terça-feira, 26 de janeiro de 2010

PRAZO DE VALIDADE

Com a correria de fim de ano, as férias da “faz tudo”, a chegada do bebê primeira netinha, outros eventos nem tão agradáveis e ainda tarefas do último semestre na faculdade, a comilança costumeira na casa se reduziu a comida congelada, frutas aos montes, e pão, presunto e queijo e leite. É que não dava tempo de preparar quitutes elaborados. Fome, sei, ninguém passou, mas comer pão de queijo de manhã e de noite, tomar sucos criativos e saudáveis, bolos, pudins só quando juntava todo mundo prá ajudar. Isso quer dizer que foram raros esses momentos. Até fazer o trivial misto quente exigia abrir mão de tarefas urgentes – limpar o pátio, por causa da cachorra, por exemplo. Então, a comilança, mesmo que ainda boa, foi bem reduzida.
Quando os dias foram se acalmando, o bebê já tinha certos horários, as moças voltaram aos seus respectivos trabalhos, a urgência foi se dispersando e pude, ao menos, checar os armários de comida e a geladeira. Só então descobri que a granola tinha rançado, havia bandejas e bandejas de queijo e presunto com a data de validade vencida; idem um pacote cheio de pão de forma, iogurtes, biscoitos, macarrão. Daí, comecei a conferir tudo: as caixas de leite foram colocadas em ordem de vencimento, e também os pacotes de feijão, os de arroz, as farinhas, as latas de conservas, as caixinhas de gelatina. Passei para os temperos – tinha um vidro de pimenta do reino vencido há dois anos, pode? Nos salvamos porque não gostamos dessa. De outras, como a dedo de moça, a cumari, a baiana a gente até come pura – algumas de nós – mas a pimenta do reino é só para o molho branco com queijo gorgonzola que a filha morena gosta, de modo que essa com dois anos de vencido o prazo de uso não trouxe prejuízo nenhum.
De qualquer forma, passei uns dias me dedicando à minha casa: anotei as mudanças que quero fazer pelo ano afora, esse novo que tão breve começou que semana que vem já retornam as aulas; não as da caçula que a UnB só em março mas as da universidade onde vou trabalhar de agora em diante. Pois é, mais uma vez pedi demissão da faculdade onde trabalhava, essa então era a do interior, da cidade de minha mãe, para onde fui em agosto de 2009. O que fazer quando o universo gira tão depressa e a gente tem que decidir igualmente? Então, a ida para o interior, tão festejada, foi só por um semestre, mas, sabem, mesmo assim valeu demais!
Foram pequenos os detalhes, quase sinais, no começo, que pareciam me dizer para voltar para cá, para Brasília. Daí voltei, só que não foi por um detalhe. Claro que não foi detalhe a perda do afilhado querido, primo quase irmão de minhas filhas. Essa passagem está marcada a ferro quente em nossos corações e todos estamos nos equilibrando em ovos, estupefatos, incrédulos com o fato de que nunca mais veremos aquele sorriso iluminado que entrava sala adentro procurando pela “Dinda”. Foi arrasador, é triste, e ninguém ainda sabe exatamente como viver com essa ausência. Foi brutal, ainda mais que as comemorações de seu 23º aniversário ainda estavam acontecendo quando ele caiu doente.
De repente, ele deu entrada no pronto-socorro e assim que foi atendido foi levado de maca, cercado de médicos, para a UTI. A mãe conta que o coração dela avisou, quando o viu se afastar acenando, que o adorado único filho estava partindo para sempre. Dolorosa, inigualável, a maior tragédia que se pode viver. E agora? Viver como? E vemos essa mãe, mais que todos, a vemos se agarrar ao que quer que a sustente, a cada minuto que respira. Acompanhamos essa dor, fazendo preces, oferecendo apoio, vigiando de perto, ou longe. Na maioria das vezes nem se pode dizer nada... O que poderia ser dito que ajudaria?
"A vida continua”, nesse caso, é quase ofensa. Poderia ser possível isso para alguns, talvez, mas não para a família. E mesmo para quem não vivia na mesma casa, mas o tinha como parte da própria vida como aqui em casa sentimos ainda sua presença. Só que, aos poucos, sua presença se retira empurrada pela saudade. Ele alegrava tudo por onde passava, não comentava de problemas alheios, ajudava sempre que preciso. Um exemplo disso fiquei sabendo pela moça que passava a roupa dele: a filha de 12 anos foi seduzida por um marmanjo e fugiu com ele. Esse nosso jovem milagroso patrulhou a cidade até que a menina foi encontrada. A mãe dela ouviu conselhos, a garota também: elas estão bem hoje, mãe e filha, mais unidas, conforme essa senhora contou.
Bem estar, entretanto, levará muito tempo para acontecer de novo no lar desse rapaz. Demorará, e que os céus permitam que não em demasia, para o retorno da alegria porque tragédias assim grudam nos ossos, nas veias, no ar que se respira. Coisas desse tipo balançam a abóbada celeste, faz tremer as serras, nos esmagam como insetos. Coisas grandes demais para nossos corações tão incapazes que atingem tudo que existe ao redor. A gente passa a pensar "o que fiz", ou "o que não fiz", o "que fiz de errado?" Ou: "o que tenho que fazer hoje que não pode esperar?" Quando nos reunimos, só dele queremos falar. Nenhum outro assunto tem importância. Invariavelmente falamos do riso, das brincadeiras, dos abraços apertados, e da ausência irreversível. Tentando compreender, buscamos razões, justificativas. Descobrimos o bem que ele nos fez a todos e o quanto amava cada um que o conhecia.
Uma das tias, que ele amava em especial, me confessou o sofrimento, a dor e a incompreensão do que aconteceu. Para aliviá-la, respondi simplesmente que “somos todos abençoados” os que o tocamos ou que foram “tocados por ele”. Disse que sentir isso, me consolou, que me sinto fortemente abençoada por ter sido amada por ele. Me faz muito bem, me sentir escolhida para receber o carinho de alguém tão doce. É como se tivesse recebido a bênção direto do paraíso e que, portanto, eu era uma pessoa única, especial.
E é com essa realidade, com esses sentimentos, que vivemos, hoje. Nada poderá mudar isso, mas o alívio chega um dia, para todos, de diferentes formas e talvez em diferentes momentos. O que se pode fazer, por ora, é um cuidar do outro quando os joelhos insistem em se dobrar porque se ainda estamos nesse mundo tão misterioso deve haver alguma razão. Devemos ter missões a cumprir, e quem já partiu deve ser porque já encerrou sua tarefa; e assim, prefiro imaginar que nosso querido foi mais esperto: vai chegar antes, na frente de todos. Quem sabe para preparar o caminho para quem ele ama?
Conforto ou não, pensar assim leva a mais reflexão. Exige tirar a lição, apurar o que deve ser apurado, aprender. Aprender para fazer melhor o que devemos fazer, dar mais valor a quem está ao nosso lado, a quem nos acompanha nessa estrada. Vejo isso em todos nós hoje: cada um tentando fazer o que deve ser feito, do melhor jeito, e o mais depressa possível, enquanto é hora de fazer; enquanto o nosso tempo não se expira.
Esses pensamentos têm permeado todas as minhas horas, nas grandes ou pequenas tarefas. Enquanto limpo, cozinho, lavo, vou refletindo sobre os maiores valores: me preocupo com o amor dado, o amor cuidado, o amor profundo e verdadeiro que muitas vezes deixamos de oferecer, de distribuir, de fazer valer. Me preocupo com aqueles que amamos e estão longe, sem saber disso, talvez. Me preocupo com o findar da nossa chance de viver, com o proveito que tiramos de nossas bênçãos e maravilhas, enquanto existem e estão ao nosso alcance.
Me preocupo com a possibilidade de perdermos esse valioso bem: o amor; de não vivermos suficientemente a sua totalidade e ele se esvair no comodismo, nos preconceitos, nas taras individuais. Talvez a morte ensine, afinal, que a vida é valiosa demais para ser parcialmente vivida; que as pessoas são incríveis demais para serem pouco notadas; que somos pequenos demais quando vivemos sem amar ou sem ser amados. O que fazer, então, para vivermos plenamente, para vivermos profunda e gloriosamente a vida?
Ah, sei que não poderia dar uma resposta para essa pergunta, não sou capaz o bastante, ainda não aprendi o suficiente, e nem sei se assim será um dia. A impressão que tenho é que essa compreensão não existe no mundo dos vivos, então, prefiro deixar essa questão para meu coração responder, então, a deixo lá, pulsando junto. Oxalá um dia o vento chegue e me diga que amar em pencas pode ser uma provável resposta.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, 26 de janeiro de 2010.