domingo, 31 de agosto de 2008

CASINHA DE ESCOLA

Fim de verão, manhãs douradas e úmidas depois de chuvas na noite: clima perfeito para um feriado. Nesses dias, é bom rever a terra natal; é puro prazer vagar o olhar pelos morros e árvores de folhas brilhantes pelos campos da juventude.

Estou no alto de uma colina de onde vejo a casa, os currais, arvores, a estrada que percorri tantas vezes que nem conto e sempre com muita alegria. A relva, aos meus pés, vibra cheia de vida. As montanhas, longe, azuis, seguem o céu cor de mar. Esse, tem nuvens de algodão de desenhos inéditos e misteriosos, e nuvens de chuva, cinzentas, que rolam no infinito levadas pelo vento, ora forte, ora suave. Nesse exato momento, o vento é suave e constante tombando levemente o capim alto a meu lado. Sentada numa pequena elevação, arremedo de cupim, observo a natureza ao redor.

As formigas, um bando delas, me atacaram há pouco quando cheguei; arranquei pequeno arbusto e as espantei. O mesmo arbusto serve para espantar também os mosquitos. Penso no que vivi aqui e sinto muita saudade; é onde vivi parte dos melhores momentos quando criança e adolescente.

Com os primos, corri pelos campos em busca de muricis e azedinhas, nadei em açudes morrendo de medo e pulei riachos em cipós, mais apavorada ainda. Andei a cavalo, comi pamonha, tomei leite espumante em copo de lata trepada nos moirões dos currais. Adorava vigiar o engenho cantando puxado pelos bois resfolegantes. A roda de moagem ia espremendo as canas até ficaram brancas e o caldo escorria por um cocho de madeira até cair no enorme tacho e virar borbulhas.

Lembro do fogo em labaredas saindo da boca da fornalha, sempre com alguém vigiando para a criançada não se queimar. Das tachas ferventes subia a espuma verde, cheia de ciscos, retirada, pouco a pouco, com cuidado com enorme colher de pau. A espuma ia sendo apurada e a garapa engrossava até que virava melado escuro e brilhante. Esse a gente comia com queijo branco, delícia. Depois, num ponto mais apertado, o melado ia para formas de madeira: as rapaduras; a Tia as embalava com cuidado para durar até o ano seguinte. Lembro de um jirau, preto de fumaça e picumã cheio de rapaduras em folhas de bananeira.

Daqui do alto, diviso a casa branca à distância, espanto os mosquitos e me deixo enveredar pelas lembranças preciosas. Lembranças desse lugar que se misturam com as de outro lugar talvez porque os hábitos eram os mesmos, as tradições eram seguidas da mesma forma aqui ou ali. O carinho, curioso, era o mesmo pra todas as crianças, fossem filhos, sobrinhos ou agregados.

Inesquecíveis também os tempos de milho verde. O mesmo tacho de fazer rapadura cozinhava o mingau até ficar amarelo, no ponto de corte, que ia quente para as travessas de louça nos guarda-comidas: não havia geladeira na roça. Dali o mingau era servido em fatias cobertas de canela; do que não gostava então.

No mesmo tacho eram cozidas as pamonhas. A palha verde ia amarelando aos poucos na água fervente. Quando prontas, as abríamos quentes e por cima, era jogado o creme de leite caseiro. Eu adorava abrir as palhas quase queimando os dedos para encontrar a fatia de queijo derretido no meio da massa doce. Qualquer canto servia para me acomodar e saborear a delícia: capim, cocho, degrau de escada.

Não eram esses os únicos quitutes de que me lembro: bolo de fubá, petas, biscoito frito ou tarecos de polvilho acompanhavam o leite tomado no curral ainda fumegante. Na “volta do dia”, como dizia minha mãe, isso querendo dizer, na hora do almoço, a comida espalhava cheiro pela casa e quintais tirando a gente das goiabeiras, dos pés de manga ou amora, e das brincadeiras. A meninada cercava o fogão à lenha onde panelas pretas abarrotadas se equilibravam em pés pequeninos. A caçarola maior era do arroz pilado, meio marrom, grosso, fumegante e cheiroso. Par perfeito para o feijão vermelho de bagos grandes temperado com toucinho e enfeitado de cebolinhas. As outras panelas, todas em cima da chapa de ferro ofereciam carne de porco, ou de gado, ou de frango. Verdurinha da horta sempre tinha. E farinha, de mandioca ou de milho, indispensável.

Eu comia depressa porque a peteca esperava, ou o riacho, o pique-esconde, a corrida apostada, a queimada. Também adorava catar pedrinhas: acreditava que encontraria a pedra perfeita, redonda ou quadrada; ou surpreendente diamante.

Voltando os olhos à estrada de terra muito vermelha, lembro que gostava de passear por ela, com um graveto, para desenhar árvores e flores na poeira fina. Também gostava de ficar encarapitada nas cercas dos chiqueiros observando os capados mastigando o milho duro. Depois de muita atividade, quando o cansaço batia, os moirões mais altos serviam de ponto para procurar o horizonte distante.

Daqui de onde estou ouço uma rolinha “fogo-pagô”; parece que assisto peça de teatro: montada com lembranças. No mundo real, pouco resta daqueles tempos, tanto hábitos quanto pessoas. Os personagens prediletos eram as crianças com quem brincava e essas cresceram tanto quanto eu, então, não fazem parte do cenário atual. Parecíamos saber disso porque aproveitamos todas as brincadeiras até onde conseguimos.

Enfim, crescemos; virei moça de cidade de coração plantado nas serras e nos horizontes das fazendas que me viram crescer. Depois, seguindo a correnteza, parti para um mundo maior, longe. Me tornei esposa, mãe, empregada com rotinas, compromissos, responsabilidades enquanto que dos tempos de criança e mocinha levava algumas cicatrizes e muita saudade.

Reconheço aqui, com doce emoção que senti saudade durante todos os anos que passei longe. Sempre com pressa, vejo agora, cismando aqui debaixo desse dia luminoso,  fosse pela correria ou pela distância, voltei poucas vezes, entretanto, aqueles momentos me acompanharam onde andei. Não eram dias felizes: eram mágicos, puros, perfeitos.

Sim, mesmo longe, as pessoas que fizeram parte daqueles dias estiveram sempre comigo, mesmo agora, depois de quase trinta anos, as sinto por perto. Tenho saudades, inclusive, da menina magricela de cabelos desgrenhados cheia de alegria. Alegria que ocupava o coração inteiro e iluminava a cara de sarda e a bocarra de dentes falhados. Branquela, excessivamente magra, desajeitada, e feliz: isso era eu.

Ainda agora, sinto vontade de correr gritando a toda altura contra o vento; de pisar a terra fria ou me deitar sob o sol forte. Penso nas formigas... não resisto: tiro os tamancos. Fazendo o braço de travesseiro, me estico no calor e fecho os olhos, cismando. Os abro de novo para observar dois gaviões: voam baixo piando miúdo e rápido. Porque fazem tanto barulho? Não vão espantar a presa? Respondo eu mesma: esse piar é só a comemoração antecipada porque sempre pegam a presa, de qualquer jeito vão pegá-la.

O ar tem perfume: de mato verde, de sumo do capim, do arbusto que arranquei, de urina e esterco. Os cheiros me estimulam a levantar. Pego o tamanco e sigo a estrada para o lado da casinha de escola. Quase posso apalpar o mesmo coração de antigamente enquanto sigo a estrada estreita. Observo desde longe: calada, quieta, fincada no meio do mesmo terreiro, cercado de arame, a mesma casinha.

Chego devagar e dá para ver que o mato toma conta das goiabeiras do quintal. Descubro, surpresa, que agora há uma fileira de eucaliptos gigantes que não fazem parte de minhas lembranças. É, o tempo passou mesmo. O vento nas folhas parece fazê-los murmurar no vazio quebrando o silêncio desmistificando a solidão. Abro a cancela quebrada e entro descalça no cercado pisando a terra macia agora talvez porque não tem sido muito usada ultimamente. Acho pequeno pé de tênis meio enterrado num canto, e também cacos de telha e vidro. Subo a calçada manchada de lodo; outra carreira de formigas, de novo, essas, cabeçudas, atravessa o caminho carregando folhas cujas sombras dançam em ziguezague ao longo do trilho de terra fofa.

Um tomateiro silvestre no meio do capim alto está carregado de frutos vermelhos e verdes; um dos galhos tomba com o peso. Gosto deles espremidos no arroz, pena, não tem como levá-los agora, talvez quando passar de carro, na volta para a cidade. Ainda colho quatro e os acomodo nas palmas da mão: para mostrar às meninas.

Me aproximo das janelas num misto de alegria e apreensão: e se algum riso de criança ainda estiver ecoando nas paredes solitárias? Ou se alguma cobra tiver feito, debaixo do amontoado de carteiras quebradas, um ninho? Meu pensamento se mistura aos murmúrios do eucalipto, ao zunido de um marimbondo e aos fantasmas de outrora. Próxima a uma janela, me estico para investigar o interior da sala grande: o quadro verde ainda tem restos de aula. Será que nesse ano não haverá aulas aqui? A escola está desativada? O telhado tem rombos e a água que entra forma mares verdes de lodo no chão de cimento amarelo. Uma cadeira torta está encostada contra a parede embolorada.

Dou a volta à casa e entro noutra sala. Está mais suja: há papéis espalhados pelo chão, carteiras empilhadas e mofo. O compensado da porta está descolando e a maçaneta está quebrada. Vejo uma caixa tombada; não me aproximo, perigo. O buraco do teto aqui é maior: o chão está alagado. Um besouro irrompe pela vidraça partida zoando alto. Tenho que fazer uma manobra rápida para que a trajetória não o traga aos meus cabelos, efeito de lembrar o quanto tinha que puxá-los para tirar abelhas. Saio, atravesso o corredor aberto para o terreiro e abro a porta da sala em frente. Giro a maçaneta que, dessa vez, está intacta.

A porta se abre sem barulho deixando ver, ao fundo, um colchão com manchas de molhado encostado à parede. A sala é grande, alta, clara e arejada, e não tem buracos no telhado. Imagino que as carteiras em fila e as vozes das crianças poderiam dar certo encanto ao lugar. Eu poderia viver ali, penso não sei por quê.

Ainda matutando a razão para os últimos pensamentos, saio para o corredor, então, descubro, atirado ao chão, um caderno amassado e encharcado. Seguro-o por uma ponta enquanto dou a volta total à casa e o apoio a um parapeito para escorrer. Nos fundos, há outra parte da construção, mais baixa. Empurro devagar a porta entreaberta espreitando o interior que se ilumina. Cautelosa, observo que há outra carteira da sala de aula escorando a porta. Do ângulo que alcanço, vejo um guarda-roupa em bom estado enviesado pelo cômodo. Decido que prefiro não entrar; volto para fora.

Há outra carteira ao ar livre, meio apodrecida pela chuva. Circulo o olhar: mesmo com o quintal cheio de mato, as goiabeiras têm frutos; as bananeiras não. Aparece outro pé de tênis meio enterrado, esse, grande. Percebo que preciso ir à toalete, mas desisto quando vejo que o caminho até as privadas foi invadido por altos pés de carrapicho. Olho ao redor, para o caso de vir alguém e, disfarçadamente, faço minha necessidade num canto quebrado da calçada.

Volto para a frente da escola, apanho o caderno. Escrito a lápis em letra redonda tem ditados e contas, soluções de problemas de matemática.

"Rogério Roberto da Silva. Escola ....Hoje o dia está ensolarado... o nome de minha professora é Tia...” As anotações de todos as aulas começam com a data, de um ano atrás: fevereiro de 1997. A letra é bonita e legível.

Me sento na calçada pensando que deveria ir embora, mas não resisto em olhar de novo as árvores e em calar os pensamentos para ouvir o vento nas folhas. Olho mais longe e começo a imaginar que a capoeira em frente pode abrigar onças. O nome do lugar diz tudo: Oncinha. O pensamento preocupante faz com que me levante, mas resisto a ir embora, apesar do medo por estar sozinha; pego um graveto grande e começo a escrever no chão. Desenho os quadrados da Amarelinha e o “céu”, pulo três vezes e volto a fazer garranchos na terra solta e fria. Faço semicírculos ao meu redor como construindo cerca de arame, um começando no meio do outro. Quando termino, vejo que havia desenhado enorme rosa no chão vermelho, então, completo a obra acrescentando talo e folhas.

Fico observando a linda rosa no chão, surpresa, até que me lembro outra vez das onças. Penduro, então, os tamancos no graveto e passo por baixo da verdadeira cerca de arame. Meio assustada agora, até talvez por causa do silêncio, mas muito pela definitiva solidão daquele lugar, disparo correndo até avistar, no outro morro, a casa da fazenda.

Quando começo a ouvir vozes, refreio a correria e, outra vez devagar, começo a descer a ladeira, sentindo o sol na pele e o vento nos cabelos soltos. Aspiro com prazer o ar e me deixo abraçar pela natureza. É com prazer que piso, devagar, a argila fria e úmida, fazendo moldes dos meus pés ao longo da estrada.

Só chegando à casa grande é que me lembro dos tomatinhos e do caderno, renegados à janela enquanto explorava o lugar. Penso, com pesar, do que estava escrito no caderno, em letras infantis:

“Hoje é segunda-feira, 24 de fevereiro de 1997.”

“Meu nome é ...”

“ O nome da minha professora é ...”

“Gosto de estar aqui na escola.”

“Está um dia nublado.”

“Bom dia para todos.”

Pena, agora não dá mais para pegá-los, penso, e entro no casarão fresco. Há quase uma multidão em volta da mesa grande, no meio da varanda, cheia de comidas e bebidas. Típico, diga-se, isso não mudou.

As conversas duram até o anoitecer, e um pouquinho mais. É noite muito escura quando, ao voltar para a cidade, o farol do carro ilumina a casinha de escola parecendo gargalhar mostrando os ocos escuros das janelas de vidraças quebradas. Num relâmpago, vejo o caderno lá, quieto e calado. Nem tento apanhá-lo, com medo das onças imaginárias, apesar de querer tê-lo como lembrança. Me conformo ao pensar que ele não me impediria de lembrar cada momento daqueles tempos nem substituiria nenhuma de tantas emoções.

Emoções: quase rio sozinha pensando que pareço ter um tacho delas, fervendo e fumegando. Algumas são até confusas, não sei se por causa de medo inexplicável pelo não sei o quê, ou saudade, ou felicidade por ter vivido tudo isso; ou excitação, expectativa, pelo que ainda posso viver. Se vivi coisas tão lindas até agora, imagine o que ainda virá!! Mesmo assim, mesmo que não compreenda tudo claramente, tenho a sensação de estar deixando algo importante, mas me resigno: está tudo bem quando tudo está onde deve estar.

Algo quase posso apalpar: a certeza de que não importa quantas estradas de terra vermelha ainda vá percorrer, não importa o quanto tudo ainda vá mudar, o quanto vou amadurecer, ou quantos mundos ainda vou conhecer, ou quantas coisas ainda deixarei para trás, aquela menininha vai me acompanhar, e todos que ela amou com o jovem coração, me fazendo acreditar que o futuro é sempre grande segredo, mágico segredo; e que cabe apenas a mim desvendá-lo e vivê-lo. E que, apesar de saber que esse futuro pode também ser cruel, como o é a vida muitas vezes, nada seria capaz de mudar aquilo que tinha vivido. E que caberá a mim, e a ninguém mais, a escolha de ouvir aquele riso cristalino solto ao vento. O mais importante levo comigo: a menininha que só eu posso ouvir, que faz parte de mim. Me sinto rindo, agora finalmente, de puro júbilo, em silêncio, enquanto observo os rasgos de luz abertos pelo farol do carro através da noite escura me levando para destino longe.


Por Magda R M de Castro Brasília, DF, fevereiro de 1998.

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