segunda-feira, 23 de junho de 2008

DIA DE DOMINGO

"Sei que o amanhecer chegou porque abri os olhos quando o calor se tornou insuportável. Posso pressentir a luz invadindo tudo. Parece que vai ser um daqueles dias quentes de rachar mamona. Um raio de sol penetra pela fresta entre o reboco da parede e a moldura da janela. Pequenos seres coloridos brincam no meio da luz. Faço um círculo com o dedo em riste e os pequeninos começam uma dança frenética, mas, aos poucos, se acalmam e voltam em silêncio para o caminho transparente.
Perambulo o olhar através da penumbra do quarto e mais uma vez penso que as paredes são meio tortas. O que na verdade não é de se estranhar considerando a qualidade duvidosa do resto da construção. Se a curiosidade fosse grande o bastante poderia até medir as paredes para ter essa certeza. Quem sabe um dia.
Estou sobre um colchão a um canto do quarto, sem cama. A cama fica reservada para minhas duas irmãs que a dividem infalivelmente depois de trocarem uns tapas para conseguirem cada uma o seu lado preferido. Elas ainda ressonam. Vejo mais uma vez que o colchão está puído e acho que se a “Mãe” quisesse poderia remendá-lo mas parece que isso não faz parte das prioridades dela porque os buracos estão aumentando desde que os vi pela primeira vez não me lembro quando.
A casa ainda está silenciosa. Ninguém se levantou e levado pelos meus pensamentos quase embotados por causa da repetição modorrenta de todos os dias da minha vida, de repente, descubro que este é um dia de domingo.
Ah! Mais um domingo! Me ergo, quase já cansado, e arrasto as pernas através do cimento vermelhão até a porta que dá para a cozinha e estico o pescoço para o seu interior. Uma barata passa de um canto a outro, vagarosamente, como a dar chance a um cheiro de comida alcançá-la. Inútil espera. A última comida que entrou em casa foi aquele queijo fresco que um tio, sabedor de nossa minguada mesa, enviou ontem de manhã e que acabou como lauto almoço e pelo que sei, acho que pouco, de baratas, não me consta que elas gostem de queijo.
Penso ainda que talvez pudesse tomar um copo d’água, presença se não constante, menos rara, mas a ausência de um copo à altura da minha mão me conduziu a adiar a façanha para um momento mais premente.
A passos contados, são quatro, entro na sala tamanho tal que o sofá, esse não menos esburacado, alcança toda a parede indo tomar parte do umbral da porta. Mas que não me entendam mal sobre o tamanho da sala pois que ali não me caberia teso em caixão. Empurro um pé de sapato para que se una ao pé que estava do outro lado da sala e sinto que talvez tenha sido essa uma atitude muito louvável de minha parte.
Abro cuidadosamente a porta da rua e a luz invade a casa. Alcanço o dia então, quase que tateando, cego pela poderosa presença. Devagar chego ao muro, pelo menos é o modelo com o qual aquilo mais se parece e lanço um olhar desconfiado à avenida. Quem, no meu entender, a essa hora tão cedo, estivesse passando, era digno de suspeita ou respeito pois que poderia ser um boêmio irresponsável de volta ao lar ou um crente que cumpria as primeiras penitências do dia.
Na verdade, não tenho tido essa preocupação muitas vezes nesses últimos tempos, pois que depois de tanto observar esta rua, todos se fizeram conhecidos, amigos ou camaradas que apostam comigo um “joguinho” de vez em quando. Antes era o “Pai” que fazia tudo e eu só ficava por perto espiando, mas depois que ele partiu os ”camaradas” pressionaram para que eu tomasse conta da “banca”.
A preocupação que tenho sempre que olho pela rua afora é imaginar o que o “Pai” estaria fazendo longe da gente que sei não somos uma família modelo, mas isso não é motivo para ir-se com a desculpa de conseguir trabalho melhor ou a justificativa de vir sempre nos visitar ou o consolo do afago furtivo na despedida. Nada disso, acredito de coração, é bastante para partir e deixar a gente aqui que mesmo que não trouxesse um bom almoço sempre, tinha o conforto do riso de falhas nos dentes, mas que mostrava a luz dos olhos brilhando a nos olhar e que acabava nos aquecendo do frio e enganando a nossa fome.
Envolto como sempre nestes mesmos pensamentos o dia vai me acontecendo sem pressa. Quase me assusto quando a “Mãe” chama para o almoço, que café da manhã não teve e vejo que tínhamos visita e que o macarrão do domingo ia ser diminuído. Então, belisco minha parte na tampa de panela, pois os pratos também eram insuficientes, e volto à rua às escondidas que visita para mim é tortura sempre, que falam da minha magreza esquelética e da corcunda.
A tarde me traz de presente café ralo com biscoito doce frito, preciosos, que a menina da casa ao lado dá em troca de um beijo.
E como não poderia deixar de ser a noite também chega. Suave. E esta hora é triste que a rua de novo se esvazia e aí a saudade se mostra: fina, fria, cortante de um lado, apertando a garganta, espremendo os olhos. Não deixo a lágrima brotar e engulo duas vezes para que ela se some às outras das outras noites que a “Mãe” não pode ver porque “homem não chora”.
Um olhar de vã esperança ao caminho vazio e entro na casa. O quarto cheira a desinfetante quando desenrolo o colchão no canto. Me recosto com cuidado e fecho os olhos. Tento encontrar um motivo para dormir esta noite e acordar amanhã de manhã para viver um dia de segunda, depois terça, depois... O sono chega entorpecendo... Confortável... Os sons vão se distanciando... E de repente, estremeço: é a voz da “Mãe” gritando da cozinha: “Tratem de dormir, cambada, que amanhã é cedo! Dia de igreja! Não quero ninguém com desculpas esfarrapadas para faltar à Missa num dia de domingo!”

Magda R M de Castro
1996

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