Fim de verão, manhãs douradas e úmidas depois
de chuvas na noite: clima perfeito para um feriado. Nesses dias, é bom rever a
terra natal; é puro prazer vagar o olhar pelos morros e árvores de folhas
brilhantes pelos campos da juventude.
Estou no alto de uma colina de onde vejo a
casa, os currais, arvores, a estrada que percorri tantas vezes que nem conto e
sempre com muita alegria. A relva, aos meus pés, vibra cheia de vida. As
montanhas, longe, azuis, seguem o céu cor de mar. Esse, tem nuvens de algodão de
desenhos inéditos e misteriosos, e nuvens de chuva, cinzentas, que rolam no
infinito levadas pelo vento, ora forte, ora suave. Nesse exato momento, o vento
é suave e constante tombando levemente o capim alto a meu lado. Sentada numa
pequena elevação, arremedo de cupim, observo a natureza ao redor.
As formigas, um bando delas, me atacaram há
pouco quando cheguei; arranquei pequeno arbusto e as espantei. O mesmo arbusto
serve para espantar também os mosquitos. Penso no que vivi aqui e sinto muita
saudade; é onde vivi parte dos melhores momentos quando criança e adolescente.
Com os primos, corri pelos campos em busca de
muricis e azedinhas, nadei em açudes morrendo de medo e pulei riachos em cipós,
mais apavorada ainda. Andei a cavalo, comi pamonha, tomei leite espumante em
copo de lata trepada nos moirões dos currais. Adorava vigiar o engenho cantando
puxado pelos bois resfolegantes. A roda de moagem ia espremendo as canas até
ficaram brancas e o caldo escorria por um cocho de madeira até cair no enorme
tacho e virar borbulhas.
Lembro do fogo em labaredas saindo da boca da
fornalha, sempre com alguém vigiando para a criançada não se queimar. Das
tachas ferventes subia a espuma verde, cheia de ciscos, retirada, pouco a
pouco, com cuidado com enorme colher de pau. A espuma ia sendo apurada e a
garapa engrossava até que virava melado escuro e brilhante. Esse a gente comia
com queijo branco, delícia. Depois, num ponto mais apertado, o melado ia para formas
de madeira: as rapaduras; a Tia as embalava com cuidado para durar até o ano
seguinte. Lembro de um jirau, preto de fumaça e picumã cheio de rapaduras em folhas
de bananeira.
Daqui do alto, diviso a casa branca à
distância, espanto os mosquitos e me deixo enveredar pelas lembranças
preciosas. Lembranças desse lugar que se misturam com as de outro lugar talvez
porque os hábitos eram os mesmos, as tradições eram seguidas da mesma forma
aqui ou ali. O carinho, curioso, era o mesmo pra todas as crianças, fossem
filhos, sobrinhos ou agregados.
Inesquecíveis também os tempos de milho
verde. O mesmo tacho de fazer rapadura cozinhava o mingau até ficar amarelo, no
ponto de corte, que ia quente para as travessas de louça nos guarda-comidas:
não havia geladeira na roça. Dali o mingau era servido em fatias cobertas de
canela; do que não gostava então.
No mesmo tacho eram cozidas as pamonhas. A
palha verde ia amarelando aos poucos na água fervente. Quando prontas, as
abríamos quentes e por cima, era jogado o creme de leite caseiro. Eu adorava
abrir as palhas quase queimando os dedos para encontrar a fatia de queijo
derretido no meio da massa doce. Qualquer canto servia para me acomodar e
saborear a delícia: capim, cocho, degrau de escada.
Não eram esses os únicos quitutes de que me
lembro: bolo de fubá, petas, biscoito frito ou tarecos de polvilho acompanhavam
o leite tomado no curral ainda fumegante. Na “volta do dia”, como dizia minha
mãe, isso querendo dizer, na hora do almoço, a comida espalhava cheiro pela casa
e quintais tirando a gente das goiabeiras, dos pés de manga ou amora, e das
brincadeiras. A meninada cercava o fogão à lenha onde panelas pretas abarrotadas
se equilibravam em pés pequeninos. A caçarola maior era do arroz pilado, meio
marrom, grosso, fumegante e cheiroso. Par perfeito para o feijão vermelho de
bagos grandes temperado com toucinho e enfeitado de cebolinhas. As outras
panelas, todas em cima da chapa de ferro ofereciam carne de porco, ou de gado,
ou de frango. Verdurinha da horta sempre tinha. E farinha, de mandioca ou de
milho, indispensável.
Eu comia depressa porque a peteca esperava,
ou o riacho, o pique-esconde, a corrida apostada, a queimada. Também adorava
catar pedrinhas: acreditava que encontraria a pedra perfeita, redonda ou
quadrada; ou surpreendente diamante.
Voltando os olhos à estrada de terra muito
vermelha, lembro que gostava de passear por ela, com um graveto, para desenhar
árvores e flores na poeira fina. Também gostava de ficar encarapitada nas
cercas dos chiqueiros observando os capados mastigando o milho duro. Depois de
muita atividade, quando o cansaço batia, os moirões mais altos serviam de ponto
para procurar o horizonte distante.
Daqui de onde estou ouço uma rolinha
“fogo-pagô”; parece que assisto peça de teatro: montada com lembranças. No
mundo real, pouco resta daqueles tempos, tanto hábitos quanto pessoas. Os personagens
prediletos eram as crianças com quem brincava e essas cresceram tanto quanto eu,
então, não fazem parte do cenário atual. Parecíamos saber disso porque
aproveitamos todas as brincadeiras até onde conseguimos.
Enfim, crescemos; virei moça de cidade de coração
plantado nas serras e nos horizontes das fazendas que me viram crescer. Depois,
seguindo a correnteza, parti para um mundo maior, longe. Me tornei esposa, mãe,
empregada com rotinas, compromissos, responsabilidades enquanto que dos tempos
de criança e mocinha levava algumas cicatrizes e muita saudade.
Reconheço aqui, com doce emoção que senti
saudade durante todos os anos que passei longe. Sempre com pressa, vejo agora,
cismando aqui debaixo desse dia luminoso, fosse pela correria ou pela distância, voltei
poucas vezes, entretanto, aqueles momentos me acompanharam onde andei. Não eram
dias felizes: eram mágicos, puros, perfeitos.
Sim, mesmo longe, as pessoas que fizeram
parte daqueles dias estiveram sempre comigo, mesmo agora, depois de quase
trinta anos, as sinto por perto. Tenho saudades, inclusive, da menina magricela
de cabelos desgrenhados cheia de alegria. Alegria que ocupava o coração inteiro
e iluminava a cara de sarda e a bocarra de dentes falhados. Branquela,
excessivamente magra, desajeitada, e feliz: isso era eu.
Ainda agora, sinto vontade de correr gritando
a toda altura contra o vento; de pisar a terra fria ou me deitar sob o sol
forte. Penso nas formigas... não resisto: tiro os tamancos. Fazendo o braço de
travesseiro, me estico no calor e fecho os olhos, cismando. Os abro de novo
para observar dois gaviões: voam baixo piando miúdo e rápido. Porque fazem
tanto barulho? Não vão espantar a presa? Respondo eu mesma: esse piar é só a
comemoração antecipada porque sempre pegam a presa, de qualquer jeito vão
pegá-la.
O ar tem perfume: de mato verde, de sumo do
capim, do arbusto que arranquei, de urina e esterco. Os cheiros me estimulam a levantar.
Pego o tamanco e sigo a estrada para o lado da casinha de escola. Quase posso
apalpar o mesmo coração de antigamente enquanto sigo a estrada estreita.
Observo desde longe: calada, quieta, fincada no meio do mesmo terreiro, cercado
de arame, a mesma casinha.
Chego devagar e dá para ver que o mato toma
conta das goiabeiras do quintal. Descubro, surpresa, que agora há uma fileira
de eucaliptos gigantes que não fazem parte de minhas lembranças. É, o tempo
passou mesmo. O vento nas folhas parece fazê-los murmurar no vazio quebrando o
silêncio desmistificando a solidão. Abro a cancela quebrada e entro descalça no
cercado pisando a terra macia agora talvez porque não tem sido muito usada
ultimamente. Acho pequeno pé de tênis meio enterrado num canto, e também cacos
de telha e vidro. Subo a calçada manchada de lodo; outra carreira de formigas,
de novo, essas, cabeçudas, atravessa o caminho carregando folhas cujas sombras
dançam em ziguezague ao longo do trilho de terra fofa.
Um tomateiro silvestre no meio do capim alto está
carregado de frutos vermelhos e verdes; um dos galhos tomba com o peso. Gosto
deles espremidos no arroz, pena, não tem como levá-los agora, talvez quando
passar de carro, na volta para a cidade. Ainda colho quatro e os acomodo nas
palmas da mão: para mostrar às meninas.
Me aproximo das janelas num misto de alegria
e apreensão: e se algum riso de criança ainda estiver ecoando nas paredes
solitárias? Ou se alguma cobra tiver feito, debaixo do amontoado de carteiras
quebradas, um ninho? Meu pensamento se mistura aos murmúrios do eucalipto, ao
zunido de um marimbondo e aos fantasmas de outrora. Próxima a uma janela, me
estico para investigar o interior da sala grande: o quadro verde ainda tem
restos de aula. Será que nesse ano não haverá aulas aqui? A escola está
desativada? O telhado tem rombos e a água que entra forma mares verdes de lodo
no chão de cimento amarelo. Uma cadeira torta está encostada contra a parede
embolorada.
Dou a volta à casa e entro noutra sala. Está
mais suja: há papéis espalhados pelo chão, carteiras empilhadas e mofo. O
compensado da porta está descolando e a maçaneta está quebrada. Vejo uma caixa
tombada; não me aproximo, perigo. O buraco do teto aqui é maior: o chão está
alagado. Um besouro irrompe pela vidraça partida zoando alto. Tenho que fazer
uma manobra rápida para que a trajetória não o traga aos meus cabelos, efeito
de lembrar o quanto tinha que puxá-los para tirar abelhas. Saio, atravesso o
corredor aberto para o terreiro e abro a porta da sala em frente. Giro a maçaneta
que, dessa vez, está intacta.
A porta se abre sem barulho deixando ver, ao
fundo, um colchão com manchas de molhado encostado à parede. A sala é grande,
alta, clara e arejada, e não tem buracos no telhado. Imagino que as carteiras
em fila e as vozes das crianças poderiam dar certo encanto ao lugar. Eu poderia
viver ali, penso não sei por quê.
Ainda matutando a razão para os últimos
pensamentos, saio para o corredor, então, descubro, atirado ao chão, um caderno
amassado e encharcado. Seguro-o por uma ponta enquanto dou a volta total à casa
e o apoio a um parapeito para escorrer. Nos fundos, há outra parte da
construção, mais baixa. Empurro devagar a porta entreaberta espreitando o
interior que se ilumina. Cautelosa, observo que há outra carteira da sala de
aula escorando a porta. Do ângulo que alcanço, vejo um guarda-roupa em bom
estado enviesado pelo cômodo. Decido que prefiro não entrar; volto para fora.
Há outra carteira ao ar livre, meio
apodrecida pela chuva. Circulo o olhar: mesmo com o quintal cheio de mato, as
goiabeiras têm frutos; as bananeiras não. Aparece outro pé de tênis meio
enterrado, esse, grande. Percebo que preciso ir à toalete, mas desisto quando
vejo que o caminho até as privadas foi invadido por altos pés de carrapicho. Olho
ao redor, para o caso de vir alguém e, disfarçadamente, faço minha necessidade
num canto quebrado da calçada.
Volto para a frente da escola, apanho o
caderno. Escrito a lápis em letra redonda tem ditados e contas, soluções de
problemas de matemática.
"Rogério Roberto da Silva. Escola
....Hoje o dia está ensolarado... o nome de minha professora é Tia...” As
anotações de todos as aulas começam com a data, de um ano atrás: fevereiro de
1997. A letra é bonita e legível.
Me sento na calçada pensando que deveria ir
embora, mas não resisto em olhar de novo as árvores e em calar os pensamentos
para ouvir o vento nas folhas. Olho mais longe e começo a imaginar que a
capoeira em frente pode abrigar onças. O nome do lugar diz tudo: Oncinha. O
pensamento preocupante faz com que me levante, mas resisto a ir embora, apesar
do medo por estar sozinha; pego um graveto grande e começo a escrever no chão.
Desenho os quadrados da Amarelinha e o “céu”, pulo três vezes e volto a fazer
garranchos na terra solta e fria. Faço semicírculos ao meu redor como
construindo cerca de arame, um começando no meio do outro. Quando termino, vejo
que havia desenhado enorme rosa no chão vermelho, então, completo a obra
acrescentando talo e folhas.
Fico observando a linda rosa no chão,
surpresa, até que me lembro outra vez das onças. Penduro, então, os tamancos no
graveto e passo por baixo da verdadeira cerca de arame. Meio assustada agora,
até talvez por causa do silêncio, mas muito pela definitiva solidão daquele
lugar, disparo correndo até avistar, no outro morro, a casa da fazenda.
Quando começo a ouvir vozes, refreio a
correria e, outra vez devagar, começo a descer a ladeira, sentindo o sol na
pele e o vento nos cabelos soltos. Aspiro com prazer o ar e me deixo abraçar
pela natureza. É com prazer que piso, devagar, a argila fria e úmida, fazendo
moldes dos meus pés ao longo da estrada.
Só chegando à casa grande é que me lembro dos
tomatinhos e do caderno, renegados à janela enquanto explorava o lugar. Penso,
com pesar, do que estava escrito no caderno, em letras infantis:
“Hoje é segunda-feira, 24 de fevereiro de
1997.”
“Meu nome é ...”
“ O nome da minha professora é ...”
“Gosto de estar aqui na escola.”
“Está um dia nublado.”
“Bom dia para todos.”
Pena, agora não dá mais para pegá-los, penso,
e entro no casarão fresco. Há quase uma multidão em volta da mesa grande, no
meio da varanda, cheia de comidas e bebidas. Típico, diga-se, isso não mudou.
As conversas duram até o anoitecer, e um
pouquinho mais. É noite muito escura quando, ao voltar para a cidade, o farol
do carro ilumina a casinha de escola parecendo gargalhar mostrando os ocos escuros
das janelas de vidraças quebradas. Num relâmpago, vejo o caderno lá, quieto e
calado. Nem tento apanhá-lo, com medo das onças imaginárias, apesar de querer
tê-lo como lembrança. Me conformo ao pensar que ele não me impediria de lembrar
cada momento daqueles tempos nem substituiria nenhuma de tantas emoções.
Emoções: quase rio sozinha pensando que
pareço ter um tacho delas, fervendo e fumegando. Algumas são até confusas, não
sei se por causa de medo inexplicável pelo não sei o quê, ou saudade, ou felicidade
por ter vivido tudo isso; ou excitação, expectativa, pelo que ainda posso
viver. Se vivi coisas tão lindas até agora, imagine o que ainda virá!! Mesmo
assim, mesmo que não compreenda tudo claramente, tenho a sensação de estar
deixando algo importante, mas me resigno: está tudo bem quando tudo está onde
deve estar.
Algo quase posso apalpar: a certeza de que
não importa quantas estradas de terra vermelha ainda vá percorrer, não importa
o quanto tudo ainda vá mudar, o quanto vou amadurecer, ou quantos mundos ainda
vou conhecer, ou quantas coisas ainda deixarei para trás, aquela menininha vai
me acompanhar, e todos que ela amou com o jovem coração, me fazendo acreditar
que o futuro é sempre grande segredo, mágico segredo; e que cabe apenas a mim
desvendá-lo e vivê-lo. E que, apesar de saber que esse futuro pode também ser
cruel, como o é a vida muitas vezes, nada seria capaz de mudar aquilo que tinha
vivido. E que caberá a mim, e a ninguém mais, a escolha de ouvir aquele riso
cristalino solto ao vento. O mais importante levo comigo: a menininha que só eu
posso ouvir, que faz parte de mim. Me sinto rindo, agora finalmente, de puro
júbilo, em silêncio, enquanto observo os rasgos de luz abertos pelo farol do
carro através da noite escura me levando para destino longe.
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