domingo, 31 de agosto de 2008

APENAS DETALHES

Foi porque descobri que a torneira do meu banheiro também estava pingando. A da cozinha, pingando na bucha, antes da bica, eu já sabia; a do banheiro social também porque é enorme, aberração moderna que desperdiça muita água: eu não tinha essa consciência quando a comprei, mas a do meu banheiro, pingando, pingo a pingo, longe, não tinha visto ainda.
Vi enquanto passava o fio dental nos dentes, sentada na beirada da banheira, enquanto ouvia a chuva fina, a primeira da estação. De onde estava também dá para ver o buquê de flores amarelas da árvore que todo ano desabrocha, duas ruas abaixo, acima dos telhados. Milagres, que não sei por quanto tempo ainda teremos: a depredação dos biomas está desequilibrando os ciclos naturais e pode muito, muito depressa, acontecer nos vermos à frente de uma catástrofe planetária que modificará para sempre a vida confortável que temos agora.
Milagre ainda termos noites e dias, secas e chuvas, coisas nascendo, penso, enquanto observo o espaço de tempo que o pingo leva para cair na pia. Até que não está demais, não, mas não custa um apertozinho, e quem sabe, observar melhor daqui em diante. E observar todas as outras torneiras da casa. E como temos torneiras, para que tantas? Progresso, que foram comemoradas, em todos os cantos, a chegada da luz elétrica e da água encanada. Olha que piada, encanamos a água. Cana não é coisa de bandido? Pois é, encanamos a água para nosso conforto. E esse agora é a facilidade com que jogamos a fonte da vida no esgoto e a misturamos aos nossos outros restos.
Foi por isso que dilui o detergente numa vasilha daquelas de sorvete que a gente sempre guarda. Serviu, então, para lavar copos, pratos e talheres acumulados na noite anterior e no café da manhã. Fui ensaboando pouco e enxaguando com pouca água, uma que usava num copo servia para lavar o outro e pensando na higiene, nas bactérias, talvez não estivesse lavando corretamente. Me lembrei do pedaço de um filme, desses do chamado circuito alternativo, que cá entre nós, tem nos brindado com verdades dolorosas de mundos tão diferentes do nosso; esse, mostrando um menino que, resgatado de um campo de refugiados da Etiópia, ao tomar uma chuveirada, tentava desesperadamente evitar que a água que lavava o próprio corpo escorresse pelo ralo. A enfermeira teve que pedir ajuda para segurar o garoto que se batia feito doido, achando que a vida dele é que estava sumindo no buraco do chão. Trauma, um mundo diferente, a carestia criando dores incompreensíveis: amostra do que pode acontecer a todos um dia?
Então, lavando parcimoniosamente a louça, me lembrei de deixar um balde sob a calha do telhado da varanda. Eu tinha recolhido as fezes da cachorra e jogado, com pesar, um balde de água limpa para a primeira lavada, mas o resto ia deixar que a chuva fizesse. Não ia jogar mais nem uma gota para lavar o chão. Pensei que sempre que faço isso, colocar uma vasilha para recolher a água da chuva, essa vai embora. Complexo de achar que o mundo tão enorme depende de coisas que faço ou penso ou acredito. E será que não?
Só que a chuva parou mesmo e o domingo que prometia ser de novidade, com a chuva tamborilando, se tornou quente como nos dias anteriores, apesar do inverno, mas a varanda continuou como estava: empoeirada. Prefiro assim do que gastar mais água limpa.
E era cedinho, estava tonta por um gole de café. Levei um tempão para fazer, medidas duas xícaras, para não estragar porque estava sozinha em casa nessa manhã. É que a bomba da garrafa térmica se recusou a funcionar, tentei arrumar e desisti. Tirei a tampa toda para me permitir tirar o café de lá. Não estava doce como gosto, mas uma gotinha de adoçante resolveu e o saboreei com um pão de queijo dormido que deixei sobre a chapa quente. Ficou bom, o problema foi que depois que terminei de comê-lo vi que tinha um cascudinho preto rondando a vasilha transparente que a minha filha tirou do carro com o quitute. Para onde ela vai, a gente arruma lanche porque com as dores de estômago que tem sempre, se descuidar ela não come e piora. Aquele pão de queijo, e ainda com uma fatia de mussarela dentro, deve ter rodado uns dias pela cidade, bate daqui bate dali, e veio parar nas minhas mãos agora cedo. Jogá-lo no lixo estava fora de cogitação.
Mas observei o bichinho rodear a boca da travessa pequena enquanto pensava o quando de porcaria se come: vi umas fotos das comidas da China na Internet. Daí peguei aquela coisinha nas mãos para observar melhor o que era, tão insignificante. Imóvel agora, auto-defesa, ele não deve ter sentido a força mortal de meus dedos.
Ainda pensei, aquelas fotos mostrando as comidas típicas do outro lado do mundo podem até ser montagem, mas a verdade é que se come muita porcaria por aí, inclusive nessas nossas paragens, e engraçado, nossa civilização, será que de civilidade? come bicho também só que uns maiores, talvez o tamanho faça a diferença? O ser humano é mesmo uma coisa maluca! É só ter um hábito diferente que é ruim, ignorante, selvagem. Comer esse ou aquele bicho será que tem diferença? É sinal de maior ou menor moral ou grandeza ou civilidade comer bicho grande ou pequeno? Que nada! É hipocrisia, eu diria.

Brasília, DF, 31 de agosto de 2008.

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