quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A MULHER QUE VIROU ÁRVORE

Tudo começou quando ela viu que sofria, além da conta, como se tivesse cortes profundos, quando viu aquela carreira de árvores de raízes para o ar, há uns anos. De dentro do ônibus que a levava para o trabalho viu, e sentiu, feridas se abrindo a cada uma das copas frondosas jogadas na terra solta, imóveis, mudas, mortas. Mudas, não; havia um gemido, outro, repetido; um no começo, depois tantos que ela tampou os ouvidos. Olhou ao redor, segurando a cabeça nas mãos, quase perguntou a alguém de onde vinha aquele barulho. Ninguém via a paisagem deprimente, não havia barulho a não ser o do motor do ônibus; daí descobriu que ela podia ouvir os murmúrios mudos das grandes árvores abatidas, jogadas ao chão como resultado de guerra sangrenta.
Guerra sim, injusta, covarde, porque é sabido que as árvores não usam espadas ou atiram balas de canhões. Definitivamente, elas não fazem isso. A qualidade das árvores, a maior, é dar frutos; e todas elas dão. Uma árvore torta, de folhas verde-escuras, casca-grossa, não poderia ser grande coisa... pensou um dia a mulher. Daí quando passou a ver de perto, viu que todas tinham, a modo próprio, suas flores: algumas tão pequenas, invisíveis, imperceptíveis. E se há flores, há frutos; se há fruto há amparo: há abrigo de beija-flor, há o mel da abelha pequenina, há a sombra para o bicho, o ar limpo para o alheio homem.
Que papel tem as árvores! Quão sagradas são em suas tantas qualidades e modelos! E quão caladas são que não dizem a quem as sangra o que poderiam fazer se vivessem. Sim, viver seria melhor do que virar cinza. É tão inútil descolorir suas majestosas ações; mas aquelas, vistas da estrada, não viveriam mais. Muitas delas, em fila, uma, duas, três, cem, duzentas. Não acabava aquela visão, não parava o murmúrio torturante: "Vuu! Vuu! Vuu!...” Seria elas mesmo? Ou seria o vento as tentando levantar? O companheiro fiel passaria ao largo agora, sem tocar as folhas altivas, sem espalhar os suaves perfumes, sem levar as doces sementes? Estaria o vento chorando pelas amigas derreadas? "Vuu! Vuu! Vuu!...”
Daquela tarde de terror, a mulher nunca se esqueceu. Descobriu que não poderia andar por muito mais tempo por aquele caminho: chorava por dentro, emudecia por fora, como as árvores, descobriu essa coincidência entre elas. Depois descobriu que a respiração se tornava difícil em certos lugares: onde não podia ver o céu. Ainda descobriu que também amava a terra, macia, fresca em colorações de arco-íris, e de onde poderia tirar também o próprio alimento. Então, viu que a cidade impermeabilizada a afastava de sua seiva; daí partiu para onde poderia botar os pés na terra e ao mesmo tempo ver o céu. E ainda queria mais: queria silêncio. Mais um arranjo teve que ser feito para que a mulher pudesse ficar com os pés – e mãos – na terra, para que pudesse ver sempre o céu; para que pudesse ouvir o silêncio.
E ainda queria: o vento, o barulho do vento, o frescor do vento, a liberdade do vento. Não para ser um, mas para senti-lo na pele, nos cabelos. Muitos ventos diferentes que a avisariam que amanheceu, que seria hora de se recolher ou hora de sair cantando sob o sol. Taí, outra coisa que a mulher queria.
O sol, trazendo o calor para seus pés frescos de terra; trazendo a energia para lhe dar forças para criar abrigos, sombra e alimento para tantos passarinhos, os próprios e os de quem mais quisesse, ou precisasse. Sim, sem o sol não poderia viver, nem um dia poderia ficar sem o seu abraço estimulante. Daí teve que fazer novos arranjos: para que pudesse tocar a terra, ver o céu, sentir o vento, ouvir o silêncio e roubar a energia do sol. Daí em diante essa mulher não poderia mais, não mais, viver diferente. Propôs diferentes contratos, fez outras viagens, escolheu outros caminhos: a levariam aonde, então, pudesse viver de acordo com suas novas funções.
E foi. Quando a primavera chegou, vieram as flores; e descobriu que tinham perfume, enlevante perfume; e pequeninas sementes, sutis, quase invisíveis; que cairiam na terra e gerariam mais "frutos". Estava completo agora, todo o seu ciclo de vida: voltara às raízes, às antigas, mesmo que trazendo outras, mas estava pronta. Pronta para cumprir a última parte de sua sagrada missão: a mulher estava, finalmente, onde podia repousar na terra, tocar o céu, ouvir o vento e sentir o silêncio. E através da terra, do céu, do vento e do silêncio ela se apoderou, para sempre, do sol eterno.

Por
Magda Regina Miranda de Castro
Abaeté, MG, 02 de setembro de 2009.