Desconstruindo minha vida
Foram três caixas hoje. As enfileirei sobre as pedras
quebradas da calçada dos fundos, de livros. Nãos são as primeiras nem as últimas.
No barzinho, na estante grande do corredor, nos armários do hall, em gavetas e
até nas cadeiras da mesa da varanda há livros pra jogar fora. E revistas de coleção,
as Arquitetura e construção e as Cláudia são as mais numerosas. E tem
embrulhadas no pacote, restos das Grande Hotel de minha avó que minha mãe guardou,
e que guardei por minha vez. Cai na besteira de encher as caixas antes de
coloca-las na rua. Tive que arrastá-las pela casa todas. Claro que em manhãs de
quinta-feira quando o caminhão de coleta de recicláveis passa há, muitas vezes,
vários tipos de material para serem coletados. Não eram só caixas que se
alinhavam ao meio fio. Hoje tinha até o material velho que foi trocado da caixa
de descarga; essa foi grande vitória: deu trabalho por anos, vamos ver se
resolvei dessa vez.
Pensei que podia fotografar para mostrar a minhas filhas,
principalmente a que vive mais pero de mim que tem me estimulado a jogar fora
coisas inúteis. O policiamento é ferrenho e tenho isso como meta também principalmente
depois do dia que ouvi “não vou guardar suas revistas velhas quando você morrer,
mãe”. Respondi que podia jogar tudo fora, tudo que fosse meu. E hoje vários pacotes
de partes de mim foram descartados pelo mundo afora.
Tenho feito muito disso por esses dias. E parece que as
coisas estão se multiplicando ao invés de serem reduzidas, hoje mesmo achei uma
teia de aranha enorme. Puxei um criado, velho também, do canto da janela pra enxugar
pingos da chuva forte que caiu de repente. A teia fazia voltas criativas pela
madeira e trançava um bordado discreto tão bonito que tive pena de passar o
pano. Não evitei um sorriso bege quando pensei que haveria outros lugares onde
estariam sendo construídas teias tantas são as tramas que observo.
E vai ainda que jogar coisas fora não é tarefa fácil. Hoje cedo
mesmo separei com cuidado cadernos e livros, e provas antigas de meus filhos,
guardados que poderiam recontar as histórias de cada um. Tomei o cuidado de
retirar os plásticos das capas, os encapava todos e botava etiquetas
identificando, filho, colégio, ano, muitos. Achei duas provas da mais velha,
uma de matemática e outra de desenho, as duas com 3 de 10. Outro sorriso, e
essa menina ontem me pregou peça pelo WhatsApp dizendo que tinha perdido a função
de analista. Imediatamente passei mensagem de coparticipação na tragedia
pedindo pra ela explicar o que aconteceu. Mais tarde veio o kkkkkk pra dizer
que ela perdeu a função pra ser promovida a chefe. Pronto, o susto foi apenas
encenado e todos nos voltamos ao grupo pra felicitar, aprovar, e coparticipar
da alegria. E as duas provas nota 3 foram pro caminhão de recicláveis hoje cedo.
Eu tenho, tinha porque estou me esforçando, mania de guardar lembranças dos
meus filhos, medo de a memoria falhar o que é pesadelo pra quem passa pela essa
idade que vivo. Medo de desconstruir um mundo mágico que vivemos nessa casa. Mesmo
que tenha havido teias de aranha, vivemos bem na maior parte do tempo, sei por
mim e por eles, sei porque o meu coração acredita assim. E isso não é passado: foi
tudo magia quando vivi com todos os meus amores nessa casa.
Se os cadernos velhos e livros desatualizados estão sendo cuidadosamente
separados para reciclagem, minha vida de esforços e trabalho para cuidar de
quem amo vai ficando pelos bordados de minha memória, ainda, e essas farão parte
de mim mesmo que todos os cômodos por aqui sejam desmontados. Corre em meu sangue,
faz parte de minha respiração, meu coração bate, ainda, apenas pelos meus
amores porque são eles os que morarão para sempre em mim esteja eu rodeada de
traças ou me espreguiçando em manhãs milagrosas em algum lugar do universo. Porque
é deles que sou feita, de meus amores. E esses, gire o mundo como quiser, não serão
jamais, de nenhuma forma, empacotados para encher o caminhão da quinta feira..