sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O ÚLTIMO AMOR

Não se vê, ou, não se ouve tanta história de último amor como se ouve de “primeiro amor”. Por que será? Talvez seja porque nunca se tem certeza de que será assim: poderá haver outro enquanto houver vida. Falo do amor de paixão, do gostar com a alma. Há tantas histórias de primeiro amor, mas não vejo muitas de último. Há, muitas vezes, a condição de que para ser grande, o primeiro amor tem também que ser o último.
Isso seria uma tragédia, não um romance. Aliás, tragédia é quase sempre o primeiro amor. Talvez pelo contexto, tempo ou incapacidade das pessoas em compreendê-lo. E ele pode acontecer enquanto estamos olhando para outro lado, admirando outras paisagens.
Também talvez seja assim porque o amor não vem em carta de correio: “o amor está chegando. Viva-o!”. Tentar defini-lo também é perder tempo e talvez fôssemos mais felizes se apenas apreciássemos o sentimento; não somos assim, apesar de estarmos a caminho.
Talvez por isso existam histórias de amor conhecidas através dos tempos. O mundo gira, vemos trabalhos científicos ganhando prêmios, a tecnologia evolui maravilhas, e ainda uma história de amor emociona.
Mas, poucas são histórias de último amor. Porque é quase tão difícil termos um único amor por toda a vida quanto defini-lo. A caminhada nos traz perdas de muitas nuances e sim, há também os ganhos, os temos todos os vivos. Mas a nossa trajetória completa tem pontos de interrupção, de fratura daquilo que imaginamos para nós no início. E esses pontos quase sempre envolvem os amores, de todos os matizes, que nos marcam para sempre.
Talvez por isso não se fale em último amor. Ainda pode não ser o último, como poderíamos saber? E se soubermos por que falar dele? Se já tivermos cabelos brancos quem entenderia? Velhos apaixonados? Coisa rara se ouvir dizer. Entretanto, é perfeitamente possível amarmos até o último dia, por ser o amor a nossa essência.
Não se falar de amores últimos também pode ser em razão de os personagens serem mais discretos, experientes, e preferirem viver suas paixões mais intimamente: é certo que elas existem em qualquer idade.
Já vi algumas histórias lindas, li duas numa reportagem de jornal, possivelmente há exemplos clássicos que por hora não me lembro, mas essas são em menor número em relação às do primeiro amor. Então, falo aos meus botões, imaginando como se diria ao último amor. “Viveram felizes para sempre” não seria um bom slogan. Esse “sempre” soaria falso. “Até que a morte os separe” poderia ser até cruel dizer.
Mesmo assim, me atrevo a imaginar esse último amor. Creio que esse sim poderia ser chamado de amor. Aquele que é calma, que organiza desarranjos, que diminui o movimento, que desacelera a busca. Aquele que aconchega em silêncio, que aquece sem apertar. Leve, sossegado, que não faz perguntas, que já superou vaidades e medos. Portanto, talvez o maduro seja o que mereça esse nome: amor verdadeiro.
Quanto a mim, uma viciada em amor, saberei quando sentir o último: não vai doer como outros vivi, não vai se transmutar em ira. Vai ser só paz. Despedida não terá, sei, que mesmo já sendo hora da partida final, estará comigo. Vou cuidar para que seja assim, e bonito mesmo assim.
Viver um último amor, creio, é sem ciúmes: é amor de cerne, de profundidade; não contará a beleza física, possivelmente; nem haverá insegurança ou competição; não caberão mentiras ou máscaras: teriam se esgotado antes.
Com o último amor não se assinará contratos. Se precisará de tão pouco, casa e comida, finalmente, o amor e uma cabana. Deve existir, no último amor, calor e diálogo: que mais se poderia fazer?
Um último amor será o melhor amigo, porque será presente: o futuro poderá não alcançar o café da manhã. E se assim acontecer, como derradeiro, poderá também se desvanecer com o Ângelus. É nessa hora que se reza e agradece a passagem do dia na preparação da noite. É a hora de agradecer também o passado, outros amores, e especialmente, o último, esse, acima de todos os outros.
O último amor estará acima de todos em razão de ser intenso para compensar que não acompanhará pela vida afora. E, sobretudo, porque é o que estará nos preparando para a morte.

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 15 de agosto de 2008.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O DIA EM QUE MORRI

Foi no dia em que fiz aquela pergunta. Poderia tê-la evitado, poderia tê-la ignorado. Poderia, mas não pude. Ela martelava há muito tempo, tinha ficado na berlinda por muitos anos, disfarçada, camuflada pela vida seguindo em correnteza levando tudo a reboque.
Eu ainda não tinha me agarrado ao barranco para dar tempo de puxar o fôlego ao máximo, fosse para avaliar a velocidade da corrente fosse para reconhecer ou admirar o lugar para onde estava indo longe. E a pergunta ficou submersa, distraída entre os apetrechos, até que a pronunciei: “Você tem amor e carinho para me dar?”
Quando disse essas palavras, em voz alta e clara, e firme, e não o grito que pensei fosse dar, tudo veio junto: um amontoado de silêncios trepidantes, pedaços de palavras coladas em pedaços de passado, enxurrada de tempestade. E um mar escuro, escoando de ferida purulenta.
Fazer aquela pergunta me esvaziou das dúvidas tantas pareciam se somar umas às outras, ininterruptamente. Perguntar sobre amor destampou a boca do poço, esse, seco há anos; e descobri que ali tinha crescido alta floresta de ervas daninhas.
E o ímpeto da pergunta fez todo o resto acontecer rapidamente ainda que eu já soubesse a resposta há muito tempo. Não tinha tido ainda coragem de perguntar porque sabia que depois de ouvir a resposta teria que escolher qual parte de mim viveria. Escolhi a parte verdadeira, então, meia de mim se foi com a correnteza, para sempre.
É que, decidida a não continuar no mesmo rumo, me icei à margem: “é aqui que paro!” e o rio seguiu também esvaziado de mim e de minhas mazelas. Mesmo assim, levou muitas coisas minhas, as que não tive forças para segurar. Ainda tentei pegar algo aqui e ali, mas o trabalho no porto era inadiável. Construir um abrigo com o que resgatei era premente. Ainda assim, vez ou outra, perscrutei a correnteza, reconheci a importância de tantos e tantas. E as distribui para os lugares onde cada uma devia ficar.
Também eu fiquei só parte: tive a audácia de trocar de lugar, de escolher, de me reorientar. Tenho saudade da parte que se foi rio abaixo, às vezes. Me lembro dela dependendo de quem vejo, com quem falo e de qual caminho pego.
Entretanto, quando isso começa a incomodar, volto-me para observar a paisagem. É alívio que sinto quando a vejo ligeiramente vazia. Por enquanto, porque estou semeando um novo jardim, erguendo novo tempo para quem está ao meu lado, que seja para mim mesma e meus personagens de recordações. As boas recordações, diga-se, porque as ruins foram tragadas para o fundo das águas velozes, metáfora da vida que não quis mais viver.
É serenidade que sinto quando vejo que preencher esse espaço que escolhi para atracar, pouco a pouco, parece agradável perspectiva.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, 11 de agosto de 2008.

FALANDO DE AMOR E INSUFICIÊNCIAS

Essa é minha sina: falar de amor. Rodo, rodo, e me quedo, de novo, falando de amor. Já falei de ódio também, mas pouco. O amor vem me vencendo, vencendo o meu tempo, meus medos e minhas, muitas, insuficiências.
Insuficiência, por exemplo, de mim, daí, tenho que me voltar para o amor porque me vejo nele. Fico colossal quando tem alguém para eu amar por perto. Precisa mesmo ser perto porque também sou insuficiente total quando tenho saudade. Fico pequena, pouca: saudade me quebra toda.
Sou insuficiente também de medidas. Acho que, quase, tudo é possível, mas não tenho imagem completa de mim na cabeça: olho com cuidado detalhes em porta-retratos para me ver. Mesmo assim, fico cismando: a pessoa que está ali não é a mesma dentro de mim. Por mais que tente, não consigo me ver como nas fotos: me entendo bem mais complicada do que aqueles risos de xis.
Também sou insuficiente de senso de ridículo: acho tudo lindo, que todas as pessoas são tão legais! Ainda sou insuficiente na percepção do espaço ao redor: levo tempo para descobrir que já poderia ter ido embora. Geralmente, quero mais um dedo de prosa, mais uma dança, mais uma taça de vinho. É que as coisas boas são tão boas... não gosto de encerrar coisas boas.
Isso me lembra a adolescência. Minha mãe tinha mania de me botar para dentro de casa pelas nove da noite: “hora de dormir, amanhã é cedo!”. Interior, rua de terra, sem iluminação direito, cansei de arrancar a unha do dedão jogando queimada só com a luz da lua, mas pior era ter que ir dormir.
Mas havia insuficiências minhas nas brincadeiras também: tinha que ter porque os meninos nunca me queriam por perto, fossem meus irmãos e primos, fossem os garotos da escola. Para jogar, tinha que dar birra. E ainda não compreendia porque minha presença era tão insuficiente. Nem hoje sei a resposta. E minha coragem é insuficiente para perguntar.
O que nunca foi insuficiente foi minha capacidade de gostar. Ah! Isso fiz muito. Não digo além da conta porque amor nunca sobra, mas não consigo medir, já falei dessa, o quanto já amei. Todo tipo de amor. Um dos mais bonitos, o mais antigo, foi pela minha Mãe: jovem e trabalhadora, cuidando de uma ninhada de filhos, ela era o meu milagre. Depois, amei meus irmãos e irmã. Vivia esperando que chegassem do trabalho, do colégio, da roça. Eram meus ídolos. Depois foram meus primos, uns amores bons outros nem tanto que daí já se misturava outras coisas que nem de longe eram amor, mas na insuficiente leitura de mundo, fiquei caladinha sobre um ou dois acontecimentos confusos: instintivamente achava ser assuntos de gente grande.
Mas compensou tudo o amor pelo meu avô paterno: mistura de irmão, pai, amigo, avô mesmo, de paz e amparo para a garota carente até os ossos. Acho que então foi que começou essa fome de amor e foi porque ele substituiu meu Pai, que foi embora, que o amei tanto.
Amar homens nem preciso dizer das insuficiências. Um a um que conheci me quebrou um pedaço. Cada vez que amei um me gastei, ralei verso e anverso. Mais tarde descobri que foi porque esqueci de amar a mim mesma. Só desde recentemente estou compreendendo o quanto me desamei achando que só poderia ser digna de apreço se tivesse publicada em revista, olha que besteira!
Me transformei no puro amor quando me tornei mãe. Meus filhos, um presente depois do outro, me ensinaram o tipo mais completo de amor. Só depois deles compreendi como é amar sem insuficiências.
De um tipo ou de outro, por amor, ofereci tudo que tinha, fosse alma, fosse pão. Ofereci alegria, fé, casa e cobertor. Emprestei quando não pude dar, mas sem marcar datas de receber. Fui e deixei ir sempre que assim se quis. Perdoei tantas vezes foi preciso: para perdoar não sou, mesmo, insuficiente.
Foi por isso que aprendi a me perdoar também: por ter errado o alvo do meu amor tantas vezes; por tê-lo gastado em corações mesquinhos. Me perdoar por não me amar o suficiente, linda, especial nesse jeito de ser apenas meu. Devo me perdoar por tantas vezes me trai quando ri sem querer da piada de mau gosto, quando me calei ao desrespeito, quando fui contra meus valores. É que ainda era insuficiente de mim.
Estou compreendendo agora, me olhando não em espelhos, mas nos olhos de quem me ama, de quem está pertinho de mim. É que, felicidade! tenho agora a oportunidade de me redimir desse engano e deixar transbordar todo o amor que tenho por todas as criaturas, inclusive eu, ainda tão insuficiente.

Por Magda R M de Castro
Brasília, 15 de agosto de 2008.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O PERDÃO NOSSO DE CADA DIA

Todas as atitudes têm conseqüências; as melhores e as piores decisões têm conseqüências. Essas podem ser ruins, boas ou indiferentes. Geralmente, é bom para um e ruim para outro. Esse balanço entre os interesses de cada um é que põem, na arena da vida, as derrotas e as vitórias. Por isso não se pode ganhar sempre. Todos devem ter o seu espaço, o seu momento e sempre as decisões nos levarão a um ponto. E nesse, teremos arrependimentos e glórias; não há por onde escapar.
Mesmo quem cometeu o pior dos crimes tem o seu papel: representa o mal e esse papel pode ser o de nos lembrar do bem, da importância de sua busca e prática, portanto, o mal estar sempre à vista ajuda a nos lembrarmos dele.
Cada atitude vai redundar noutra atitude, noutro ato, numa reação positiva e numa negativa. As frases feitas de “não se pode ganhar sempre”, “há males que vêm pra bem”, e outras, traduzem esse grande círculo da vida. No final, quem pode ter mais paz de espírito é aquele que conseguiu, consciente ou não, tomar decisões que atenderam a maior número de interesses e não criou desafetos ou causou danos aos próprios sentimentos. Coisa difícil isso. Eu diria: impossível.
Isso leva a considerar que não é possível acertar em muitos alvos ao mesmo tempo. Que todos nós estaremos fazendo algo errado, dependendo dos olhos de quem vê, dependendo do ponto de onde estão olhando. E é interessante ainda imaginar quantos olhos diferentes, de diferentes direções nos vigiam todo o tempo. Como poderíamos agir, reagir e viver ao nosso modo se não temos sistemas de comunicação, como pessoas que somos, que seja capaz de utilizar diferentes linguagens, ao mesmo tempo, para transmitir o mesmo sentido de um ato ou decisão para que todos entendam a mesma mensagem?
Não temos como. Só podemos compreender essa fragilidade nossa e de todos ao redor e dar a cada um o direito de ser, fazer e viver como melhor puder. E nos permitir isso também. Viver significa atrito sempre. O que pode nos salvar do retorno ao caos é um grande senso de humanidade, a profunda consciência dessa luta travada diuturnamente em nossos corações e nos corações de todos que nos cercam.
O amor, no seu significado mais puro, de tornar imensurável o homem pequeno, pode ser essa ponte entre tantos desencontros. Amor limpo de interesses menores, amor de harmonia entre todas as criaturas: amor de salvação.
Para vivermos em paz, temos que edificar e viver um amor sem rótulos, sem lugar ou tempo, acima de qualquer apego. Só amando assim é que poderemos nos preparar para perdoar. E nos permitir sermos perdoados.

Por Magda R M de Castro
Brasília, 11 de agosto de 2008.