sexta-feira, 9 de abril de 2021

AS ESTAÇÕES E EU

 

Me sinto tão tola

por amar tanto o céu

a chuva redentora, o verde do mundo,

a flor gloriosa, linda, pequena, sim, maior que eu.

 

Me sinto quase triste

quando chega o outono

quando a grama se acinzenta

quando as árvores se desfolham.

 

Me sinto tão fria

no inverno me escondo

me recolho, me afasto

das tempestades do mundo.

 

Me sinto quase linda

Eis então a primavera

nem mais frio nem quente ainda

chuva nova, verde renascendo

ar gostoso de respirar.

 

Me sinto tão quente

no verão tempo de areia, de mar

estação de sol escaldante

de deixar a paixão brotar.

 

Tal folha solta sigo o vento

o calor do verão, a despedida do outono

o silêncio do inverno, o frescor da primavera.

Me sinto tão tola por ser feita de estações!

 

Magda Castro, em setembro de 2000.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

 

CENAS DE RUA

Domingo cedo de imprevisto solão mesmo não sendo mais verão. É outono, de comecinho, ainda chove, menos sim ainda há chuvas, mas o sol chegou pra estourar mamonas. Foi perscrutando o céu pra ver se havia nuvens porque dependendo de haver ou não eu decidiria o que fazer do dia que cismei por alguns minutos escondida detrás da persiana aberta discretamente.

O portão da casa da frente foi aberto e se segue algazarra de pessoas discutindo o caminho pra pista de ciclista no Sudoeste. Um casal e uma garota, ouvi os adultos chamando Heloisa. Nome lindo demais, heroína de romance e bela também a menina. Treze anos? Falando Mamãe e Papai como se tivesse deliciando a doçura do mundo rindo da mãe embaraçada com o guidom da bicicleta, a mocinha pedala com ares de bem entendida. O homem se aproxima segurando a própria bicicleta acalmando a mulher ajeitando o acento. “Experimenta agora, vê se melhorou”.

A mulher de roupa preta bem justa se encarapita e sai pedalando pelos dois lados da pista; aposto que cai, não caiu. A menina ri cristalinamente. O homem espera que as duas mulheres avancem na frente e as segue decidido. Fico olhando os três desaparecerem no fim da rua enquanto as risadas vão virando sussurros.

Ao abrir a janela, finalmente, ouvi outras vozes. Uma criança? Aparecem no meu campo de visão, um garoto montado em bicicletinha e uma mulher de sombrinha protegendo o menino que resmungava do arranjo. “Tem que ser assim, o sol está quente demais!” Comecei a rir sozinha: o dia mal começara e já havia me deparado com tais cenas: de bicicletas, de gente e de amor; do que senti o dia seria.

Magda Castro

Brasília, DF, 1 de abril de 2021.

quarta-feira, 24 de março de 2021

MUDAR É PRECISO?

Tudo começou por causa desse computador estragado: já o havia consertado algumas vezes. Por último, o T descolou e não consegui botá-lo de volta no lugar. E vai que o comando de “delete” funciona sem aviso e eu perdia parágrafos inteiros. Voltar à ideia original? Impossível. Isso sem contar que o monitor havia perdido as cores e eu usava um de outro aparelho: costumava chamar o conjunto de “meu Frankenstein”.

Pedi a minha filha do meio pra vigiar as promoções pra comprar um computador novo completo. Ela levou uns dias, mas cumpriu a tarefa. Zerei a poupança, comprei ingredientes prum almoço e juntamos quatro mascarados pra levar a tarefa de mudar os programas a cabo. E inventei de mudar também o cômodo do escritório: me pus a descascar, emassar e lixar paredes. Digo que “mudar” pode permitir a “achar os buracos dos ratos”.

No dia marcado, eu quase terminei uma das paredes. Carregar livros, descartar lembrancinhas desmemoriadas e CDS obsoletos, digo, por falta de aparelho pra tocá-los e montanhas de papeis que perderam totalmente o sentido levou o dia todo. Ainda restam “coisas” em geral separadas ao longo das paredes, uma delas exibindo gloriosos traços de massa-corrida.

Quando a lida maior parou, tranquei a porta de saída depois que os ajudantes partiram pras próprias rotinas, juntei a louça suja na pia, tomei banho muito quente pra aliviar o cansaço e me esparramei na cadeirona velha, que preciso consertar, finalmente, com a intenção de (re)conhecer o lindo aparelho novo. E queria escrever.

Mas, quá, na penumbra da noite caindo, não consegui enxergar os sutis traços brancos sobre teclas negras pra catar letras e símbolos de acentuação: o circunflexo, então, nem hoje o localizei. Optei por assistir a séries que há algumas começadas. O texto, escrevi agora de tarde depois que botei ordem em mais alguns móveis e “coisas”. Terminar a mudança? Ainda demora; e, passar a escrever no teclado novo vai me custar algumas adaptações. Enquanto isso, vou escrevendo, e consertando os erros, no computador antigo; paciência, repito comigo enquanto tranço a casa de cima a baixo: um dia me acostumo.

Ainda não achei buraco de rato; poeira? Montes: vou domando pequenas partes aqui e ali. Estranhamente, essa bagunça toda pra mudar me lembra: mudanças em relacionamentos compensam o “preço” pago? Caso a pensar...

quinta-feira, 11 de março de 2021

MEMÓRIAS DE TERNURA

Antigamente, vivíamos nesta casa, dez pessoas. Espalhados entre os quartos na hora de cada um sossegar, o lugar predileto de nos reunirmos era a mesona da copa-cozinha. De oito lugares, tamboretes completavam a conta e nos espremíamos uns aos outros pra saborearmos a comida gostosa demais que a Déda ia trazendo. Acho que por isso, terraço, varanda, salas eram inúteis nesse momento: a proximidade com o fogão, e a Déda, nos mantinha ali juntinhos. Era uma algazarra de gente falante; claro que eu falava mais que era a hora do sermão porque não se deixava nada pra depois naquele tempo tanta correria pra todos. Mesmo assim, eram momentos de ternura e apreço. Ali, pai e mãe tinham lugares marcados, e apenas; quem chegasse primeiro escolheria onde se sentar.

Hoje em dia, que todos escolheram outros caminhos, faz tempo que já somos um. Vez ou outra, dois; mais raro ainda é sermos três. E isso aconteceu ontem: com o tempo anunciando tempestades, a copa-cozinha acolheu grata três alminhas pr’um almoço caseiro. Não que eu saiba cozinhar, mas botar água no feijão, sei, mesmo porque a comida não era o motivo do encontro. Espalhadas pela cidade, essas alminhas arrombaram a porta dos fundos num ultimato à saudade que vem nos afligindo há mais de ano. Ato de revolta, diria, com os devidos cuidados, a mãe de hoje se senta o mais longe possível das duas beldades encantadas que acordam as paredes com gargalhadas. Uma delas atendeu ao celular da outra e fez de conta que era a namorada do moço que chamava. Duas irmãs tão diferentes hoje que costumavam pregar peças até no pai tão parecidas eram as vozinhas de criança; ao que pareceu não ser tão mais assim agora.

O moço telefonador desligou na hora que achou tinha ligado errado; ligou de novo rapidinho: a namorada ensinou pra irmã como deveria atender ao telefone para enganá-lo. O rapaz titubeou, mas continuou a ligação enquanto as risadas se misturavam uma às outras. De risadas passamos a gargalhadas: uma mostrava dentes perfeitos na bocarra escancarada, eu escondia os dentes partidos, a namorada soluçava de rir. Até que se identificaram corretamente, rimos a bandeiras despregadas; e o namorado entrou na festa assim que foi colocado a par de toda a história.

Depois de comer, cada uma voltou ao próprio canto ainda na correria pra chegar em casa antes da tempestade. Eu, no agora silêncio de novo esperava que meu coração se aquietasse pra retomar às rotinas de alma solitária. Alma solitária, repito, não penada, muito menos infeliz. Impossível sentir algo diferente de felicidade quando memórias de passado e presente se sobrepõem tão perfeitamente; tanta ternura!

Brasília, DF, 11 de março de 2021.

sexta-feira, 5 de março de 2021

À ESPERA DA CHUVA

Troquei as roupas de cama, toalhas e tapetes. Podei as folhagens, montei vasos novos. Limpei a geladeira, renovei verduras e frutas. Sim, tem suco, água e café, biscoito Maria e manteiga; e macarrão e queijos pra alta madrugada de conversa fiada. Esvaziei as lixeiras, todas elas; preparei os recicláveis, os juntei todos já no carro, acabei de trocar o óleo e calibrar os pneus, prontos pra levar às estações de coleta. Lavei parte da roupa suja, a mais fácil, passei algumas peças; recoloquei panos de prato e toalhas de mesa nas gavetas da cozinha. Revi os armários de louças, copos, tudo em ordem. Limpei vidros e espelhos, troquei lâmpadas. Ainda tenho um vinho; chequei a playlist com músicas de piano: vou botar pra tocar baixinho num canto da casa. E espalhei perfumadores de ambiente pra todo lado; acendi incenso de sândalo. Ah, as orquídeas estão em flor. Você já pode chegar!

quinta-feira, 4 de março de 2021

COVID-19 E O GADO

Até ontem à noite, o total de mortes no Brasil por causa da contaminação do Coronavírus (COVID-19) beirava a 260.000; no mundo todo, 2.500.000. O número de pessoas contaminadas passa de 114.000.000. Noticia divulgada em 04/03/21, 9:39, há 30 minutos na Internet: “Coronavírus hoje: Brasil volta a bater recorde de mortes e caminha para um colapso generalizado do sistema de saúde.”

Observando o gráfico divulgado pela BBC News Brasil, é possível identificar que em alguns lugares do globo terrestre, a contaminação está regredindo e em outras regiões está avançando. O que é preciso considerar é que são estáticas, logo, há desvios como fornecimento precário de dados ou incapacidade técnica ou intencional omissão, por razões diversas, inclusive politicas.

No Brasil, o governo federal é fonte de desinformação pra não dizer irresponsabilidade no trato com a pandemia. Nos primeiros meses de avanço da doença, havia certa tranquilidade quanto à capacidade de enfrentamento do problema, mas as dúvidas foram tantas e as informações foram tão deturpadas que grande parte da população se posicionou contra qualquer medida que os órgãos realmente atuantes tenham solicitado.

Para seguir o comportamento permissivo e irresponsável do líder da nação, vários seguimentos sociais se posicionaram abertamente contra o isolamento, contra as vacinas e tudo o mais que se disse de reconhecimento do grande risco que significa essa doença.

“Se não se aprende com o amor, se aprende com a dor”, já me diziam parentes sábios; prova disso está a olhos nus agora. No estágio atual da tragédia, que muitos ainda consideram brincadeira, a composição de muitos fatores não leva a alimentar esperanças. Mas essa já rondou quando a vacina foi finalmente liberada: vi gente com olhos cheios de água tanta alegria. A alegria já acabou e a pandemia não.

Continuamos isolados, os que se comprometeram, mas nem isso é mais garantia de segurança quando o vírus avança livre e faceiro adquirindo mais e mais força por não encontrar barreiras que o detenham. O COVID-19 continua destruindo vidas, e, se por um lado os leitos, e profissionais de saúde, não são suficientes para atender aos doentes, por outro, a vacina patina entre joguinhos infantis de poderes político e capitalista: perdemos em todas as frentes; palmas pro Corona vencedor! 

Perdidos entre a inércia de quem deveria estar estourando os últimos cartuchos pra frear essa tragédia exaustivamente anunciada e a falta de todos os grandes e pequenos recursos para vencer a praga, os cidadãos se tornam mera estatística; gado, como li um cientista nos rotular ao “explicar” a situação no Brasil. “Vida de gado”, já cantava Raul Seixas, verdade maior que nunca.

É quase hilário pensar que se fossemos mesmo “bois” poderíamos estar a salvo do perigo. Ocorre que nem isso é alivio quando está claro que no “pasto” nem há “peões” de determinação e coragem  “tocando o gado.”

segunda-feira, 1 de março de 2021

CERTO VERDE OLHAR

Quando o conheci não percebi,

não tão profundamente,

que novo amigo chegava

e nem tão de repente.

 

Lhe falei de coisas do meu coração,

contei segredos de minh’alma.

Você ouviu com tamanha atenção

como se de tudo eu soubesse então.

 

Achei que seria só por uma noite,

que de manhã iria embora.

Vê quão pouco sei?

Você está aqui ainda agora

 com esse seu olhar me perguntando

sobre a vida, o amor, o mundo.

O que posso lhe dizer?

Também estou buscando!

 

Ainda este olhar tão verde

que me olha indagante

à espera de singela palavra

que o ajude a ir adiante.

 

Não me pergunte, não sei.

Sobre o amor? você não iria entender

Sobre a vida? só você pode saber

qual caminho onde andar.

 

A este seu olhar indeciso

com tantos rumos à frente

digo: “para fazer o que não sabe

faça-o vagarosamente”.

 

Ainda este seu verde olhar

do amanhã quer que eu diga.

“Não pule o hoje”, respondo

“para não perder nada da vida”.

 

Ainda seu verde olhar me pergunta

o que sou, o que mais penso.

Com meu olhar no seu respondo:

“apenas uma mulher tentando

não se perder nesse oceano imenso”.

 

Ainda este seu olhar

tão verde, tão calmo

vem em minha direção.

“Não me pergunte mais!

nada mais sei: perdão!”


“Nada sei mais, caro amigo;

não depois destes seus olhos

tão verdes a me olhar

verde fundo como o mar.”

DE MEDOS E REDENÇÃO

Vez ou outra me pego covarde. Não a covarde de fugir da raia, principalmente em relação a desafios externos, como disputa de vaga de emprego ou de estacionamento, mas covarde em encarar meus medos, os mais poderosos. Acho que essa é uma das vantagens da maturidade: a experiência é tanta e, em tantos e diferentes aspectos, que a gente já consegue guardar o medo bem escondido, pelo menos, até que não seja mais possível evitá-lo, por exemplo, quando algo de repente faz as pernas tremerem. Nessas ocasiões, respiro fundo, conto até dez, hoje em dia consigo contar até dez, penso numa situação bem diferente e, alívio, boto os bois na linha de novo: volto ao porto seguro da calma.

Hoje de manhã, manhã linda de primavera, e ainda domingo, fiz uma lista, junto com minha filha mais velha, de coisas básicas que precisávamos em casa, manteiga, gelatina, banana... gelatina gosto de preparar no balcão da cozinha. Ponho duas tigelas, duas colheres, dois pacotinhos de pó, de preferência vermelho, meço e aqueço a água e boto os dois netinhos para mexer o líquido colorido até desmanchar os pequenos grãos; eles gostam tanto do doce quanto da brincadeira. Dai, compro diferentes sabores e os preparamos juntos preferencialmente em tardes de preguiça.

Bem, então, fui às compras num domingo de sol de primavera, tudo de bom! Outra coisa é que troquei de óculos. Pressionada pela renovação da carteira de motorista – a médica pediu laudo de oculista – tive que fazer consulta de urgência. Nem pensei muito: dou aulas longe de casa, o que faria sem carteira de motorista? E cega? Foi aí que fiz novo par de óculos.

Ignorância é coisa triste: pensando estar abafando, ou seja, achando que meus problemas se resolveriam com a nova armação de óculos, escolhi uma grande ‘para combinar com minha cara de bolacha’. Medi aqui e ali, as lentes foram mais caras que meu salário do mês e quando busquei, ficou horrível. Mesmo assim, resolvi usar a coisa para me acostumar. ‘A gente se acostuma com tudo’, diz minha mãe. Taí, pensei que ficaria linda usando óculos grandes, risos, pode?

Daí foi que nesse domingo de manhã de primavera fui fazer compras usando os ditos óculos enormes me sentindo entre contrariada e decidida, fazer o quê? E, bum, na frene do açougue ouço meu nome: ‘ei, dona fulana’. Dona? O ex estava virado para mim com as mãos apoiadas num carrinho lotado. Percebi que apesar de óculos serem enormes eu continuava sem ver muita coisa: não tinha percebido o homem a centímetros de mim.

Ficamos indecisos se dávamos os tradicionais dois beijinhos dos dois lados do rosto, mas por fim nos beijamos quase como cena de teatro: ensaiado, por pura convenção. ‘Uai, passou o final de semana na cidade?’ ‘É, teve a festa de confraternização do trabalho. Estou comprando linguiça de frango para o almoço, vou fazer um arroz com aquele alho. Você já experimentou o alho que deixei lá?’. Hum, muitas explicações: campainhas, blim, blim! O final de semana na cidade, hoje é domingo e ele não apareceu ontem, ninguém ouviu falar. Festa ontem? Hum, blim, blim. ‘A morena não quis vir almoçar comigo, disse que ia pro clube com amigas’. ‘É verdade, ela saiu cedo’. Blim, blim! A filha não deixaria o pai almoçando sozinho num domingo por causa de clube. Uai, mas o que isso tem a ver comigo?

Terminei as compras, fui embora o mais rápido que pude porque passava do horário de dar o almoço da mamãe; minha filha mais velha tinha ficado cozinhando. Em casa, vez ou outra, pensava na cena do mercado. Ontem mesmo, conversando com uma nova amiga, colega da faculdade, pessoa iluminada, ela me perguntou por que não tinha namorado – bondade dela não mencionar minhas rugas – e eu saí com uma resposta tipo ainda gosto de alguém; mas não só por isso: os homens estão raros hoje em dia. Bons homens, que combinem comigo, outro jeito de dizer: homem que goste da mulher que sou. Ela retrucou: “não é porque você está com o coração fechado?” “Pode ser, mas eu saio, tenho amigas, vou ao cinema, saio para dançar. E, sabe, não conheço homem algum em quem eu confiaria hoje em dia; é que perdi a confiança. Gostar, gosto mesmo sabendo como são difíceis, mas meu ultimo relacionamento me custou tudo que tinha, só me sobrou a capa do Batman,  Risadas. “Além disso, hoje em dia não conheço ninguém que poderia me dar o que eu quero”. “E o que você quer?”

Ah, pergunta triste essa! Muitas vezes respondo que não sei o que quero. Essa é uma das minhas fugas; a verdade é que sempre quis que alguém gostasse muito de mim. Depois, queria alguém em quem acreditar nas palavras, nos ideais, nas opiniões. E, alguém com sonhos é bom demais de amar, combina com quem também tem sonhos. Depois queria um homem que olhasse no meu coração. Daqueles que numa segunda de manhã, ao me ver atravessando o umbral da porta, só de me ouvir dizer ‘bom dia’ me perguntasse porque eu estava triste. Acreditem! Isso aconteceu e me assustou demais! Primeiro porque o rapaz parecia jovem demais para descobrir uma coisa em mim que eu mesma não sabia! O segundo motivo do meu susto foi imaginar onde é que eu andava que não sabia de homens assim?

Então, esse rapaz não seria um bom partido? Ótimo; para uma mulher trinta anos mais jovem. Invejo a mulher que ficar com esse moço. O pior é que ele ainda pode encontrar uma boa bisca: é que a vida não é justa. Risadas. Estávamos voltando de almoço oferecido pela faculdade onde trabalhamos: comemoração do dia dos professores; sábado bom demais!

Daí foi que a visão do supermercado quase estraga meu domingo. E como! Passei parte da tarde, mesmo no meio das tarefas, o almoço e o banho da mamãe, guardar as compras, lavar a louça com a visão grudada. O engraçado é que sempre fico vasculhando o que fiz de errado: foi meu peso? Não, eu era muito magra quando ele me conheceu e mesmo assim me aprontou. Fiquei sem aquele emprego bacana? Se era por isso, então foi bom ele ter ido embora, né não? Foi porque envelheci? Ele também envelheceu, e se é por isso ele nunca quis ficar de verdade, não é?

Sinceramente, tem hora que gostaria de nem ter cérebro tantas são as perguntas que me pululam na cabeça. Reconheço que minha autoestima está em zero, mas também reconheço que o estrago foi grande. Me lembro dos primeiros minutos depois da separação, depois os dias, as semanas, meses, anos. Já faz tempo demais para eu ter problemas desse tipo ainda; me irrito. Ele já superou, está em outra. Me irrito mais ainda porque não controlo esses sentimentos. Depois fico arranjando explicações para o fato de estar sozinha: orgulho ferido, falta de opção, não há nada que eu possa fazer... respostas vazias. Para diminuir o desconforto, repito vezes sem conta, o “mantra”: ‘ele não me ama, ele não me ama, ele não me ama!’. Quero parar de pensar nele, nas vezes que me feriu, quero me libertar, mas, bolas, fosse simples assim, já teria conseguido. ‘Quero ele de volta?’ me pergunto pra ver se levo um susto e paro de pensar no assunto. ‘Que Deus me proteja!’

Chegou a tarde do domingo. Por um momento me distrai, arrumando badulaques no quarto. Ainda me lembro de que jamais fez diferença para ele o que eu usava ou não: nunca elogiava, mas perguntava o quanto eu gastara nisso ou naquilo. ‘Mais mágoa, deixa prá lá, moça, o sujeito nem lembra que você existe!’ E é verdade, a mais cristalina delas!  É repetindo mais esse refrão que descubro uma abelha na janela do banheiro. Com pena da bichinha, pego a toalha de rosto e a empurro devagar para a janela. Ela voa depressa quando encontra a saída. Aproveito a carona para empurrar para fora também: ele voa até o céu cinzento de uma chuva que deveria lavar o mundo, e que vinha perto.

E veio depressa a chuva grossa, mudou o tempo repentinamente. O vento, muito fresco, começou a zoar pelas frestas: tarde especial com cheiro de vida nova. Meu coração estava mais calmo ao acompanhar a enxurrada que se formava na rua. Fiquei olhando pela janela até cansar; e desci para preparar um café. O cheiro deu ideia de aconchego e calor. Este era um dos meus medos mais profundos, do que falei no começo: ficar sozinha na velhice. É que eu pensava noutra perspectiva, a solidão. Mais perto dela agora, vi que não é tão terrível como imaginei. Isso me sossega também em relação ao amor que tenho no coração. Há muitas formas de amar; há tantas formas de felicidade! O que sei é que não há como saber o que vem ai pra gente. Então, fico contente com a tarde de domingo de chuva forte. Viajei para uma terra distante onde brincava na enxurrada num tempo em que não tinha a menor ideia do que seria minha vida. É exatamente a mesma coisa agora: tudo o que tenho que fazer é fazer o melhor que puder. Hoje; agora! Não controlo meu coração, imagine controlar o mundo!

Com esses pensamentos, sentindo o cheiro das plantas molhadas no jardim de inverno, servi o café a minha mãe ainda sonolenta do cochilo de depois do almoço. Em seguida, a levei à poltrona predileta na sala.

Então, o que fazer numa deliciosa tarde de domingo de chuva? Um sofá, colcha cheirosa e macia, a xícara de café quente e um bom filme! Quer melhor?


sábado, 27 de fevereiro de 2021

DE JABUTICABAS E OUTRAS VICISSITUDES

É por causa do tempo; tudo culpa dele. Esse gentil fidalgo, não assusta: age em silenciosa quietude e nos cabe vigília se o queremos entender, ou não o perder. Nada se perde, afinal, descubro na altura de meio século de experiências que as coisas se transformam imperceptivelmente quando as estamos olhando, e, repentinamente, quando, por breves momentos, o olhar vaga por outros alvos. A transformação acontece, seguidamente; a percebemos, entretanto, de acordo com a distância que estamos dela.

Vi que algumas coisas mudaram na pequena fazenda do tio que visitei meio tortamente ontem. Tortamente porque eu vinha de outras paragens, de passagem, e não havia me preparado para aquela visita. A casa é a mesma; é o mesmo o matinho duro que acompanha a grama rasteira; isso não mudou. Não, e, ainda são os mesmos o pé de mangas docinhas do quintal da cozinha e os de jabuticabas. Agora, o pomar mudou de lugar e há outra cerca, apesar de que a de agora parece tão velha como a de antigamente. O curral sofreu cirurgia remodeladora completa e foi construído um galpão que parece muito velho, acho, desse não me lembro. Ele não esteve sempre ali?

Lembrança é coisa esquisita: a gente olha o que pode ver hoje, mas a imagem do passado se sobrepõe e daí não há como separar o real do lembrado. Me contento em saber que lembro de coisas que existiram um dia e mesmo que não existam mais, há coisas muito boas também que existem apenas hoje e que fazem desse dia que acontece um dia bom também. Por que não? Não é somente o passado que pode nos trazer doçuras e conforto. O presente de tão eternas coisas sempre diferentes pode trazer alegria; e ainda, de quebra, o doce sabor de ter vivido coisas muito especiais.

Não foi diferente o carinho do tio depois que ele se levantou de um cochilo. Tinha tido visitas por todo o final de semana e o cansaço bateu, claro, domingo de tarde, bem de tarde mesmo, já na penumbra das sombras compridas de noite célere. Ele foi me encontrar ao pé da jabuticabeira para onde corri assim que cheguei. E como antigamente, me misturei ao zumbido de besouros, pernilongos, borrachudos. Como sempre, levei picadas de aranha e ataques em massa de mosquitinhos Maruins.

Enquanto saboreava as deliciosas “pretinhas”, o pensamento pulava de canto a outro e eu esticava o olhar por paragens que não estavam mais ali. Em criança e já mocinha, vinha para os feriados e férias.

Não fui criança fácil: desgrenhada, mal cuidada, ignorante, dava um trabalhão danado à tia para trocar meus lençóis quase todas as manhãs; sim, há também lembranças ruins. Me lembro também de ajoelhar, a noite, sempre que acordava molhada e bater a testa no chão, implorando silenciosamente que aquilo parasse. O médico do colégio disse que eu não tinha doença física nenhuma. Além disso, sentia frio; podia fazer o calor que fosse, dormia com duas cobertas grossas de tear; acho que por isso tenho uma guardada para ser usada na casa da Serra, quando ela mudar de ser sonho para ser real. Mais tarde, já adulta, um Psicólogo sugeriu ser “carência afetiva”, o problema. Rio disso, mudo de jabuticabeira e pergunto pro tio como vai de saúde.

Enquanto ouvia que estava bem, escolhia as jabuticabas maiores, por entre a fartura delas grudadas nos troncos. Falei que tinha maravilhosas lembranças dali: as noites eram mágicas, no sentido literal, porque ele contava história de assombração e a criançada fixava os olhos na luz da lamparina do centro da mesa com medo da penumbra do resto da casa. Ir para o quarto era preciso coragem: passo a passo, com a mão em concha para evitar que lufada fantasmagórica de ar entrasse por uma das grandes janelas, apagasse a língua de fogo e nos deixasse aos caprichos das almas penadas. Mas ao redor da chama, ainda na mesa, havia sempre cada um a seu tempo, ou mingau de milho verde e pamonhas ou peneiras de pipoca, uma de doce outra de sal. Meu tio ria de mim; era minha vez de contar histórias.

Relembro que em meio à criançada comendo pipoca e ouvindo histórias de arrepios e sussurros as noites de minha infância não eram noites vazias. Seja pela comida saborosa da tia, de panelas fumegantes transbordando de comidinhas cheirosas, seja pela especial sensação de aconchego e proteção, aquele sítio foi um dos paraísos entre os quais tive o privilégio de crescer. Amei com todas as forças de meu tão tenro coração as pessoas que faziam parte daquele mundo: tia, tio, primas; que, lamentavelmente, hoje estão dispersos em razão de vicissitudes que acontecem a todos nós.

Naquele lugar eram sagrados os passeios à mina d’água, a travessia do Marmelada, as caminhadas poeirentas até a porteira. Eu não tinha muita habilidade com os animais, tinha medo deles ao contrário. Um dia, estávamos catando macaúbas pelos pastos; éramos quatro meninas. As vacas foram soltas do curral depois da ordenha e, acho que porque estávamos fazendo muita algazarra, uma delas veio bufando diretamente pra nós. Foi aquela cena de “salve-se quem puder!” voou menina pelo pasto todo e me sobrou o rumo da cerca do terreiro. De madeira, em ripas sobrepostas, a cerca deveria ter umas cinco tábuas que galguei usando apenas os pés. Como um trapezista, acho que minhas mãos estavam ocupadas com os cocos ou o vestido porque não lembro de usá-las para me segurar enquanto escalava as tábuas e pulava, segura, do outro lado. A vaca ficou lá decepcionada, sozinha, olhando pra mim. Logo depois, as meninas se reuniram, tremendo que nem varas verdes, embaixo do mesmo pé de manga da porta da cozinha. Lembranças que contei, rindo, pro tio nesse domingo entardecente.

Voltando pra cidade logo depois, cada passo que dei rumo à saída foi saboreado; não havia o que lamentar, descobri, eu estava ali, e meu passado junto; ainda me voltei umas duas vezes olhando a casa e o quintal de longe. O que havia de mais novo era um cimentado ao redor do pé de manga, mas tiveram o cuidado de deixar os balanços, agora um pouquinho mais modernos, pendurados nos galhos antigos. Ah! Esse está lá, murmurava baixinho enquanto me prometia fazer mudas de suas sementes quando as mangas estivessem maduras... já estava escuro quando abri a porteira do alto; essa diferente, amarrada com uma corda de modelo que não existia naquele tempo. Meu irmão encostou o carro para que as visitas passassem na frente.

Se aproximam as chuvas, mas ainda não chegaram de verdade, então, há poeira ainda. Foi gentileza dele já que o jipe iria levantar uma nuvem suja por cima do carro menor. A mesma estrada, penso, a mesma curva para a esquerda e daríamos na cidade... Engraçado como me lembro dos limites: à esquerda o caminho era conhecido, à direita, entretanto, não me atrevia a imaginar aonde ia dar; infinita incógnita; aterrorizante caminho estranho, e sobre o qual jamais perguntei coisa alguma.

Agora é que me bate essa reflexão: aonde esse caminho me levaria se tivesse seguido por ele? Bem, acabou-se o tempo de aventurar a descobrir caminhos ainda que esse que tomo agora parece menor, mais estreito do que me lembro. Antigamente o matagal se fechava no alto das passagens dando calafrios nas espinhas infantis.

Ah! Isso, no fundo, não importa. O que importa é que o caminho que escolher, de agora em diante, seja aquele que me levará aonde quero ir; fui pensando pela estrada afora enquanto ainda sentia na boca a doçura das jabuticabas. 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

DESPEDIDA DE SOLTEIRO

A festa do tipo “boca livre” com fartura de comida boa e cerveja gelada comemora quarenta anos de casamento dos pais de quatro jovens ali nascidos e criados conhecidos companheiros de fugas para o rio, de galinhadas na madrugada, de times de futebol e vôlei, passeios pelas redondeza.

O salão está apinhado de amigos, parentes, políticos, fazendeiros, celebridades, anônimos, todos parte da família. As janelas até o teto alinhadas às longas paredes escancaram a noite quente do alto janeiro. Mesas redondas estão decoradas com vasos de mini rosas naturais e botões coloridos. Toalhas de cetim adamascado seguem as cores das tiras largas penduradas do teto ao chão imitando tenda de circo.   

A banda toca músicas de todos os tipos e casais tentam acompanhar a sucessão de diferentes ritmos, numa mistura de risos, batidas de instrumentos e pisadas no chão encerado. Um som mais romântico leva para a pista maridos e esposas; a balada traz dançarinos que começam em duplas e terminam em bandos desarticulados, e felizes. Qualquer música mais conhecida faz com que a pista se transforme num pandemônio de pessoas se divertindo; juntos, dançam sem constrangimento ou coreografias avós, pais, filhos, primos. Sempre que uma música termina, as palmas fazem eco com gritos de "Mais! Mais!".

Vez ou outra, aparecem brincadeiras como as danças do chapéu e da vassoura. De feltro marrom escuro com fitas em azul e vermelho terminando em bolas douradas tilintantes, o chapéu passa de cabeça em cabeça. O homem que o recebe cede a dama com quem dança; alguns fazem de conta que estão zangados e todos saem rindo e dançando.

Na dança da vassoura, as mulheres escolhem o par; proibido recusar convite. Dessa vez, até as mais recatadas puxam para o salão jovens e cavalheiros, casados ou não, de preferência, um "pé de valsa".

Comida boa, salão lindamente decorado, música inebriante, bebida com fartura e o calor da noite não deixam espaço para que ninguém fique de fora da festa.

Recostado a uma das pilastras redondas, um rapaz moreno de olhos verdes encravados no rosto de ossos grandes e salientes observa o burburinho segurando displicentemente uma tulipa alta pelo meio de cerveja gelada. Veste camisa polo marrom de riscas horizontais, o que quase lhe confere um ar ameaçador. Parece tomar fôlego das brincadeiras quando dançou sem parar; e repensa detalhes. Em especial, o da moça que o convidou: esguia, rosto com suaves marcas, encantadoras, de acne, longos cabelos negros cheirando a flores, vestido azul com pequenas estampas geométricas indecifráveis à meia-luz. Os braços roliços e fortes seguraram com firmeza o rapaz nos muitos passos e o casal pareceu outro enfeite da festa, tanto, que os demais dançarinos deram espaço e evitaram incomodá-los com vassouras ou chapéus por várias danças.

O rapaz se lembra que se separou dessa dama apenas no intervalo pedido pela banda; e do olhar direto e firme que recebeu em silencio na despedida. Sorri para si: “tão bom isso tudo!” Contente, dá voltas pelo salão lotado. Cadeiras sendo arrastadas, murmúrios de cansaço, pessoas se abanando, risos: o jovem abraça e beija mulheres ou crianças, faz elogios, dá tapinhas nas costas dos homens. Circula desenvolto: está em seu lugar, aqueles são os seus amigos e aquele é o mundo ao qual pertence.

Anunciam o discurso do marido agora casado de novo. Emocionado, o homem sobe ao palco e já embalado pela cerveja, fala, ri e chora. A cada frase, gritos simulam vaias para disfarçar a emoção. Ele chama a esposa, se ajoelha, pede-lhe perdão e jura amor eterno. Com olhos brilhantes, ela o acolhe num abraço roliço e enrugado parecendo conter toda a paz do mundo; todo o abrigo do mundo.

A emoção quase vira lágrimas, então, um dos filhos passa a apresentar os nomes dos presentes e dos ausentes: todos que fazem parte da história de amor que agora se renova. Um ou outro convidado também parabeniza os novamente recém-casados até que alguém chama para o bolo; a banda volta ao palco e a festa recomeça.

O rapaz moreno é envolvido por matronas e moçoilas que o conhecem como bom dançarino. Enquanto a música toca, mal consegue surrupiar alguns copos de cerveja. Por duas dessas vezes, vislumbrou a moça de azul dançando com um rapaz bem vestido parecendo muito à vontade. Mais tarde, no caminho para o banheiro, ao sentir o perfume de flores, ouve uma voz: "você é casado?". A resposta e firme, rápida: "não"; e a voz desaparece.

Distraído pela alegria, pelas brincadeiras e flertes, o jovem fica na festa até o ultimo acorde. Sai sozinho dirigindo o carro por ruas vazias. Se sente feliz tanto pela festa boa quanto pelo final de noite silencioso.  “Ah, vou dormir até o meio dia amanhã; tão bom estar de folga!” Lembra-se que tinha telefonado para o pai dizendo que viria e esse disse que ficasse a vontade: ia pescar. Perguntou da família “Não, vou sozinho.”

Sim, não falou pra ninguém em casa sobre a festa: queria se divertir, fugir da rotina. Estava cansado de problemas, queria ficar livre naquele fim-de-semana para fazer o que bem entendesse.

Rastros de luz do amanhecer pontuam o céu quando o rapaz para o carro em frente à casa do pai. Os faróis fazem contraste com o resto da escuridão: a penumbra não lhe permite ver o vulto que se aproxima; sente perfume de flores. Ainda no carro, recebe um beijo no rosto e outro na boca. O vulto se esgueira ate pequena varanda; espera em silêncio que o rapaz trêmulo estacione o carro e encoste o portão.

A porta da casa é aberta por dois corpos de lábios colados com pausas apenas para respirar; do lado de dentro, um pé a arremete com estrondo ao portal.

O sexo, o primeiro, acontece entre a mesinha de centro e o sofá duro e quente em meio ao lusco-fusco da manhã. Não há tempo para pausa: os lábios continuam percorrendo corpos nus e suados entre gemidos e gritos. A segunda vez acontece na cama mais próxima. Num frenesi, tudo se repete muitas vezes até que adormecem exaustos.

“Que calor!’ Pensa o jovem acordando. “Será que é meio dia já?”. Se lembra imediatamente da noite anterior: vê que está sozinho na cama estreita. Raios de sol atravessam fenda discreta da janela basculante entreaberta. Recosta-se aos travesseiros suspirando satisfeito ao lembrar-se das últimas horas, em detalhes.

Talvez tenha cochilado mais um pouco porque num dado momento ouve o pai chamando da porta: "Filho! Acorda! Seu carro ficou a noite toda com os faróis ligados e talvez dê problema para ligar. E olha! Não demore! São quase seis horas da tarde e como você tem que ir embora hoje, vai ter que viajar à noite, coisa que não gosto”.

O rapaz se surpreende e isso o desperta de vez. Toma banho, enfias as roupas de qualquer jeito na mala pequena, daquelas para coisas de academia de ginástica e só ao colocar a escova de dentes na abertura lateral é que vê o bilhete.

O coração dispara: "a mulher da minha vida me deixou o telefone!". Agarra o papel minúsculo, já imaginando como faria para se separar da mulher com quem vive e começar nova vida ao lado daquela deusa. Para aproveitar mais a alegria da boa expectativa ainda abraça o pai e toma café; coloca a mala no banco de trás do carro. Com o bilhete numa das mãos, apaga os faróis e dá partida ao motor: a reação parece uma pessoa com raiva; ele entressorri.  Desliga, pisa e solta o acelerador, gira de novo a chave: o motor ronca forte.

Enquanto deixa o carro recarregar a bateria, tranca a porta e, devagar, como a espreitar do buraco de fechadura, desdobra o papel. Não compreende imediatamente. Dobra de volta, devagar, o bilhete, se recosta no banco, respira fundo: não acredita nas palavras escritas. Se esforça para ler de novo e só então assimila a mensagem: "Obrigada pela minha despedida de solteira!".

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 VESTIDA DE DOMINGO

A oração hoje foi mais longa e a terminei enquanto abria parte das janelas. Hoje não abri todas nem liguei a música: dia de recolhimento e silêncio.  O universo conspira: o mundo se cala, não porque está chovendo, ao contrário, o dia é de muita luz. Por que é domingo? Pode ser.

Separo o que vestir. Vestido leve, clarinho, com flores e renda. Perfume. E chinelos que não haverá visitas. Desço as escadas tentando não fazer barulho, clep, clep, em vão, e corro abrir a porta pro cachorro sair; da minha caçula que pediu ontem pra cuidar, custa nada.

Passo os olhos pelas plantas: vou trocar o vaso daquele antúrio que já passou de hora. Cuido do cachorro, das plantas, tomo café e remédios. O vento está muito forte, silva pelas frestas, balança as pedrinhas do jardim de inverno. Estranho! Vai levar a chuva embora... ou trazer?

Checo a comida do dia, ainda há frutas, boto água no filtro de barro. Então, aboletada na cadeirona do canto predileto da casa, me ponho a cismar: tem um passarinho cantando longe, mas fora esse, e o barulho do vento, escuto mais nada. Nem a música liguei. Tao bom o silêncio!

 TERÇA-FEIRA DE CARNAVAL

A terça-feira de Carnaval amanheceu silenciosa: parece todos os gritos, passos de dança, risos, encontros e desencontros aconteceram até a véspera. O mundo, aqui pertinho, e além, parece envolto em neblina e quietude. Portas e janelas ainda cerradas, as ruas vazias, os pássaros e cães quietos como se esperando o rufar de um tambor para os despertar de sonho. Sonho ou pesadelo? Reflito, também quieta, e o coração aos saltos, que o sol ainda vai espantar tantas sombras.

À mesa do café, aos cochichos, Déda pergunta: “alguém já se levantou?” Ela tinha chegado há pouco do mercado com sacola de frutas e um saco de pão fresco, o melhor da cidade. Respondo: “ainda não, ninguém além de mim”. Ela: “gracinha, ainda estão dormindo”. Repito o “sim, gracinha, todas ainda dormindo”.

TARDES

Falo muito de manhãs iluminadas, de dias em começos. Bom que só, cheia de expectativas pelos milagres que viverei. Gosto muito também dos afãs das “voltas de meio-dia” quando não paro pra ver o que está bom ou nem tanto. Vou vivendo o que tenho que viver e o dia vai acontecendo assim, eu, de roldão, quase empurrada.

Quem vê pensa que não, mas gosto muito também de tardes. Os dias desmaiando, expectativas descansando, doçuras de coisas feitas com tudo o que tinha que ser feito. Nessa hora, quando as horas não precisam mais ser vigiadas, gosto de ir fechando janelas uma aqui outra ali, trancando portas, botando o lixo na rua; e cuido de novo daquela mudinha de flor.

Nas tardes, vou guardando a louça usada, a roupa enxuta, os restos de comida; e esperanças. A vez de banho, vestido largão, pês no chão limpinho... estendo a colcha na cama, ajeito os travesseiros. Espreito pela veneziana entreaberta, às escondidas, o sol fazer a curva do céu sumindo por detrás das mangueiras gigantes. “Esse ano não foi de tanta fartura como no ano passado”...mas “tem ‘portância não, vem outro ano aí que vai ser bom”.

Fecho devagarinho a persiana, os sons amenizam, me volto para a penumbra de minha ilha agora fora do mundo. “Ah, obrigada, Senhor, pelo dia bom”, resmungo pras paredes caladas enquanto faço o sinal da cruz. 

 SOU TÃO FELIZ!!!

Essa ideia me ocorreu enquanto atravessava a casa, vindo da varanda. Estava regando as plantas do pátio da frente, tardiamente porque acordei tarde, desci tarde, abri a porta da sala tarde. Me surpreendi quando liguei o tablet: 11:40. Uai, tarde mesmo, mas na hora que deveria ser; e foi.

Reguei as plantas do pátio, do jardim de inverno, da garagem dos fundos. Algumas estão belíssimas, outras ainda indecisas, mas há já flores pipocando para todos os lados. Acho que por isso entrei na casa depois dessa tarefa e achei bom demais o ambiente fresco que me acolheu. Parei, olhei pras janelas grandes, as paredes altas e claras, a luz, o perfume suave de madeira.

Comecei a rodopiar contente enquanto soltava os cabelos. Vi que não havia ligado música ainda, companhia de todo dia. Percebi o silêncio: não há carros na rua? Nem buzinas? Nem cachorros latindo? Os vizinhos ainda estão dormindo? Tirei os chinelos, pisei mansamente atravessando corredores, apenas sentindo coisas boas demais! Num domingo espetacular de primavera, o silêncio. E eu, eu e minha história, eu e minhas cicatrizes, juntas para sempre. Nunca imaginei que me encontraria num momento como esse. Sou tão feliz!

 SOMENTE EM TARDES DE VERÃO

Amanheci tarde hoje, fui dormir tarde, ou cedo se digo que era 01:47 da madrugada  quando desliguei o computador e fui tomar banho. E dormi. E sonhei. Daqueles sonhos bagunçados sem pê nem cabeça. A sensação que fiquei no coração foi saudade. Nem me perguntei do que, sonho assim bagunçado.

Acordei tarde, ainda de camisola corri acudir o cachorro aproveitei pra acudir umas plantinhas meio perrengues, tirei parte do lixo. Uma pessoa só e tanto lixo e olha que reciclo, faço compostagem, mas mesmo assim tem lixo, fico contrariada que ainda não posso aproveitar cada resto. Tomei café e remédios, voltei ao meu quarto pra me arrumar pro dia.

Mesmo assim o dia estava tímido tanto que desci deixando tudo fechado, depois de tomar outro banho, esse mais caprichado. Vesti um vestido comportado, com flores, forro e mangas compridas que a chuva parecia ter vindo pra ficar. Liguei minha playlist no máximo da caixinha de som e desci preparada para completar as tarefas já quase meidia.

Ia cozinhar que tinha visitas, uma confirmada, outra desejada. A chuva despencou aconchegante, botei o cachorro pra dentro que ficou me cercando pelos caminhos da cozinha aproveitei pra limpar a geladeira enquanto ia fazendo a lista de compras prum futuro distante que tem comida em penca pela casa.

Almoço pronto, a visita confirmada marcou presença, fiquei observando o rosto lindo muito sério na outra ponta da mesa. Sob os acordes de Julio Iglesias, Tim Maia, Frank Sinatra, Barbara e tantos outros, comemos, conversamos, rimos e ela se foi de novo mascarada enquanto a outra visita despencava mensagens no WhatsApp que tinha ficado presa no trânsito da vida, não viria, falei que não precisava pedir desculpas que o almoço fica pronto pra amanhã, tudo bem nem tinha prometido mesmo coisa de mãe doida.

Cozinhar dá nisso de pias cheias de talheres, pratos, panelas etc. que levei quase uma hora para guardar comida, lavar... Só depois que subi de volta me lembrei das janelas fechadas. Parti abrir tudo que a chuva já tinha desaparecido talvez em viagem pro Saara que o céu espetacularmente iluminado fazendo jus ao verão se exibia entre nuvens de algodão e o vestido já parecia um pouquinho quente demais.

Mesmo assim, estiquei as pernas sobre travesseiro macio em frente ao computador e me dispus a descansar, finalmente. Foi aí que a playlist selecionou a Voa Liberdade do Jessé. Depois de ouvir pela segunda vez foi que descobri que eu não estava cantando a letra da música mas a letra de uma oração.

Isso assim por ser, talvez, belíssima tarde de verão?


SILÊNCIO 

Ha uns dias, não sei quantos, não os contei, que estou muda. Fora uma palavra ou outra para dois ou três endereços do WhatsApp,  e parei. Dia desses, me peguei rindo quando falei meu nome, gostei, falei de novo, mais alto, mais alto, e cai na risada. Parei de rir porque fiquei com medo de alguém ouvir. Ah, como poderia?

Os quartos brancos, os corredores infinitos, vago por eles descalça. Sempre pela manhã abro janelas e portas, por minutos, e as fecho de novo; o ar fresco entra, o sol, quando há, ilumina frestas no piso ate que a penumbra invade de novo; e eu, corajosa por um instante, avanço rumo ao pátio. Finjo que ali tem algo pra cuidar, mas, assim que escancaro a porta, ah, não carece ser hoje...

Da cozinha, lavo e guardo uma xícara, um prato, um garfo, um copo. O que vou comer hoje? O que tiver mais a mão, mais fácil.

De  música, me esqueci, quase, vai que me lembram coisas. De sons, tão longe, indistintos; de perto, dois cachorros de vizinhos: um nos fundos outro na frente, tão alto latem a qualquer hora do dia ou da noite rasgando a quietude do meu coração. 

 SEXTA-FEIRA

Essa sexta-feira amanheceu de sol brabo! E fez calor desde a madrugada, começou ali pelas 4 da manhã, tanto que o edredom ficou a um canto, inútil, diferente das últimas noites.

A casa acordou já animada para arrumações, limpezas, comidas, como se a energia solar tivesse se misturado à urgência das tarefas e compromissos. Pela janela do meu quarto, mergulho no mar azul parecendo me deslocar silenciosamente rumo ao infinito. E nesse universo misterioso os pensamentos pululam junto à claridade da manhã: sobre o que penso hoje mais amiúde? Ah, nem demoro: penso em meus amores. Num átimo de segundo, passam todos eles na minha frente, talvez, tentando, inebriar o espetáculo iluminado. O que concluo sob o amor, o que vivi dele e por ele? Sempre, sei, escolhi primeiro por amor mesmo quando eu nem sabia o que era. Hoje sei menos ainda disso, de amor, apesar de ter entendido que ele não existe em razão de quem amo, mas em razão de quem sou.

Tão libertador aprender isso; tão libertador o esplêndido dia de sexta-feira! E, quantas possibilidades prometem as horas seguintes?  Olho para o céu de anil coalhado de nuvens carneirinho: nada pode dar errado num dia como esse, nada mesmo. carpe diem!

SEGUNDA-FEIRA COM CHUVA

Segunda-feira. Acordo com o barulho do escolar das 6. Pulo da cama, abro uma parte da persiana pra conferir. É mesmo o escolar das 6. Vejo que o asfalto tem marcas de chuva, uai, nem vi. Dormi bem. Vem subindo uma sombrinha verde pelo beco, de longe, e parece tem um cachorro. Observo, vendo o mundo acordar. Uma mulher de vestido longo vem driblando entre segurar o vestido, a coleira e a sombrinha. Ao chegar à rua, ela rodopia, por quê? Abro um riso calado. Passa mais um escolar, esse, menor, mas o barulho é o mesmo.

A chuva aperta, a bica da casa vizinha deságua barulhenta no meio do asfalto. Ah, as goteiras daqui de casa vão aparecer hoje, tá, mas não vou precisar regar as plantas...plantei sementes daqui pralí ontem; tempo de verão é bom pra fazer brotar sementes. Acho.

Vou ao banheiro, mas volto pra cama; tão gostoso meu travesseiro! Checo o celular, atualizo as mensagens, jogo uma partida de freecell. Vou dormir de novo? Dou uma vasculhada pelo mundo pra checar onde estão meus tesouros. Pelas últimas notícias estão todos bem. Ah, o celular diz 19 graus ensolarado... outra risadinha. Ah, a bateria reclamou; boto pra carregar.

Me levanto, me visto, penteio os cabelos, amarro fita; ajeito brincos e vestido. Desço as escadas em meio à luz branda do dia indeciso. A chuva aumenta, entra pelas janelas do jardim de inverno, as fecho. Troveja. Na penumbra da cozinha silenciosa, boto a chaleira no fogão. Vou fazer café. 

SEDUÇÃO

Flores de um tipo que nunca vi: pétalas como folhas, redondas, verdes, se espalhando entre as hastes novas: nasceram às pencas num vaso delicadamente pintado a mão. Muitas hastes, as pétalas/folhas se sobrepondo. Chamei você para mostrar que falava com alguém não respondeu.

Toquei as pétalas e, quão rápido se transformaram em triângulos rosáceos apontando pro céu! Tocaram a companhia, entregaram as chaves; disse que ia passá-las pra você. Caminhei sobre o piso acinzentado e toquei seu braço. Você se virou sem me ver, balancei as chaves. Quando estendeu a sua, minha mão lhe tocou a palma; apenas por um segundo.

Sem identificar muito bem o que senti, fui me sentar numa poltrona de veludo verde sob a luz do teto de vidro. “Flores estranhas!”. As pessoas continuaram conversando. Não vi quando você veio. Tocou levemente uma ponta de meus cabelos, sentou-se no braço da poltrona. Eu podia sentir o calor passando pela camisa branca, o cheiro; podia ouvir o coração. O seu. E o meu.

“Flores estranhas...” 

 SACUDINDO A POEIRA

Hoje acordei pensando no quanto é difícil se recuperar de uma porretada. Achava ser fácil quando observava o esforço de alguém fazendo isso, buscando uma saída. De longe não se vê lágrimas ou gotas de suor, nos outros. Então, levei uma porretada, melhor algumas. Na primeira, me ergui rapidamente, sacudi a areia e segui o sol. Na segunda, já sentia mais medo e tinha mais dúvidas, custei a colocar os pés de volta na estrada, mas um dia de chuva redentora me salvou. Na terceira, me desintegrei em minúsculos pontos pairando sobre o mundo: “o que mesmo estou fazendo aqui?” Na quarta paulada, ah, bem, não vou conta-las mais, o sopro impiedoso de algum grande amigo espalhou as partículas através do universo: deixei de existir. O milagre foi que uma ou duas almas iluminadas insistiram em juntar os pequenos pontos tremulantes. E hoje acordo num quarto limpo, completo, numa cama macia, quentinha nessa manhã de chuva indecisa. Posso receber um beijo a qualquer momento, uma mensagem de bom dia, tomar um café em boa companhia. Bem, se acordei pensando, ainda existo.

SÁBADO

Cinco e quinze da manhã: silêncio, canto de passarinho apressado, rumores distantes de um transito que começa aos poucos. Espreito o clarear através dos vidros da janela, me aconchego ao cobertor: está frio, e não tenho pressa. Há um dia inteiro para fazer tudo que preciso. Devaneio, penso no que é mais urgente, penso na minha mãe, penso em quem vai chegar, em quem vai partir. Preciso podar as roseiras... Mamãe, tenho foto dela com uma rosa, única, Red, plantada em lata de tinta, Mamãe, escorada numa pilastra, usa um vestido de renda azul claro que ela mesma costurou. Ela costurava meus vestidos de menina-moça, daqueles de xadrez com sinhaninhas, camisolas de tergal com bolinhas coloridas e a calcinha franzida combinando...acredita não? Eu usava isso para atravessar a cidade, a Pracinha, a Praça da Prefeitura e chegar ao Cinema, perto da Matriz. E desfilava, contente...Ah, peraí: “que essa paz de cedinho impere no coração dos homens de todos os lugares, que as palavras ditas tenham sempre doçura”: minha oração pra começar o dia, é que meu estômago começou a roncar. 

 PRECISO DIZER QUE TE AMO

Ah, bom demais você aqui. Chega mais! Limpei a casa, preparei o almoço: do jeito que sei você pode comer. Sente-se à mesa, no lugar que escolher: acabei de trocar a toalha. Só um minuto, só vou passar o peixe na frigideira. Veja o pratinho com a pimenta fresca, boa pra dar ideia de satisfação, só que tem que ser sem conservantes e sem sementes, só a polpa... Tem um pratinho com cebolinha picada bem pequena, a salsa, adstringente para os rins, o galho de manjericão é para perfumar, mas você pode comê-lo também. A salada é simples, mas tá fresquinha: tomate e alface, preparados com cuidado, bem lavados, picados em pedaços bem pequenos. A alface está crocante, deliciosa. Batata, cenoura, sinto muito, sei que você gosta temperadas só com azeite e orégano, mas sabe, só completei a que fiz de manhã, então, tem maionese, mas vez ou outra não faz mal. O feijão e o arroz, preparados agorinha, têm bastante alho, agora, sal é só miragem, mas deixei o saleiro à mão, caso queira inteirar. Também está na mesa, a garrafa de azeite, mas nem foi aberta, faz esse favor? Então, como estão as coisas pra você? Conta aí. Ah, o suco! Lembra como você gostava de suco quando criança? Não passava sem. Bom, você não toma mais liquido às refeições, mas tá aqui um suco bem gostoso: de polpa de maracujá, tem açúcar, mas é pouca, melhor que adoçante. Bom apetite!

PERDOE-ME

Perdoe-me porque você me traiu. Você, logo você com quem dividi comida e abrigo, e sonhos, pra quem contei segredos. E ouvi segredos, perdão porque os guardei no fundo do coração, sagrados que são os seus para mim; e não os revelarei nem mesmo sob tortura.

Perdão porque me distrai de nós dois e deixei que vozes de maldade chegassem aos seus ouvidos; e porque não lhe expliquei meus motivos. Devia, devia ter quebrado a barreira de seu castelo e invadido para lhe explicar por que. Perdão porque me calei quando, surpresa, vi que seu olhar não me via. Eu devia ter me descabelado, corrido nua pela rua, chamado a polícia, sei lá, devia. Ter feito você me ouvir, ter aberto uma estrada com meu desespero para que você soubesse. Perdão por ter me refugiado na minha dor, e chorado em bicas em noites estreladas, por ter visto você me odiar aos pouquinhos, e eu, quieta, com medo de piorar tudo. Perdão por não ter lhe dito que entenderia qualquer coisa que quisesse me dizer, qualquer verdade sangrenta seria mais doce que o ódio que você vi  nos seus olhos da última vez; e permitir que você visse em mim algo que não era eu. Eu devia ter gritado e chorado mais ainda.

Perdoe-me por ter deixado você me trair.

PRIMEIRO DIA DE OUTONO

O dia, menor, friorento, me faz lembrar blusas quentinhas guardadas em enxaguantes cheirosos contra mofo. Acabou o Verão. Huumm, bom demais, mais uma estação se vai. Virá outra(o), rememoro um complexo de Poliana. Tá tudo tão bem, penso enquanto subo e desço a calçada perto da Faculdade. Tá tudo bem... mesmo? Ah, claro tudo pode ficar bem, por que não? Ah, credo, mas tudo pode dar tão errado também; ah, pode sim. Poder, pode, mas tenho essa mania de me esconder a portas fechadas esperando o coração se acalmar depois de paulada. Fico quietinha, você pode saber disso, não me importo, sou assim, não consigo matar moscas... nem elefantes. Fico quietinha quando qualquer ato adiante, ou palavra errante, pode piorar o que já está ruim. Tem hora que dá vontade de fugir. Para onde? Essa é a questão: meu coração despedaçado vai, junto, pra qualquer lugar que eu vá. Daí o quarto escuro ajuda a evitar que atitudes infantis coloquem fogo na lenha.

Nada que um almoço, primeiro depois de abismo, não alimente forças sobrenaturais: amizade, carinho, belezas; comida, pavê de abacaxi. Então, tá tudo bem, digo prum coração verdadeiro que qualquer tempestade, ou má intenção, não vá quebrar, mas que, fortalecido pelos dias de bonança vai seguir o riso que nasce entre aconchego de cobertores, ou de abraços.

Tá tudo bem, repito pra me convencer, e ergo o rosto para o tímido sol da primeira manhã de Outono, afinal, se ontem foi Verão, amanhã será Inverno: movimentos naturais que acompanho com serenidade, afinal, o que importa, se estou onde estou é, definitivamente, onde devo estar. A paisagem ao meu redor pintarei com as cores que meus olhos escolherem, amigos que são, do meu coração.

Tá, daí, ao passar esses devaneios para o Word, no computador de casa, percebo que, mesmo que eu escolha as cores do Outono, laranja, dourado, vermelho, vou ver tudo no mais profundo azul: outra pane do monitor. Mas insisto, não é tão ruim assim, é o primeiro dia de Outono, afinal, está tudo, muito, prometo, está tudo muito bem. É o que ando dizendo, distraída que sou! 

 PARA HOJE

Flores. Música. Paixão. Sol. Passos de dança. Perfumes. Risos. Chegadas... Champanhe? Porque amanheceu um dia lindo demais!!! Quero anjos, me mande um? Quero magia; acreditar que o que meu coração quer é verdadeiro, puro, natural. Quero sinos anunciando: a primavera começa hoje. Quero acreditar, com força, que posso, ser, querer, ir. Acreditar que posso viver a vida do jeito que meu coração acredita.

Por que hoje amanheceu um dia Ímpar, como esse não haverá outro. E como eu não existirá outra. Porque o dia amanheceu, e lindo, quero que seja mágico, só isso...

Ah, bem, quero dizer, uma cachacinha com torresmo também não faz mal, né?

 O QUE (DES)APRENDI COM A IDADE

Quase todos os dias recebo um texto de alguém se dizendo velho e o que aprendeu com a idade. Alguns são bem originais, alguns têm até assinaturas de celebridades, outros são apenas repetição. De todas essas lições, algumas sei, são verdades, outras, pura invenção.

Tanto estardalhaço porque se é velho... O que mais se repete é: aprendi a me amar. Uai, gosto mais de mim hoje não porque sou velha. Gosto mais porque cansei de me trocar para ser o que os outros queriam, mas se tivesse sido mais esperta, teria aprendido isso mesmo quando moça. Essa coisa de aprender hoje porque estou velha não funciona pra mim, ao contrario, descubro, todo dia, algo que devo desaprender.

Desaprendi a amar incondicionalmente, hoje quero um pouco de amor para mim. Desaprendi a rir a bandeiras despregadas, o que me custou um noivado quando jovem. Desaprendi a ver a aparência: há cobras de todos os formatos escondidas sob máscaras maravilhosas. Desaprendi tudo que sabia de Geografia, o mundo tem mudado mais rápido do que consigo acompanhar!

Desaprendi coisas que meus pais e avós me ensinaram, como acender o fogo com lenha molhada, porque isso não é mais útil no tempo de agora. Sobretudo, desaprendi a falar. Meus sentimentos mais dolorosos não podem ser expressos em palavras conhecidas. Minhas maiores alegrias pareceriam frescura, ou loucura, de mulher velha, então as guardo bem protegidas. E desaprendi de barulhos, ao contrário, me permito agora o silêncio. Isso, aprendi.

NO QUE ESTOU PENSANDO

Pensar, nesses tempos meus, é o que mais faço. De todas as ações típicas de seres viventes, hoje em dia, penso mais que nunca. E isso me leva a concluir que pensei muito pouco em outros tempos mesmo porque nem tempo tinha pra isso. Tinha que fazer, o que quer que seja, pra ontem, antes que a casa caísse, digamos assim.

Depois de tanto fazer, hoje penso como desfazer o que fiz sem pensar. Algumas coisas tive a chance de fazer de novo? Uai, nada, Sô, faço nada de novo não. O que faço hoje em dia, poucas coisas,  tento pensar antes de fazer. De passado, as coisas estão onde e como deveriam estar.

Assim, hoje em dia o que mais faço é pensar, por isso, descobri que esse meu tempo, é tempo mais de aprender que ensinar, o contrário do que um dia acreditei.

 IRRESISTÍVEL

Manhã de sol a pino que parece o mundo virou de vidro. A luz empurra para algum canto remoto todas as sombras, impossível não pensar em sair pra rua, levantar os braços em bandeira, virar o rosto pro céu e rodopiar como pião; e deixar que um abraço quente envolva o corpo todo. E respirar profundamente, devagar, o ar doce trazido pelo vento suave. Irresistível manhã, irresistível, a vida.

 I’LL FOUND YOU IN THE MORNING “SON”

Estava marcada para as 10 noras, aconteceu às 9 e 23: a casa se esvaziou, e, por um momento, até desliguei a música. Me sentei, tomei um resto de café frio. A fruteira está cheia de bananas maduras, ainda tem iogurte e suco na geladeira. Brinquei por último: “vou deixar a cachorra sem comida até você voltar”. Você concordou, a voz cristalina, como um raio de luz que você mostrou todos os dias, um dia. Sentada na cozinha silenciosa, deixei meu coração sentir o que quisesse. Cansei de racionalizar... que sinta o que sente. Não vou chorar, não precisa, tudo foi dito, tudo foi feito quando teve que ser. Fomos inteiros quando éramos outros de nós, fomos tudo um para o outro quando éramos, o que não somos agora. Não sentirei saudade, você não partiu de mim... E o verei nas manhãs ensolaradas, e nos dias de chuva, e “quando olhar para a lua em noites novas”. Pelo resto da minha vida.

 MEU ULTIMO AMOR ETERNO

Nem era porque eu acreditei; nem era porque estava esperando. Nem era porque tudo convergia, as estrelas, a lua, o inverno, a primavera, nem era isso. Acho que porque foi, talvez, mais, o vento. Aquele que sussurrou antes que eu pudesse ouvir. Aquele sussurro que já habitava as colinas despidas, eternas, aquele vento que ora balançava, ora açoitava as macaúbas solitárias ou espalhava, suavemente, as sedas das paineiras gigantescas. O vento, sim, mas pode ser também a areia fina, imaculada de caminhos sem passos, apenas traços de passado lacrado em veios de pedra, caminho incerto, pedras imóveis se gastando apenas com gotas e chuvas, não mais tempestades, agora, mais, silêncios.

Ou, talvez, o capim rasteiro se segurando a raízes mortas morro acima nos trilhos de ribanceiras; agarrado a barrancos, o capim teimoso, tanto, esse, de sussurros, ou uivos, do por do sol de todas as tardes se desfalecendo, de todas as manhas tímidas, frias, mudas. Acho que o capim, não? Então, talvez o negrume da grota funda, inexpugnável de onde sempre ouvi aquele rouco chamado.

De algum lugar, ou por causa de alguém, ou alguma coisa, aquela ternura irrompeu, não como a cachoeira, mas trazida, levemente, pelo vento da colina mais singela. Nem me assustei, não reconheci, não sabia, nem acreditava, muito menos esperava. Assim, só por isso, misturado às pedras, aos sussurros da brisa mais suave, ao esvoaçar de raízes e sementes, talvez por isso, foi tanto. Grande demais; para saber, tive que pegar carona nos pássaros habitantes das copas milenares e olhar de longe. E só, no alto, distante, entendi seus contornos, sua forma e seu jeito de ser. E era. Só que voei alto e longe demais, e não consegui mais voltar.

 

 MEMÓRIAS ESQUECIDAS

Uma das lições que recebi por último foi que podemos mudar nossos sonhos. Teve um que morou no meu coração por anos: morar numa casinha sem varanda com a porta dando direto pra chão de terra. Um trilho que me levaria a um jardim/horta bem pertinho. Tão pertinho que eu o admiraria todas as manhãs quando abrisse a primeira janela. Daí o dia se estenderia infinitamente. Dessa janela, também veria o céu, as estrelas de noite, o horizonte longe. Amanhecendo, eu sairia pro “tempo” e andaria sobre chão fresco de orvalho ouvindo todo tipo de passarinho.

Esse sonho se transformou nisso: sonho. Mesmo que eu tenha tentado realizá-lo um dia, desisti dele. Decisões equivocadas, sei lá, desisti.

O bom é que sonhar se pode sempre. Arranjei outro sonho: morar numa casa gostosa com todo conforto moderno, e ter um jardim/horta bem pertinho, num terraço que abro todas as manhãs de onde vejo o céu e um monte de telhados, e dou bom dia aos pardais nos fios de eletricidade. Ontem ouvi um bem-te-vi; o vizinho, Sr. Nicanor, disse que tem uma coruja morando no muro dele.

Não tenho sonhos assim, esse eu o vivo. E tenho muitas outras coisas pras quais eu nem ligava antes: carro na garagem, casão na capital, telefone celular que faz tantas coisas que nem sei, Internet, blogs, Word, viagens, passeios em shoppings. Agora quando me canso, me recolho à quietude desse canto que nunca saiu do lugar. Eu, sim, rodei mundo, fugi, quis me transformar em poeira; não consegui, não se consegue tudo que se quer, acho. Mesmo assim, me recolho contente a esse sonho que não sonhei, ganhei sem muito querer, e por fim, escolhi. Não vivo o sonho que sonhei, vivo um que não sonhei, mesmo assim, o sonho que vivo agora o vivo de coração leve e faceiro.