segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A CULPA PELO MUNDO SER O QUE É

Não tenho insônia; tenho um sono saudável e regular, ao contrário. Me sinto bem dormindo até sete ou oito horas por noite, de dia não, mas esta noite acordei de madrugada, acho que pelas quatro e não consegui mais dormir. Acordei pensando na minha caçula que está com uma diarréia insistente, apesar de que ela tem isso vez ou outra e até foi, recentemente, ao médico ver, mas nada foi conclusivo. Há uns três dias o quadro vem se agravando e ela viaja em algumas horas... Acho que foi meu coração que acordou primeiro pensando nela. O que será que ela tem? Uma pergunta. Há algo que eu possa fazer para ajudar? Outra. E ela não seria capaz de se cuidar? Pergunta de novo. Então, sei que olhei as horas, pela primeira vez nesta madrugada, o celular marcava 5:46. Isso porque já fazia mais de uma hora que havia acordado e rolava de um lado por outro, mas como a preocupação não se dissipava, me levantei e fui verificar se ela tinha febre, se dormia sossegada. Ela acordou, disse que estava bem, fechei o lap top dela para diminuir a luz do quarto e voltei pra cama, que essas madrugadas de verão ainda estão frias demais pro meu gosto e achei que fosse dormir já que tinha ficado mais tranquila. Ilusão, a minha ideia de querer dormir com os pensamentos em redemoinho quase pulando de meus cocurutos. Pensar, pensar: num, noutro, em mim, por fim. Isso porque quebrei mais um dente ontem e daí voltei a pensar, coisa que venho observando muito de perto, nesse processo de desconstrução natural de nossas capacidades. É que reconheço que já pude mais trabalhar de sol a sol; hoje já não é tanto; e a tendência é que isso se reduza mais ainda. É fácil para mim ver esse quadro de futuro: minha mãe está comigo e hoje sou responsável por ela. Não apenas pelo estatuto do idoso ou por determinação judicial, mas porque só restou a ela essa opção. Essa responsabilidade não é oficial: as circunstancias da vida dela a trouxeram de volta à minha vida e parece que ela não sai tão cedo. Em 2012, ela completa 80 anos. Parte dela é forte, as pernas e os braços, por exemplo, tem até uma força poderosa quando ela quer, mas a cabeça não existe mais. Me surpreendi ontem à noite quando ela riu até sobre uma graça que o Toni Ramos fez no filme que começamos a ver no Festival Nacional. Era tarde, já, para ela, mas eu estava tão exausta que não conseguia desgrudar o traseiro do sofá para botá-la na cama. No geral, ela não sabe nem qual é a porta do quarto onde dorme. Saber em que cidade está, com quem fala vez ou outra é querer demais. A gente cuida dela com esmero, seu estado geral é razoável, mas sua capacidade mental, entretanto, é nenhuma e o aspecto físico é avassalador, portanto, vejo a decrepitude de um corpo muito de perto. O constrangimento de lavar e esfregar partes íntimas de um adulto que não eu mesma, de tirar xixi e coco dessa pessoa, cuidar dos machucados, alimentar é um amontoado de lições sem igual: a de que na vida há coisas para nos mostrar o quão nada somos. Não me canso de repetir, para mim mesma, de que minha mãe já não compreende quase nada, que devo tirar as lições que me cabe nessa situação, e assim aceito que levarei o tempo que for necessário para dar a ela o mínimo de decência neste período de preparação para a passagem final. E essa é uma coisa com a qual não nos preocupamos tanto. Acho até porque nada que façamos vai mudar nosso destino, mas principalmente porque o tempo que levamos com nossas picuinhas do dia a dia toma as horas que poderíamos refletir a respeito. Quanto a mim, estou preocupada em me organizar para que quando chegar essa hora de total incapacidade, eu tenha a estrutura mínima que não precise tomar o tempo de meus filhos. Essa organização, entretanto, nunca começa, já que a vida que tenho hoje, ou a morte, é mais forte do que essas minhas elucubrações sem sentido. No devido tempo, tudo se resolverá. Acredito nisso? Não. Acredito que temos sempre algo a fazer, há sempre a parte da vida que depende de nossas atitudes. Por ai é que espero que a vida me dê, no mínimo, o que dei também. Pensar assim quase me dá crise de riso, ridículo seria, dada a hora do dia, apesar de que a cidade já faz barulhos lá fora... é que a vida não é justa e depois que toda essa movimentação aqui de casa passar, posso até sentir falta dela, portanto, devo ficar de olhos bem abertos para avaliar certo tudo o que se passa. Mas a madrugada acordada não é coisa comum, então, enveredei por perguntas um tanto diferentes dessas que faço todo dia. Me obriguei a pensar dolorido sobre a razão de eu ser tão Maria-mole, ou seja, fazer coisas além de minhas obrigações e descobri que tenho a culpa, nos meus pobre ombros, do mundo ser o que é. Pelo meu jeito de ser, gostaria de construir um mundo perfeito, não só para mim, mas para todos. Sinto demais o sofrimento de pessoas, as que estão nas guerras, nos desertos, no meio da violência, doentes. Queria que todos vivessem o shangri-lá, eternamente. Isso é mais pesado quando se trata de meus filhos: quero o melhor para eles, então, sempre, invariavelmente, penso que poderia fazer algo para ajudar. Assim foi que minha filha veio aqui para casa com a família toda, quase ao mesmo tempo que minha mãe, e hoje, nessa madrugada, perdi o sono imaginando o que vou fazer para pagar as contas que vão pelas alturas. Calma! Me digo... o dia amanhecerá em breve, os passarinhos já cantam lá fora, há um raio de luz no friso da persiana fechada... e se eu tiver firmeza, vou sair dessa e voltar ao meu próprio caminho, e ainda vou rir muito disso. Sei, o tempo passa, a vida passa, a noite também, que ouço o ronco do primeiro ônibus fazendo manobras pra parar no ponto. O barulho aumenta, aumentam os piados dos pássaros e a luz que avança pelo quarto antes em penumbra. Se apagar agora o abajur e desligar o computador, talvez ainda consiga cochilar antes que o celular desperte. Ih, é celular ou relógio? Ai, que canseira essa mania de fazer perguntas... Magda R M de Castro Brasília, DF, 04 de janeiro de 2012.

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