas camisas de manga comprida que usaria um dia para cuidar de meu jardim, bem, todos sabem onde. Claro que não subi muito a montanha, mas as camisas usei para dar um trato no quintal da Mamãe... conto isso depois.
Em meio às muitas malas de roupas, e não sei como a camionete coube tudo isso, ainda ia um criado. Esse era de um jogo que ganhei da nora, era da mãe dela e não cabia no apartamento onde morava, então, de um jogo de cama com dois criados deles levei um enquanto o resto do conjunto está enfiado numa lateral do sótão da casa de Brasília esperando a hora de se mudar... Esse criado foi na frente porque poderia ser útil mais imediatamente, e, de fato, ficou servindo como apoio para uma fotografia de família inteira que, por sua vez, foi consolo para muitos momentos tristérrimos, uma caixa de papel com desenhos de flores cor de rosa e fitinha para as bijuterias, também escolhidas só as ideais para se usar no interior, e uma latinha também florida em azul para pequenas coisas como um brinco quebrado que vou consertar amanhã, aquele tipo de amanhã que nunca chega, um alfinete, um coração de crochê para fincar agulhas. Na pequena gaveta coloquei, quase com ternura, um pacote de cartas e cartões antigos, para as horas da saudade e comprovantes de minha história, um monte de CDs embrulhados com papéis coloridos, arte da caçula que passou dias gravando as minhas músicas, um pote de ungüento que a filha morena me emprestou para aliviar o pé inchado, cadarços – também guardo todos os cordões que encontro, até em alças de sacolas –, o remédio contra a hipertensão, um pequeno terço branco e coisas outras que não me lembro agora. Uma pequena prateleira, na parte de baixo, serviu para organizar os sapatos limpos de uso diário.
Os sapatos mais frágeis foram metidos em sacolas de pano; e os de usar no mato, mais tarde os acondicionei numa sapateira de plástico atrás da porta do banheiro externo. Para a cidade, levei sapatos para trabalhar, mas acabei usando minhas sapatilhas até ficarem imprestáveis tanto andei lá. O que também conto depois. Sapatos de festa não levei, exceção apenas de uma sandália de tirinhas finas combinando com bolsa pequena para uma eventualidade. As roupas também escolhi pensando no trabalho e nas fazendas: calças compridas confortáveis, blusas tipo camisa, saias gostosas, blusinhas macias, bermudas. Vestido de festa só um preto, também para evento ímpar. Casacos de frio levei muitos, inclusive porque juntei seminovos com alguns que vinha guardando, ano a ano, muito antigos, para o caso de ter a chance de dormir na serra. Lá em cima é bem fresco tanto que ainda tenho mais deles enfiados em sacos plásticos no armário de Brasília; e isso até me amola porque pode ter alguém precisando.
Por isso é que levei também roupas para doar; muitas. Mamãe mora perto da Vila Vicentina, um lugar que abriga pessoas deficientes que a comunidade sustenta ou pessoas idosas que preferem ter um canto com alguns cuidados e podem pagar por isso. Quando criança, conheci pessoas lindas lá. Gostava de ficar conversando com as senhoras de cabelos brancos: elas recostadas em suas cadeiras com almofadas de fuchicos ou em camas cheias de "dorminhocas"; eu costumava ficar encarrapitada nos beirais da parede e me agarrando às janelas.
Também levei pastas, papéis de rascunho, fotografias pequenas de todos os meu amores, os CDs preferidos, uma caixa com tampa pintada pela minha filha mais nova quando ainda criança como presente do dia das Mães cheia de sementes de ipê que ganhei na Conferência pelo Meio Ambiente que participei em Belo Horizonte, em 2008, uma minúscula pirâmide de pedra-sabão presente de um cliente do antigo emprego no banco, um elefantinho preto com enfeites dourados e rabo quebrado. Coisas de lembranças daqui e dali, de um e de outro.
Algumas pastas levavam manuscritos com idéias para os livros que quero terminar, documentos e diplomas porque talvez precisasse comprovar o tempo trabalhado para a aposentadoria que chegaria em breve. Os livros foram escolhidos quase desesperadamente: tive que deixar a maioria para trás porque sabia que não teria como guardá-los onde ia; mas levei, em caixas especiais, os que venho coletando com lições de como me tornar escritora. Também levei já os didáticos que poderia precisar para as disciplinas contratadas e que, com surpresa, descobri que seriam as únicas fontes de informações que teria por muito tempo: mais uma vez, salva pelos livros. De literatura, levei poucos porque a filha caçula também é leitora viciada tanto quanto eu, mas consegui separar alguns e levar para minha mãe. No fundo, eu tinha a esperança de poder ler meia dúzia estirada na rede, à tarde, vendo o vento balançar folhas...
De modo que, quando abri as malas e sacolas no pequeno quarto nu, descobri que o armário usado antigamente por um irmão que hoje, adulto e casado, não usa mais, não teria espaço para guardar aquilo tudo. Ainda mais que numa segunda espiada descobri que ele estava se desmanchando em traças. Isso conto depois também.
Assim foi que numa certa manhã de julho, uma camionete carregada de coisas e gente, minha filha caçula, o namorado e eu, muita esperança, um coração especialmente pequeno naquela hora, choramingante e excitado, rumou para o interior de Minas Gerais. Foi uma travessia, um ponto final de uma margem de significado intenso; e ponto de começo na outra margem: um lugar conhecidamente desconhecido que não sabia, ainda, que novo personagem chegava; personagem discreto que queria apenas um pouco de silêncio para se aprender de novo gente.
Novo personagem que faria parte daquelas paisagens tranqüilas dali em diante, que vinha com o coração aberto, ferido, que vinha apenas por si: do mesmo jeito de quando um dia dali partiu. Uma pessoa que decidira fazer o que tinha vontade, finalmente, apenas porque era algo que acreditava ser importante fazer para lustrar o que tinha por dentro o bastante para mostrar isso por fora.
Era um eu quase não eu que atravessava o Brasil para buscar o que acreditava ter perdido: o próprio valor, a própria personalidade, a própria vida. Fui com o propósito primeiro, portanto, de me encontrar. Era só isso que eu queria, um tempo para me conhecer, descobrir em quem havia me tornado nessa longa jornada até aqui.
“Voltar para casa” poderia me dizer isso e dar mais certezas para o futuro: era nisso que meu ser inteiro ruminava enquanto as paisagens se apresentavam rápidas à medida que a camionete vencia os quilômetros da estrada.

Por
Magda R M de Castro
Brasília – DF, 19 de março de 2010.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

DIA BRANCO

Imagino como seria virar uma esquina e enxergar tudo branco à frente. Nada de árvores, pessoas, prédios... tudo transparente, sem contornos, nada está lá. Me imagino esfregando os olhos, pisco, os faço lacrimejar, não adianta: não vejo o ponto de ônibus, ou o ônibus; não vejo a banca de jornais, nem as manchetes. A cerca do parque, o sinal de trânsito, o luminoso: tudo que sempre esteve ali, onde está?
Tateio no vácuo, estendo a mão, é frio? Não, engraçado, não é frio não. Não é nada, ou melhor, é o nada; do céu à terra, deve ser a terra. Um painel translúcido, claro, imóvel. Nada se move, pelo menos parece ser assim.
Olho de novo, tento ouvir; silêncio, silêncio também branco. Há vento? Não, também não...
Me viro, olho para trás: tudo igual ao que sempre foi. Estão atrás de mim os postes, os letreiros, a rua com carros passando, a cidade mais além, o portão enorme e cinzento, a alameda que me trouxe até aqui. Num movimento vagoroso dou as costas a toda essa realidade e, de novo, vejo à frente, o nada, álveo, ausente. Nem som, ah, mas tem cheiros? Talvez!! É mesmo cheiro essa sensação? Respiro fundo, achei alguma coisa. Não ouço nem vejo, mas parece que sinto um perfume, um aroma. É bom? Não, não é bom de jeito nenhum. Porque não é bom? Não é tão bom porque parece cheiro de rosas. Cheiro de rosas desmaiadas, colhidas de vésperas, enregeladas... e brancas. Estão tristes, parece, e são rosas mesmo? Nessa brancura, como saberia? Apenas sei, só não sei por que sei serem rosas brancas. Elas não têm, mesmo, cheiro muito bom.
Como estátua, quieta, olho para o pedaço de caminho que ainda resta sob meus pés. Como seria avançar adiante nessa brancura? Afundaria? Para onde iria? Não vejo nada além. Será que depois dessa nívea ausência tem algo palpável, visível? O que sinto? Medo, curiosidade, desespero pelo que sempre foi e desapareceu? Não, nem um nem outro. Não é possível sentir frente a esse espectro do nada... ah, não é verdade! Tenho sim gana, uma estranha força de tocar e ver o que acontece.
Estico as mãos, as que sempre conheci. Aos poucos, milímetro por milímetro, os familiares contornos, a pele traçada de marcas e sardas vão enbranquecendo, primeiro parecem se iluminar, depois desamaiam languidamente. Vão mudando de forma, se arredondam, perdem os traços conhecidos. A transparência vai avançando, os braços roliços vão se alongando. Olho novamente para os pés que acompanham os braços e me torno gigante, esticada, branca, vítrea...
Num súbito acesso, tento me voltar para a alameda atrás, buscando o portão agora parecendo tão mais distante, e descubro que estão tão silenciosos os conhecidos elementos que vi há pouco. Se distanciam ou diminuem de tamanho, algo também acontece além.
Ah, que coisa! Sei que meus braços estão aqui, tenho certeza! Vou alcançar aquela linda árvore de cachos dourados pendentes que vi quando vinha longe.

Magda R M de Castro
Brasília, 27 de fevereiro de 2010.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

QUERIDAS AMIGAS

Minha família, carinhosamente, nos chamou de bando de maritacas: cinco mulheres rodeando uma mesa de vidro forrada de branco enfeitada com pequeno vaso de flores, e cinco copos de cerveja. Cada uma queria falar primeiro, mais rápido, mais alto; cada uma queria contar, em sentenças didáticas, as últimas experiências. Falar em últimas, repenso, não somente as últimas, mas todas as novidades de desde quando nos vimos por último.

Trabalhávamos, as cinco, numa faculdade do interior de Minas Gerais; e aliávamos o trabalho ao divertimento, aliás, filosofia em comum: o trabalho também poderia ser diversão. Tanto que o veículo que nos levava ao lugar era carinhosamente chamada de “van filosofia”, o jantar depois das aulas era “encontro marcado” para desabafos, trocas, informações. A profissão nos unia em pensamentos parecidos, em concordâncias deliciosas, em experiências iguais que contávamos com coloridos particulares, sonhos... sim, esses também, iguais: a busca pelo desconhecido, a crença de que a pesquisa, a metodologia e os livros nos levariam ao melhor da terra.

Nesse encontro, domingo, almoço, cerveja, a copa da casa simples cuja cozinha quente cheirava com diferentes quitutes foi o cenário do encontro das amigas. Todas deixaram as vidas lá fora e trouxeram apenas as “próprias visões de mundo” e a disposição para descontar o tempo perdido, para rir, para ouvir e contar. E isso fizemos à vontade.

Eu tinha preparado a casa com flores, checado com detalhes a limpeza, escolhido com cuidado os ingredientes do almoço. No dia, cedinho, dei mais uma olhada em tudo; depois, fui escolher o vestido. Primeiro, me vesti de bermuda, muito à vontade, camiseta e sandália rasteira. Não, é dia de domingo com visitas, deixa por o vestido novo, nos tornozelos, florido como prefiro. A sandália também era nova com pequeno salto completei com pulseiras, perfume especial e batom: porque é dia especial, de amigas em minha casa.

Foi difícil reunir esse grupo, que até poderia ser maior. Só mensagens de e-mail foram 33, fora as independentes que não transitaram pela caixa postal e telefonemas. Era, portanto, algo especial essa reunião. Amizade é coisa bonita e nós cinco enfrentamos o conhecido afastamento imposto por características da profissão para continuar alimentando esse carinho. Carinho e amizade, aliás, foi um dos temas da rica conversa, discussão estaria melhor, não, ainda, um debate, tal a paixão e a contundência que falamos desses e de outros temas. Apesar dos pesares, manter a amizade é complicado, e, para isso, cada uma se propôs a enfrentar um desafio; escrever sobre essa tarde é o meu.

Então, voltando à amizade, falamos de um colega que nos acompanhou em nossas viagens que gostaríamos estivesse presente. Filósofo da vida, me atrevo a interpretá-lo agora, o que penso enquanto escrevo porque sempre quis defini-lo e nunca encontrei um termo certo, acho que esse agora pode fazer isso e não o magoará. Então, esse colega, amigo, resistente ermitão, que esteve fora fazendo doutorado e que defenderá sua tese em março, nossa, já, foi convidado, muitas vezes diga-se, para participar desses encontros, mas não pode, traduzindo-se em “não quis” vir. Das meninas, a mais próxima a ele, disse que quase o ameaçou, mas ele simplesmente respondeu que “teria gente demais nesse encontro” e não veio. Assim, essas mulheres, aproveitando para mais um brinde com os copos suarentos e fervilhantes, chegaram à conclusão de que ele era assim mesmo e que assim mesmo seria respeitado e admirando. Concluída essa parte, uma das moças contou como começou a assistir ao Big Brother Brasil 10. Ela explicou que, estando numa praia isolada com a família, inclusive uma cunhada, de repente, numa viagem à cidade mais próxima, os celulares, que andavam desligados, começaram a tocar desesperadamente. Amigos e parentes de longe avisando que a cunhada tinha sido escolhida para participar do show. O rebuliço foi em razão de a pretensa escolhida ser professora da UnB, pesquisadora, doutora em Linguística. No final, a história da cunhada no BBB10 não passou de engano.

Entre tanto o que falar e ouvir, cada uma falou sobre as ocupações mais recentes. Uma estava buscando aprender a meditar. Foi quando falei do livro “Comer, rezar e amar” que li nas férias. Outra falou da forma como encontrou a recente ocupação ao voltar a uma escola onde trabalhou há muito tempo e de como, de responsável por uma sala de vídeo passou a cuidar de duas salas de vídeos, do controle de atestados médicos, de representação do diretor em reuniões; aliás, falou de quanto essa escola era de vanguarda, um luxo. O tema seguinte girou em terno da situação das escolas; comentamos que os alunos da rede pública estão migrando para o ensino particular> Lamentamos essa realidade reconhecendo que não só a estrutura física das escolas públicas de Brasília, mas também a instituição em si e todas as suas propostas estão em decadência. Uma pena, concluímos; sinal dos tempos.

Outra falou de sua experiência com o ensino à distância, e também com o EJA, projeto de Educação de Jovens e Adultos. Duas trabalhavam com esse programa e até conheciam pessoas nos órgãos responsáveis. Ah, conheço fulano, você conheceu? É claro, e fulana, será que ela ainda está lá? Falaram de uma escola especial na Samambaia onde muitas tiveram rica experiência. Nessa hora, confesso que boiei porque não conheci essa escola e não trabalhei na rede pública de ensino; conheço como aluna e minha experiência sempre foi muito boa. E meus filhos preferiam as escolas públicas como o Colégio do Setor Leste, a Escola de Música, o Centro de Línguas: todos aqui em casa os frequentamos e somos gratos.

Nesse encontro, como nos afastamos em dado momento da faculdade onde trabalhamos juntas as novidades eram infinitas. Outra tinha sido convidada a coordenar um núcleo de educação infantil, e para isso, recebeu carta branca; isso foi o que pediu para aceitar. E que bom para nossas crianças! Aliás, competência é o que não falta pra essas meninas.

Quanto a mim, contei a riquíssima experiência de morar cinco meses com minha mãe, noutro interior de Minas Gerais. A resposta de minhas amigas é que foi experiência muito rica, ao que concordo plenamente. Contei da milagrosa chance de poder ficar junto da pessoa da qual estive longe por muitos anos e que, afinal, era minha mentora, pois dela tirei as lições mais importantes que me guiaram na vida. Contei das pequenas coisas, de como ela me mandava sair do sol – limpei e plantei o quintal da casa dela, com muito afinco, de modo que quando vim embora, plantas e flores estavam no lugar de cacos de vidro e pedras. Ela me chamava a atenção pela hora de ir para a escola do mesmo jeito que fazia quando eu tinha quinze anos de idade; e se em algum momento achei que ela me tratava como criança, a ternura com que ela fazia isso era tão grande que meu coração transbordava de gratidão. Me senti bem demais estando juntinho de minha mãe depois de tanto tempo. E não deixei por menos: fiz tudo que pude, inclusive, depois daqueles meses, minha mãezinha poderia ir ao quintal para pegar cebolinhas, salsas, quiabos, couves, abóboras, e outras coisas, sem perigo de tropeçar. Também, em breve, poderia colher amoras, jabuticabas, romãs e acerolas. Contei que ajudei a organizar os papéis dos bens dela, a negociar impostos atrasados, a organizar e higienizar melhor a casa, a dar dicas de plantas mais adequadas pro quintal. Contei do prazer de acordar cedinho com o cheiro de café quente e biscoito de queijo, abraçar a pequenina mulher de cabelos brancos, titubeante, mas muito lúcida. Contei que a acompanhei na dieta, que caminhei como uma desvairada pelas ruas centenárias, muitas vezes à noite depois de dar aulas, sem um pingo de medo. Contei que passávamos horas, minha mãe e eu, jogando baralho, eu, em segredo, desejando que me contasse as histórias de antigamente, a vida dela inteira; e ela contou. O que aconteceu foi que conheci uma mulher linda e se eu já a amava agora a admirava e mais que nunca era grata por essa chance.

Voltando à reunião regada à cerveja, a conversa virou para os filmes, inclusive, o quanto amamos Avatar; e também sobre um que uma foi assistir com um amigo e como ele dormiu de roncar e daí teve que ir embora antes do final. Outro filme que ficou constatado ser paixão geral foi “O último dos moicanos” com Daniel Day Lewis, e ainda, o “O último samurai” com Tom Cruise; hum! Agora que percebo outras coincidências...

Eis que nessa reunião de cinco amigas todas estabeleceram desafios: uma jurou que ia mesmo aprender a meditar, outra a fazer ginástica cedinho, outra ficou responsável por organizar o próximo encontro, outra por terminar de ver o filme e depois contar para as outras.

Do bando, não de maritacas, mas de mulheres felizes e inteiras, competentes, que contribuem com seus talentos para melhorar o mundo ao redor, reunido numa roda de cerveja porque ninguém é de ferro, e mais tarde às voltas com saladas e molhos, peixe e suflê, mousse de cupuaçu e sorvete, ficou o sabor do prazer em estar junto, tanta gente tão linda. Ficou a lembrança da alegria compartilhada, de estar ali apenas por ter escolhido assim, da saudade aliviada, das novidades tão ricas.

Marcamos o dia do próximo encontro com o compromisso de não deixarmos nos envolver por coisas que nos impedissem de estar presentes. Trocaríamos mensagens sobre o local, o horário, a forma que poderia ser happy hour, branche, almoço, café ou jantar; à tarde, à noite, não importa, nos encontraríamos: a promessa era o que se fazia urgente, por enquanto.

Beijos, garotas! Nos veremos em breve!