domingo, 31 de agosto de 2008

ALGUÉM DE PASSAGEM

A casa era pequenina, diferente dos corações que moravam nela: felizes, tinham tudo. Ou quase: faltava, para ser lar completo, algo especial. Isso faltava mesmo, porque vez ou outra era preciso companhia para a viagem, opinião sobre coisa ou gente, conselhos nas encruzilhadas. As pessoas ali esperavam por alguém assim, para ajudar a viver a vida boa que tinham.
Numa noite, ele chegou. Sem bagagem, sem promessas: ficaria por uns dias. Ficou até que lhe desagradou certo jantar: se foi, atrás de outros sabores. O que importava? Era tão pequeno aquele lugar!!
Ficou um tempo longe, experimentou o que bem quis. Um dia lembrou do carinho e dos cuidados: pediu perdão, pediu para voltar. Foi recebido com alegria, que bom que voltava: estava perdoado. Chegava outra vez sem bagagem, sem promessas: não poderia contribuir muito, tinha a vida inteira para viver, daria ali, o que pudesse, nada além disso.
Se envolveu em alguns planos, não tinha mesmo o que fazer, poderia ficar, por enquanto, desde que pudesse ter sempre a porta da rua aberta. Emprestou uma coisa ou outra: deveria receber tudo de volta porque aquela não era a sua vida.
Foi até feliz, aproveitou bem: conforto, carinho, e liberdade. Era bom, mas melhor ainda eram festas, viagens, sair com amigos e beber, ah, tudo de bom! Voltava, depois de tudo aproveitado até a última gota.
Pai de família, marido dedicado, não estava em seus planos, mas poderia ir levando assim e ver aonde tudo ia dar. Ficaria, enquanto não encontrasse “coisa” melhor. As condições era não ter aborrecimentos, não fazer nada além do que queria, não olhar no olho e não discutir profundezas. Ficaria enquanto fosse só lago sereno, sabem como é, não era seu verdadeiro lar, não era obrigado a nada.
Não precisava, outras pessoas cuidariam das partes chatas, dos consertos desagradáveis, das maiores obrigações ou responsabilidades. Ajudava, sim, vez ou outra, mas também guardava.
Guardava, se guardava, guardava carinho, o próprio coração. Não precisava nem dizer “obrigada”, já estava prestando grande favor em ficar. Promessas? Talvez tivesse que fazê-las algum dia, em outro lugar, para alguém melhor.
Encontraria esse alguém a qualquer momento. Ia aonde e quando queria, havia tantas oportunidades: amigas, colegas, irmãs de amigos, parentes, conhecidas e desconhecidas. Brincava com uma aqui, flertava ali, uma aventura que durou semanas, outra anos ou uma de única noite. Era um homem livre: viagens, diversão, rodas de amigos e só depois o ninho à espera, e, ainda, sem promessas.
Pena que o dia delas chegou: depois de muitos anos, é verdade, fez até esforço razoável, que não se negue, afinal, era preciso esperar a hora certa: quando juntada a própria bagagem. Então, um dia, lhe pediram "amor e carinho”. Chegou a hora: teria que encarar; era sua vez de distribuir, retribuir, de se comprometer, ou não.
Teria que decidir se acompanhava aquelas pessoas pela vida que ainda seguiria; era a hora da aproximação, de colocar luz nas fendas. Então, decidiu: tinha contribuído muito, tinha dado o que podia, não havia mais nada a oferecer. Aqueles seres lhe sorviam todas as energias, o pressionavam, o olhavam com olhos que quase podiam atravessá-lo. Não suportaria ficar: não poderia ver o fundo daqueles lagos, era forte demais. “Não”, foi a decisão e, como estava apenas de passagem, partiu.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 17 de agosto de 2008.

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