domingo, 31 de agosto de 2008

O CASAMENTO

Quando cheguei em frente à Matriz, a noiva esperava sozinha do lado de fora. Estava de pé, no último degrau e a cauda do vestido bordado pendia graciosamente pela escada abaixo. O cabelo preso, pena porque era deslumbrante cascata negra, segurava uma tiara de pérolas.
Manobrei o carro para minha mãe descer e fui procurar estacionamento. Quando voltei, já se ouvia a marcha nupcial e tateei pela calçada lateral para entrar discretamente. Encontrei Mamãe e a fui puxando para perto do altar, para ver melhor. Eu, meio cega, não queria perder nada. Queria ver e participar de tudo. Para compensar.
Compensar o grande esforço que fiz para estar ali naquela noite. A vida atribulada de cidade com família, casa, emprego não dava tréguas, então, tive que fazer muitas combinações para poder estar ali, naquele sábado, às 21 horas. Também dirigi um automóvel por 600 quilômetros pouco antes.
Mas, principalmente, estava emocionada. Quase histérica. Depois de 25 anos iria ver pessoas que fizeram parte importante da minha vida: tinha até rezado para que todos estivessem lá. Queria rever rostos queridos e sentir de novo alguns abraços em particular para ter certeza, afinal, de que tudo aquilo tinha existido de verdade. Ou, desejo meio inconsciente esse, para trazer de volta um tempo de adolescente ansiosa pelo futuro e cheia de sonhos quando namorava, por sinal, o pai da noiva.
Eu era uma garota magricela ao extremo, sardenta, nariz aleijado e cabelos desgrenhados. Mas tinha os olhos sinceros e cheios de ilusão. Amava aquele homem de cabelos sempre bem aparados, sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Ele era o calor da minha vida: me lembro ser só metade quando comecei a namorar com ele. Antes dele sentia até dor de tanta solidão. Nas vezes que brigamos, chorei muito, o que me lembra também de uma tia querida me consolando. O carinho por ele era tão verdadeiro que nunca aceitei outras propostas de namoro enquanto vivi naquela cidade.
Mas éramos pessoas simples, e eu, tão simples que quase boba queria que ele gostasse de mim da mesma forma. Pode até ser que isso assim fosse, mas me sentia muito mal quando ele me dizia o que vestir, o que falar, como me comportar. Para confessar a verdade, eu era mesmo meio escandalosa: quando queria rir, ria, me espalhava, me entregava à alegria. Eu não me importava com a vida alheia e achava estranho que pudesse haver alguém se preocupando com o que eu era.
Esse, pequeno, fato me fez pensar um pouquinho, e juntando outras coisas, foi que, mesmo apaixonada, poucos meses depois de colocar a aliança de compromisso, terminei tudo. Ele não acreditou até o último minuto que eu poderia ir embora. Mas fui. E tudo mudou para sempre. Ainda lhe escrevi duas ou três cartas, mas ele nunca as respondeu e muitos anos se passaram. O vi certa vez, mas não a todos os seus parentes, irmãos e pais.
Por isso estava ansiosa. Eu amava muito essas pessoas desde o tempo de namoro e noivado, com elas me sentia em casa. Falavam comigo com carinho, fazendo me sentir bem-vinda. A casa era deliciosa, sempre limpa e cheia de guloseimas: ali vivam muitas moças, cada qual mais bonita e prendada que a outra. Elas eram modelos para mim e me faziam sentir fazer parte.
Tinha medo de que as lembranças me pregassem uma peça misturando as reais e as imaginadas por isso aquele evento era tão importante. Cheia de saudade, queria vê-los todos outra vez, me certificar de que era lembrança genuína, falar com eles antes que fosse tarde e agora, graças aos milagres da vida, pode-se considerar assim, eu tinha a chance de atender a esse desejo.
Em pleno vigor dos meus quarenta e poucos anos, vestida de prata, estava, então, chegando para assistir ao casamento de uma moça que poderia ser minha filha. Gloriosa em seu vestido champagne representava a imagem do que eu queria ter vivido um dia. E o homem que poderia ter sido meu companheiro estava agora circulando nervoso pela nave, sem saber se ria ou se chorava pela emoção de casar a filha mais velha. Me viu, piscou para mim e as bochechas luzidias se juntaram quase numa careta na linda cara de bolacha e por um átimo de segundo vi um olhar antigo, razão da alfinetada que senti no fígado. Sim, estava quase desconfortável, meio sem graça, preocupada com a possibilidade de ele vir falar comigo naquele momento. Mas, por alívio, isso só aconteceu depois do “...os declaro marido e mulher.” Tive, portanto, tempo de preparar meu coração.
Tinha uma razão por estar naquele casamento: o noivo era meu primo. Isso quer dizer que não convivia, há muitos anos, com a família do meu ex-noivo, mas ao contrário, convivia estreitamente com a família do atual noivo, de quem partiu o convite para mim.
Isso mostra as peças que a vida pode pregar na gente: estavam se casando ali, as duas partes que poderiam ter se casado há mais de vinte anos e não conseguiram. E eu ali, assistindo, dava risinhos nervosos ao imaginar que aquela noiva estava desempenhando um papel que me coube um dia e que não tive coragem de assumir. Era a pura realidade, mas essa não sempre é piedosa e parecia esfregar na minha cara aquilo tudo. Não conseguia parar de pensar que tinha sido covardia minha, que abandonei o barco. Pode ser.
De qualquer forma, tudo estava feito: como uma mão invisível fui conduzida por caminhos nunca imaginados e dos quais nunca mais consegui voltar. O que me cabia, portanto, era falar com cada um e matar as saudades. E isso fiz. Tantos primos e primas, tios queridos, reavivando a imagem de pessoas que nunca esqueci. Ah! Foi um banho de carinho: abraços e abraços aquecendo o coração, beijos, palavras de amor. Saciei-me.
A festa de recepção aos convidados foi oferecida no salão de um prédio de apartamentos onde morava uma das tias da noiva. O menu era churrasco, cerveja gelada e bolo. Tudo no capricho, ainda mais que tanto aquelas mulheres quanto aqueles homens, incluindo o pai da noiva, cozinhavam divinamente. Também me fartei de comida. Mas não mais que de carinho.
Tantos parentes juntos, dos dois lados da família, dava gosto ver. Eu flutuava entre as mesas, falando com um e outro, me surpreendendo com as novidades, com as histórias de cada um. O engraçado é que quando a noiva jogou o buquê, tomei o cuidado de ficar bem longe. Acreditei que o tempo disso tinha passado para mim; e o que foi bom é que pensar assim não me incomodou nem um pouco.
Estava acompanhada de meu filho mais velho. Viajamos juntos, curtindo o longo passeio. Para a festa, minha mãe e dois irmãos se juntaram a nós e estávamos ali, todos misturados no salão parecendo um balaio de gatos. É que mesmo sendo uma festa só para os mais chegados, esses mais chegados eram muitos porque as famílias mineiras geralmente são grandes. E essas duas que se uniam agora, finalmente, eram típicas: fartura de tudo, gente, carinho, alegria, comida e bebida. Festança.
Depois de checar um a um, vi que faltava uma das moças, tia da agora recém-casada. Um ponto triste em tanta alegria. Mesmo assim, tinha que aproveitar a chance e, parecendo um papagaio, circulando entre as mesas, não ficava num lugar por muito tempo. Queria saber de todo mundo e, primeiro soube do meu ex-noivo: casado de novo depois de se separar da primeira mulher, mãe da noiva, tentava carregar as bandejas de comida para servir às mesas ao mesmo tempo em que vigiava dois filhos pequenos, gêmeos, lindos bebês rechonchudos. Não caminhavam ainda e iam de um braço a outro, ora do avô ora da mãe, chamando, com adoração, pelo pai. Esse depois me apresentou à esposa. Mulher linda, bem vestida e gentil. Ele estava orgulhoso. Quando me perguntou o que achava dela, respondi: “todo homem tem a mulher que merece.” Politicamente correta, queria dizer que se ela era tão fantástica, certamente ele fez por merecer. Do fundo do meu coração, desejava que ele fosse feliz.
Igualmente, muitos amigos ali me contaram partes de suas vidas. Alguns, envelheceram, cabelos cor da prata, pensamentos indecisos, passos claudicantes. O avô da noiva, quase sogro meu, apesar de tantos anos, estava lúcido e ainda fazendo as brincadeiras que alegravam todo mundo. Um olhar direto, sem desculpas ou receios, era como ele olhava pra gente. Estava sereno, parecendo contente, e ainda brincava como antes.
A esposa de tantos anos se dividia entre a alegria pelo casamento da neta e a contrariedade por uma discussão entre as filhas, acontecida recentemente. A encontrei à mesa da cozinha do apartamento, para onde fui em busca de água. Me contou, chorosa, partes do fato, então, peguei com carinho as mãos dela e disse que todos se amavam muito, portanto, que ficasse tranqüila que tudo se resolveria logo. A mulher à minha frente, ainda de rosto liso e pele rosada, apesar do cabelo totalmente branco, era apenas miragem de antigamente. Meu coração doeu, a abracei com cuidado. Ela começou a recitar uma poesia que falava dos desencontros nas famílias. De própria autoria, sabia de cor longos versos que recitava rapidamente como tentando substituir, pela velocidade das palavras, os passos que as pernas cansadas já não podiam dar. Tive a impressão de que ela queria, com os versos duros e diretos, compensar a sua ausência na solução dos conflitos ao seu redor.
Logo a seguir, uma das filhas a levou para descansar. Voltei ao salão. Foi por pouco tempo que fiquei sentada. Descobri logo um lindo homem de cabelos longos se balançando feito espantalho num paletó largo. Os cabelos carentes de um trato tentavam esconder um rosto moreno, de covinha no queixo. O riso, quase deboche, puxava o rosto para um lado e o olhar acompanhava dando ao conjunto a impressão de estar criticando, e desprezando, o mundo todo. Valtinho. Sinceramente, não sei mais se V ou com W, mas, definitivamente, não era “...inho” um varapau daqueles. Mas era assim conhecido quando criança. Não pude deixar de me lembrar do Daniel Day-Lewis no “O último dos moicanos” quando o vi pouco à frente. Quando me aproximei, fui recebida com muito carinho e fomos tropeçando nas histórias um do outro, querendo ouvir e contar ao mesmo tempo. Ele contou do casamento, da separação, da nova união que lhe daria o primeiro filho agora. Um raio passou pelas minhas contas automáticas e fiz uma avaliação das idades de meus filhos. Pensei que ele começava tarde a missão de ser pai, mesmo sendo bem mais jovem que eu. O que, na verdade, não tinha a menor importância. Foi me puxando pela mão, como namorados, que me levou à atual esposa. Enquanto nos falávamos as imagens de um menino de calças curtas pulando muros se misturava ao homem à minha frente, falando das agruras do casamento, da carreira no jornalismo, de amor e da alegria de ter filhos, coisas que sempre quis. Depois, passou a falar de mim, de meu sucesso, que eu tinha ido embora e tinha construído a minha vida. E me disse, com ares de segredo, que o irmão jamais tinha se esquecido, o que também não podia influenciar nada na altura em que ia a vida de cada um.
Magia, doce magia. A festa parecia um acerto de contas, de todos nós, tão unidos e tão puros antigamente. Agora éramos adultos cada qual com montanhas de problemas, e lembrar o que passamos dava a perfeita forma dos resultados em que nossas decisões se transformaram.
A alegria continuava pelo salão agora misturado à fumaça das brasas do churrasco. Instintivamente, passei a seguir uma cabeça branca que passava rapidamente entre as pessoas, servindo cerveja. Era um olhar sereno, podia quase apalpar meu passado dali, por sentir que tudo estava na mais perfeita ordem e nada poderia ter se dado diferente do que se deu. Ainda como mágica, a visão dessa cabeça branca trouxe outra imagem à minha alma. Não uma de passado, dispersa nas voltas do tempo, mas uma quase palpável que faz a alegria de minha vida hoje. Lembrando da cabeça branca, não pude evitar pensar em dois pares de braços fortes que me abraçam agora, como presente do meu presente.
Talvez pela overdose de emoções, talvez pela saudade, ou pela constatação da vida maravilhosa que tinha, me descobri ouvindo vozes infantis – “Mamãe!” – e mais, que nunca, fiquei feliz por estar ali, por tocar de leve, por algumas horas, a vida que tive um dia, a menina que fui um dia. Vi que tinha conseguido provar que todos aqueles personagens existiram e que podia agora, sem ressentimentos ou mágoas ou saudade até, guardar, para sempre, aquelas imagens. Todas me acompanharão, todas serão sempre caras.
Pouco a pouco, o sonho do encontro, tão ansiado, foi se dissipando e tudo se tornou realidade. Naquele momento, era aquela que estava valendo. Só que, com esse descortinar, vi que muitas pessoas daquela festa não faziam mais parte do meu dia-a-dia: pertenciam a um mundo do qual me afastei há muitos anos, um mundo que não era mais o meu e que estava habitado por outros agora. E foi muito feliz que me lembrei de que não poderia ir dormir muito tarde porque teria que me levantar cedo no dia seguinte. Tinha prometido ao povo do meu agora mundo que sairia cedo, com tempo de chegar em casa antes do anoitecer.
Ainda falei com muitos, não me despedi de todos. De um e outro que estava mais perto da saída peguei um cartão ou deixei meu telefone. Tinha a sensação de que ninguém procuraria ninguém, tão claro estava o significado de cada um para o outro agora. Sentia que, com tanta coisa maravilhosa esperando por mim, não haveria nada que justificasse procurar de novo aquelas pessoas. Se o acaso ou a cidade onde vivemos um dia nos brindasse com novo encontro poderíamos nos falar e apreciar isso. Mas só.
Saí com minha mãe, filho e irmãos, pensando que, afinal, tinha cumprido aquela missão: provei que tudo existiu mesmo. Mas também compreendi que aquelas pessoas não faziam mais parte de minha vida porque escolhi assim. E vendo o que vivi, como num filme de trás para frente, me assisto vivendo com o coração inteiro. Alegre coração, cheio de fé no futuro, certa de ter o melhor junto a quem amo e que está ao meu lado todo dia. Mais uma vez me descubro – magia – feliz, tranqüila; certa de que, mesmo se fosse possível, não trocaria os caminhos que percorro agora por aqueles que poderia ter percorrido. Sinto que o que sou hoje dependeu de mim, de minhas decisões e de alguns momentos encantados que só podem ser explicados como as mãos de Deus me guiando. Creio que se me quedar de joelhos até o fim da minha vida, não será suficiente para agradecer a fortuna de ter escolhido a estrada que, afinal, me trouxe hoje aos tesouros que conquistei.

Por Magda R M de Castro
Brasília, DF, 11 de setembro de 1998.

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