sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

DESPEDIDA DE SOLTEIRO

A festa do tipo “boca livre” com fartura de comida boa e cerveja gelada comemora quarenta anos de casamento dos pais de quatro jovens ali nascidos e criados conhecidos companheiros de fugas para o rio, de galinhadas na madrugada, de times de futebol e vôlei, passeios pelas redondeza.

O salão está apinhado de amigos, parentes, políticos, fazendeiros, celebridades, anônimos, todos parte da família. As janelas até o teto alinhadas às longas paredes escancaram a noite quente do alto janeiro. Mesas redondas estão decoradas com vasos de mini rosas naturais e botões coloridos. Toalhas de cetim adamascado seguem as cores das tiras largas penduradas do teto ao chão imitando tenda de circo.   

A banda toca músicas de todos os tipos e casais tentam acompanhar a sucessão de diferentes ritmos, numa mistura de risos, batidas de instrumentos e pisadas no chão encerado. Um som mais romântico leva para a pista maridos e esposas; a balada traz dançarinos que começam em duplas e terminam em bandos desarticulados, e felizes. Qualquer música mais conhecida faz com que a pista se transforme num pandemônio de pessoas se divertindo; juntos, dançam sem constrangimento ou coreografias avós, pais, filhos, primos. Sempre que uma música termina, as palmas fazem eco com gritos de "Mais! Mais!".

Vez ou outra, aparecem brincadeiras como as danças do chapéu e da vassoura. De feltro marrom escuro com fitas em azul e vermelho terminando em bolas douradas tilintantes, o chapéu passa de cabeça em cabeça. O homem que o recebe cede a dama com quem dança; alguns fazem de conta que estão zangados e todos saem rindo e dançando.

Na dança da vassoura, as mulheres escolhem o par; proibido recusar convite. Dessa vez, até as mais recatadas puxam para o salão jovens e cavalheiros, casados ou não, de preferência, um "pé de valsa".

Comida boa, salão lindamente decorado, música inebriante, bebida com fartura e o calor da noite não deixam espaço para que ninguém fique de fora da festa.

Recostado a uma das pilastras redondas, um rapaz moreno de olhos verdes encravados no rosto de ossos grandes e salientes observa o burburinho segurando displicentemente uma tulipa alta pelo meio de cerveja gelada. Veste camisa polo marrom de riscas horizontais, o que quase lhe confere um ar ameaçador. Parece tomar fôlego das brincadeiras quando dançou sem parar; e repensa detalhes. Em especial, o da moça que o convidou: esguia, rosto com suaves marcas, encantadoras, de acne, longos cabelos negros cheirando a flores, vestido azul com pequenas estampas geométricas indecifráveis à meia-luz. Os braços roliços e fortes seguraram com firmeza o rapaz nos muitos passos e o casal pareceu outro enfeite da festa, tanto, que os demais dançarinos deram espaço e evitaram incomodá-los com vassouras ou chapéus por várias danças.

O rapaz se lembra que se separou dessa dama apenas no intervalo pedido pela banda; e do olhar direto e firme que recebeu em silencio na despedida. Sorri para si: “tão bom isso tudo!” Contente, dá voltas pelo salão lotado. Cadeiras sendo arrastadas, murmúrios de cansaço, pessoas se abanando, risos: o jovem abraça e beija mulheres ou crianças, faz elogios, dá tapinhas nas costas dos homens. Circula desenvolto: está em seu lugar, aqueles são os seus amigos e aquele é o mundo ao qual pertence.

Anunciam o discurso do marido agora casado de novo. Emocionado, o homem sobe ao palco e já embalado pela cerveja, fala, ri e chora. A cada frase, gritos simulam vaias para disfarçar a emoção. Ele chama a esposa, se ajoelha, pede-lhe perdão e jura amor eterno. Com olhos brilhantes, ela o acolhe num abraço roliço e enrugado parecendo conter toda a paz do mundo; todo o abrigo do mundo.

A emoção quase vira lágrimas, então, um dos filhos passa a apresentar os nomes dos presentes e dos ausentes: todos que fazem parte da história de amor que agora se renova. Um ou outro convidado também parabeniza os novamente recém-casados até que alguém chama para o bolo; a banda volta ao palco e a festa recomeça.

O rapaz moreno é envolvido por matronas e moçoilas que o conhecem como bom dançarino. Enquanto a música toca, mal consegue surrupiar alguns copos de cerveja. Por duas dessas vezes, vislumbrou a moça de azul dançando com um rapaz bem vestido parecendo muito à vontade. Mais tarde, no caminho para o banheiro, ao sentir o perfume de flores, ouve uma voz: "você é casado?". A resposta e firme, rápida: "não"; e a voz desaparece.

Distraído pela alegria, pelas brincadeiras e flertes, o jovem fica na festa até o ultimo acorde. Sai sozinho dirigindo o carro por ruas vazias. Se sente feliz tanto pela festa boa quanto pelo final de noite silencioso.  “Ah, vou dormir até o meio dia amanhã; tão bom estar de folga!” Lembra-se que tinha telefonado para o pai dizendo que viria e esse disse que ficasse a vontade: ia pescar. Perguntou da família “Não, vou sozinho.”

Sim, não falou pra ninguém em casa sobre a festa: queria se divertir, fugir da rotina. Estava cansado de problemas, queria ficar livre naquele fim-de-semana para fazer o que bem entendesse.

Rastros de luz do amanhecer pontuam o céu quando o rapaz para o carro em frente à casa do pai. Os faróis fazem contraste com o resto da escuridão: a penumbra não lhe permite ver o vulto que se aproxima; sente perfume de flores. Ainda no carro, recebe um beijo no rosto e outro na boca. O vulto se esgueira ate pequena varanda; espera em silêncio que o rapaz trêmulo estacione o carro e encoste o portão.

A porta da casa é aberta por dois corpos de lábios colados com pausas apenas para respirar; do lado de dentro, um pé a arremete com estrondo ao portal.

O sexo, o primeiro, acontece entre a mesinha de centro e o sofá duro e quente em meio ao lusco-fusco da manhã. Não há tempo para pausa: os lábios continuam percorrendo corpos nus e suados entre gemidos e gritos. A segunda vez acontece na cama mais próxima. Num frenesi, tudo se repete muitas vezes até que adormecem exaustos.

“Que calor!’ Pensa o jovem acordando. “Será que é meio dia já?”. Se lembra imediatamente da noite anterior: vê que está sozinho na cama estreita. Raios de sol atravessam fenda discreta da janela basculante entreaberta. Recosta-se aos travesseiros suspirando satisfeito ao lembrar-se das últimas horas, em detalhes.

Talvez tenha cochilado mais um pouco porque num dado momento ouve o pai chamando da porta: "Filho! Acorda! Seu carro ficou a noite toda com os faróis ligados e talvez dê problema para ligar. E olha! Não demore! São quase seis horas da tarde e como você tem que ir embora hoje, vai ter que viajar à noite, coisa que não gosto”.

O rapaz se surpreende e isso o desperta de vez. Toma banho, enfias as roupas de qualquer jeito na mala pequena, daquelas para coisas de academia de ginástica e só ao colocar a escova de dentes na abertura lateral é que vê o bilhete.

O coração dispara: "a mulher da minha vida me deixou o telefone!". Agarra o papel minúsculo, já imaginando como faria para se separar da mulher com quem vive e começar nova vida ao lado daquela deusa. Para aproveitar mais a alegria da boa expectativa ainda abraça o pai e toma café; coloca a mala no banco de trás do carro. Com o bilhete numa das mãos, apaga os faróis e dá partida ao motor: a reação parece uma pessoa com raiva; ele entressorri.  Desliga, pisa e solta o acelerador, gira de novo a chave: o motor ronca forte.

Enquanto deixa o carro recarregar a bateria, tranca a porta e, devagar, como a espreitar do buraco de fechadura, desdobra o papel. Não compreende imediatamente. Dobra de volta, devagar, o bilhete, se recosta no banco, respira fundo: não acredita nas palavras escritas. Se esforça para ler de novo e só então assimila a mensagem: "Obrigada pela minha despedida de solteira!".

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