sábado, 13 de setembro de 2008

GOOD MORNING, BALTIMORE!!

Foi essa música que me saltou da memória, automaticamente, assim que acordei. Eram 7:48 da manhã; e estava tão claro, mas tão claro que achei ter dormido demais e fosse meio-dia. Assim que abri os olhos, as faixas de luz entrando pela persiana entreaberta escancararam a iluminação translúcida. Durante a noite, acordei de vez quando; espiei a rua como o ladrão espia o que pode roubar, talvez por isso quase perdi a hora.

Assim que acordei, fiquei alerta como quando se vira o olhar para observar nova paisagem: emoções prontas, lembranças, futuro, presente. Um presente meio incerto, que venho tentando superar em teimosos passos arrastados, puxando canga, quase, insisto em avançar. Meu passado e tão rico que permeia o presente e parece fazer parte do futuro: às vezes tenho a sensação de estar vivendo, outra vez, experiência antiga; ou que pessoas longe no tempo e no espaço estão ao toque de meu olhar.

Isso assim, imagino, tão estranho! Tão estranha me acho vez ou outra; não uma estranha de três pernas ou cabelo verde, mas incompreensível tanta teimosia; dessa vez, é teimosia. Abomino não conseguir que o vazio tome conta das perguntas insistentes, das dúvidas que me perseguiram até aqui e que não têm, não têm mesmo, o menor sentido, como se um emaranhado de cipós me prendesse a coisas mortas.

Acho que foi isso, por ainda não ter desembaraçado as amarras que não consegui falar com ele. Andei pelos vãos do teatro depois do show, falei com pessoas perto, mas não consegui encarar o rosto. Venho fazendo o trabalho cirúrgico de relegar a imagem ao mais profundo ostracismo, há quase dois anos, entretanto, não consegui enfrentar a besta-fera; seria prova de maturidade falar com ele, mas não fui capaz, não ainda.

Sabia que iria encontrá-lo lá: era a estreia do show da caçula. Perguntei quando o pai iria, até brinquei que seria bom irmos em dias alternados para que tivesse sempre alguém que a amava na plateia, mas era o primeiro dia de muitos significados; sabia, pois, que estaríamos no mesmo recinto, ao mesmo tempo. Então, pensei me preparar como uma lady: retocar as raízes brancas do cabelo, fazer massagem, pintar as unhas ou passar o dia lendo para estar calma na hora fatal. Correndo daqui e dali, organizando roupas, adereços, comidinhas, e evitando estresses em casa, hora ou outra me distraí, sim, mas, sem avisar, lá vinha o espinho fincado: vou vê-lo!!!

Mesmo não fazendo as coisas que pensei fazer, razão de tantos afazeres mais importantes, a bendita noite chegou. Minto, fiz uma coisa: cheguei cedo. Aboletada na primeira fila, me dispus a não olhar para trás. Vi quando a amiga ao lado acenou para alguém, mas me recusei a ver quem era. Não era, sabia, quem gostaria de ver. No final, afinal, não vi, o que é até engraçado.

É que pavoneando entre as pessoas, cumprimentando os artistas, emocionada por ver a filha driblar notas e trejeitos no palco provando ser a artista que é, não o vi. Sentia a sombra, a presença fátua de névoa indecisa ao lado de amigo de minha infância, padrinho da estreante. O amigo estava de muletas, não podia descer o chão inclinado da sala, então, fui até ele, ao lado do dito cujo. Ouvi a voz pertinho, mas não tive forças para direcionar os olhos para aquele rosto. Não pude fazer isso de jeito nenhum; sentia a presença, ouvia a voz falando com meu filho, sobrinhos, nora, conhecidos comuns. Estava tão perto que podia ouvir tudo, mas só isso consegui. Ouvir o som, ouvi sim, mas fiz de conta ser cena no palco: não era comigo, não me dizia respeito, não precisava encarar; e não encarei.

Depois dos cumprimentos e de combinar o barzinho para comemorar, saímos para o estacionamento. O carro dele estava perto: a silhueta se deslocava no mesmo rumo. Acompanhei filho e nora de quem ganhara a carona e entrevi, no lusco fusco da noite brasiliense de muitos postes de luz sobre muitas copas de árvores que ele estava numa camionete. Disfarçada pela miopia profunda, via apenas entrecenas e senti as vibrações do barulho: quase apalpei a força do motor a diesel rasgando o espaço. Pensei na camada de ozônio...

Quando meu filho manobrou para pegar a pista, percebi, num relance, as luzes traseiras da camionete à frente. Era fila indiana com cada carro saindo por vez, então, aproveitei para me recostar ao estofado de couro e relaxar, e evitar olhar. Me recusei a ver detalhes do carro, como cor e placa: iria ficar procurando pelo trânsito por um igual, assim como faço com os homens: pode ser ele. A fuga está sempre preparada tal o pânico ante a possibilidade de encontrar aquele rosto. É aterradora a perspectiva de dar de cara e não ter como desviar o olhar. Ah! Não! Me recuso a alimentar esse ciclo doentio!

É por isso que ando escolhendo que caminho andar, o que e com quem falar. Já tem presença demais, ainda tem traços de intimidade demais: por mais que me organize, me reestruture, a presença imaginária anda comigo lado a lado. Ironia, presença imaginária: “a força do hábito”?

Às vezes me deixo levar por cada pensamento doido que quase me interno no hospício. Só doido para pensar que ainda não superei totalmente esse episódio da vida e olha que já estava acostumada a viver tão totalmente só. Ei, você continua do mesmo jeito, Sá! Assume! Não há razão para continuar pensando nele: se foi, busca a paz, a felicidade que disse querer e tem razão em tentar, merece o melhor, como todo mundo.

Quase posso ver o riso no meu rosto ao pensar assim. A salvação é que a penumbra me torna invisível. Quando os carros chegam à L2 e param no primeiro semáforo, ficam lado a lado. Sabia disso apenas seguindo o barulho do motor a diesel e meus instintos. Fiz de conta que cochilava, de olhos fechados, mas estava atenta ao movimento lá fora. Quase pedi para meu filho avisar quando se afastasse o suficiente para eu admirar a linda noite de Brasília já cheia de prenúncios de Primavera, mas me contive. Meu filho não precisava saber do que ia por aquele coração jogado sobre as poltronas escuras atrás dele; meu menino querido não merecia parte desse peso, não mais.

Seja porque cada um pegou uma direção, seja porque meu filho escutou minha alma, numa dada altura, ele acelerou e se afastou. Foi minha pele que sentiu distanciar o ronco agressivo que vinha nos acompanhando. Imediatamente, voltei os pensamentos para o que vinha a seguir: um barzinho moderno, o “Pipa” de um amigo de meu filho. Homem agora esse amigo, que frequentou nossa casa em tempos de adolescentes, tantos, a preenchendo de alegria. Bons tempos aqueles!!

Bons tempos também esses, de pessoas que vi nascer e crescer, se tornando adultos de sucesso, lutando com tudo que têm direito para encontrar o próprio destino. Bons exemplos esses, penso recostada na cadeira de madeira que ficaria perfeita numa casa de campo em serra silenciosa: “talvez seja a hora de aprender com esses meninos”. Olho ao redor e vejo gigantes, filhos de Brasília, personagens da cidade onde “jorra leite e mel”: aqui têm as chances de se tornarem os melhores entre os melhores.

Satisfeita, observo os rostos à mesa. Sem medo agora, vejo, olho de pertinho com olhos bem abertos, rostos divinos que riem e brincam num lugar lindo falando de sonhos. São protagonistas da vida que acontece agora; a minha, penso com alívio, é passado remoto. Aconteceu no devido tempo, do jeito que consegui fazer e os frutos são exatamente os que mereço, deliciosos, aliás, e que estavam pertinho, ao alcance de um afago.

Sim, tenho o luxo, a plenitude de estar viva num tempo de contornos diferentes do que imaginei, mas mesmo assim muito boa. E quem somos, afinal, para nos atrever a querer coisas que não têm nada a ver conosco? É o universo, a energia do mundo que nos leva para o caminho certo. Claro nem sempre aceitei tudo passivamente, principalmente quando o estado de coisas me cortava em fatias finas e me sangrava em demasia. Então, “taquei o pé no balde” como costumo dizer, uma vez ou duas. Vezes houve, sinto, que nem tudo foi escolha minha, mas a mim coube escolher entre viver plenamente ou perder a passagem do trem.

Lembrar que escolhi não perder o meu trem, mesmo com o preço raro que paguei, dá vontade de rir de novo; é que perdi o avião uma vez. É porque estive tão ausente da realidade, proteção contra a dor, mas não agora: tudo se expande, tão nítido, tão iluminado; acho posso até ler pensamentos.

Pensar assim dá vontade de sair dançando tal a alegria que me toma. Agora não é teimosia, mas penso que se dependesse de mim, pegaria todos os trens, portanto, está fora de cogitação deixar essa noite ser menos do que é por causa de um passado esmagador. Especial noite de Inverno, esse nos últimos embates com a Primavera, que comemoramos, os que de nós estão juntos, a carreira de nova musicista. Não dá, absolutamente, para me arrepender de nada, para reclamar e, não cabe de jeito nenhum, ficar triste. É que foi linda estreia, o que terá ótimos desdobramentos, acredito piamente.

Acredito, também, não mais em contos de fadas, mas em contos de bruxas porque em todas as histórias que me contaram ou li, a alquimia deu o empurrão para que a heroína fosse resgatada do dragão e vivesse feliz para sempre. O meu resgate foi obra da alquimia porque não vi nenhum herói de armadura. É que, ao avaliar minha vida em profundidade, me descobri vestindo o traje da bruxa: aqui e ali me deparo com fuligem, um cinza, um chapéu torto.

Ora, que seja, mesmo não sendo a vida o que imaginei um dia; paciência. Mesmo assim, acho que a visão lá de cima voando numa vassoura também é válida, como tudo o mais é válido; inclusive, me preparar para ver o show de novo amanhã com a diferença de poder olhar de perto todos os rostos desta vez. Bravo!
Por Magda R M de Castro Brasília, 6 de setembro de 2008.