segunda-feira, 23 de junho de 2008

TEMPOS DIFÍCEIS ESSES PARA O AMOR

Talvez sejam os novos modos. O novo jeito de viver, isolados por paredes e, nessas, são instalados olhos de mundo: não é mais necessário estar ao ar livre para participar das emoções das tempestades, do nascer do sol em manhãs de nevoeiro, do por do sol com brisa fresca a movimentar cabelos. Esses são tempos de pessoas viverem em espaços muito pequenos, inconcebíveis para quem, em outras eras, construiu castelos em topos de colinas, catedrais rumo ao céu, para quem ligou mundos por pontes magníficas.
Vive-se em flats, kits, lofts, cubículos onde se instala tudo: comida pronta, roupa passada, vidraças dez vezes mais fortes, telefone sem fio, emoções. Células de onde basta apertar a tecla certa para conseguir o remédio, o jantar de gala, a flor fresca, o amor medido: tudo ao gosto de cada um.
Criam-se padrões: de construção, de beleza, de lazer, de felicidade e de emoções. A emoção correta é a da moda, mesmo que seja só imagem, transportada através do tempo e do espaço. É que se pode ver uma montanha ruir, uma vaga ou avalanche soterrar cidades, sem que nem um dedo seja ferido. É possível se emocionar com o que está acontecendo nesse minuto a quilômetros de distância.
Pena que, com tantos padrões, espaços encolhidos e tanta tecnologia, o amor se perde. Se extingue, lentamente, sem aplausos. Mesmo que se saiba todas as regras de convivência, da boa educação, do respeito, há crescente confusão quanto à entrega, à intimidade, quanto até onde chegar no espaço do outro.
É que não se confia mais. Nem em si mesmo, naquilo que, verdadeiramente, se é – e no que não se é – dentro do padrão da moda: o de que é possível ser tudo. A maioria das pessoas acredita que pode ser o que e quem quiser, fazer e ir aonde quiser. Pode-se tudo. E tudo se quer. Como se o homem só pudesse olhar para longe, quem sabe, para não ver o vazio no qual se transformou.
Inventa-se, cria-se, modifica-se: regras, coisas, valores, sentimentos. “Não ria tão alto!”, “Não tenha tanta expectativa!”, “não atravesse fora da faixa”, “faça exercícios”, “coma mais verduras!”, “ela não é meu tipo”. Regras que estampam ruas e passagens, traseiras de ônibus, páginas de Internet.
É que a comunicação perdeu o radical “comum” para se tornar “in”, de individual, de intocável. Virou comunicação à distância, sem o toque do calor, sem o timbre de veludo da voz carinhosa, sem o passo do encontro. É mais fácil ver e pensar superficialmente e as relações pessoais ficam apenas: nas possibilidades: jamais se tornam reais. Parece que satisfaz apenas pela possível realização e não pelo fato consumado. Não é preciso sair à rua, à chuva, se expor. Há sempre a espera do melhor momento para qualquer coisa e como há tantos possíveis bons momentos, o passo final se adia.
Antes, disso vem o individual, o próprio. Primeiro vem o “gostar de si mesmo”, “viver por si mesmo”, depois, o resto do mundo. Sim. Porque viver ao lado dá trabalho: é tão difícil acompanhar, perdoar, entender o sonho alheio. Vizinho, então, coisa chata! Repartir, consorciar, convergir são palavras deslocadas. “Dar para receber” virou piada.
O certo e o errado trocaram de lugar, repentinamente. A mesma regra pela qual alguém morreu um dia, hoje é ridícula ou ultrapassada. Há novos padrões a seguir a qualquer preço, para se ser feliz. E ser feliz agora é não sofrer nada, não botar o pé na lama, não se molhar na chuva fria, não se expor às paixões.
Paixão, então, essa pobre! Até para se apaixonar tem regra. Tem clichês de todos os tamanhos: “Nossa, como ele é feio para ela!”, “Cruzes! Como ela é gorda!”, como se fosse possível medir, enquadrar ou definir paixões. Além do que se apaixonar é coisa perigosa: perigo de desarrumar, de quebrar regras. Então, paixão, nem pensar.
E pensar, profundamente, cirurgicamente sobre o que se é hoje é exercício de muita coragem porque explicar a finalidade de todos os talentos humanos está fora de moda. É melhor fazer de conta que tudo é perfeito e isolar a vida em caixas onde não cabe mais gente, alívio, porque gente incomoda. Por isso não incomodam casas pequenas, almas pequenas, vidas pequenas. Daí, quem não se conforma com pequenos amores, sofre calado, quem procura o abraço quente ou madrugada em boa companhia tem pouco o que esperar: ser carente é pejorativo. Querer amar de verdade é insegurança, fragilidade, então, mais vale o “ficar” fátuo, pequena explosão de espoleta: acontece de repente e desaparece depressa sem que se tenha tempo de aprender a gostar porque assim não terá que desaprender a sofrer.
“Fica-se” à meia-luz para que não sejam vistos os detalhes, a imperfeição e tudo se disfarça. E de disfarce em disfarce se disfarça o amor, se disfarça a dor, disfarça-se o que se quer verdadeiramente.
O irônico é que entre preços, regras e disfarces paga-se demais por tudo, mais do que poderia valer. Obedece-se a regras às custas de lágrimas, não mostradas; é feito grande esforço por algo que nem se queria realmente mas que “pareceu” ser o “modelo”.
Um jogo, perigoso, diga-se, de ser e não poder parecer. De querer e não poder parecer querer. De querer amar e não saber mais como achar o caminho para os corações. O jogo de não querer ficar só, mas dizer aos ventos que “está muito bem sozinho” mesmo que a chegada da noite seja de tal forma terrível que se tenha de afogar a solidão no álcool, no programa de mau gosto na televisão, numa companhia duvidosa. É que não é moda precisar ou esperar por alguém.
Mesmo assim, desconfio que em meio a essa confusão, muito profundamente, cada alma quer encontrar o amor. Todos querem, mesmo fingindo não querer, conhecer alguém que sabe, de verdade, o que é e do que é capaz e do que precisa realmente. Alguém que expõe o rosto descoberto para o sol do meio dia, que abre os braços a quem chega, que ultrapassa o limite desenhado na calçada, que avança pela floresta. Alguém que não é perfeito nem se importa em ser; que acredita e vive por isso e aceita, sem choque ou fingimento, os defeitos dos outros e os próprios; que vive com medo, mas não recua. Alguém que se baste, mas que não fuja dos outros que goste também de bichos e de flores. Que descansa, mas também caminha; que acredita antes de ver; que toca e se dá; que gosta da sombra, mas que prefere a luz
Difíceis tempos esses para o amor que mesmo tão simples ficou misturado aos escombros: tudo acumula, mais vale ter do que ser. Amor de paz e de tranqüilidade emudeceu ante o barulho da viagem. O amor, que completaria a glória dos humanos, inteligentes de cérebro e de alma, se distancia em silêncio sem que haja claro esforço para resgatá-lo. Os homens se exauriram para atender necessidades descartáveis e o verdadeiro recebeu disfarces para não destoar do contexto. E, jogado ao comum do possível, o amor soterrado não incomoda.
É que o amor põe de joelhos, desnuda, descobre. E aí esse ser moderno, quase não-humano, poderia se sentir vulnerável já que a regra é que seja sempre altivo, altaneiro, vencedor: uma mentira. Ainda, o amor faz parecer antiquados os que amam, então se finge não querer amor, mas diversão: um aperitivo, apenas a amostra, o arremedo, nada de futuro, nenhuma possibilidade.
Tempos complicados esses para o amor quando ele só precisa de humildade, ternura, sinceridade e compromisso: valores tão fora de moda.

Por Magda Regina Miranda de Castro
Brasília, 03 de novembro de 2007.

Nenhum comentário: