quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

BRASÍLIA ROUBADA

Quando estamos no olho do furacão, é mais difícil olharmos com nitidez para a paisagem. Mas há momentos de calmaria, ou de pausas repentinas, em que é possível ver o panorama à frente e descobrir, ou melhor, se chocar com os estragos.
Cresceu assim, Brasília: um dia, foi retalhada em grandes pedaços e cada esperto pegou seu quinhão. Se satisfeito, ficou por ali, mas quem não ficou ainda tinha do que se apropriar. E essa apropriação individualizada vem acontecendo por toda a sua história. Só que antes isso era feito em surdina, mas agora os lobos nem se preocupam mais em agir na calada da noite: não serão punidos mesmo por que temer? Esse processo aviltou a tão profunda representação de igualdade que se propunha ser Brasília.
Agora, Brasília está abandonada. A instituição Brasília, assim como seu território, passou de mão em mão, foi prostituída, explorada até o cerne, e sobre seus restos são jogados todos os detritos possíveis. Como se não bastassem todos os ventos de todas as tempestades que aqui vieram se instalar, há novos rumores assustadores.
Brasília “está às moscas” poderia ser dito se fosse assim tão leve a situação. Não há moscas, apenas, na linda Capital Federal. Há um misto de silêncio sepulcral de vozes daqueles que poderiam falar, fosse pelo talento em fazê-lo, fosse pelo acesso à mídia, fosse pelos sentimentos que têm pelo que está à volta, e trovões. E essas, nesse momento que se avizinha às novas eleições, são vozes antigas e conhecidamente aterradoras: são os lobos, os antigos, já que os novos abandonaram a presa.
São outras as vozes que quero ouvir, talvez as dos fantasmas, que seja, se fizessem efeito. Quem sabe quebrariam essa indiferença de modo que os brasilienses, quisera os brasileiros, se organizassem para resgatar Brasília como patrimônio da humanidade e não como o quintal da minoria que a sangrou, e sangra, nesses cinqüenta anos de inaugurada e nesses outros tantos de história.
Em lamentável abandono, a Cidade da Paz chora, imóvel e enregelada, silenciosamente, a sua nudez. A proposta da terra que “jorraria leite e mel” era a unidade. Coisas e pessoas teriam o mesmo acesso, a mesma liberdade, a mesma vista do “mar”; como dizia Burle Marx: “o céu é o mar de Brasília”. Suas águas matariam a sede de ricos e pobres e suas fontes ainda seriam enviadas para longe tanta abundância. O mel seria por conta de milhares de seres do Cerrado intocado: alimentariam, eternamente, os bem pequenos, e os grandes também, desde que estivessem juntos.
Brasília seria de todos os brasileiros, até dos que nunca souberam de tal utopia, que puderam sonhar, afinal, a Capital da Esperança. O oásis na pobreza daria chance a todos que a escolhessem; e muitos o fizeram. E quem o fez, com o coração, se encantou por sua beleza generosa, por suas avenidas justas, por seu espaço comum. Assim era sua personificação quando o rico se instalava em barracos de madeira como o pobre, comia a mesma comida feita em tachos e gamelas saboreada em pratos esmaltados; respiravam a mesma poeira vermelha, o sangue das entranhas revolvidas e expostas fertilizando sua construção e seu futuro. Brasília amada, onde a igualdade entre os homens, finalmente, foi papável como em nenhum outro lugar.
Um sonho que beira a cinqüenta anos cuja materialização branca e marmórea, antes, de fulgor, agora se torna túmulo: de ato em ato se desfaz na lama como se seu passado não tivesse sido construído com a força da esperança por um grande futuro. Antes que se cumpra seu destino de fazer a melhor de todas as histórias, Brasília é roubada, a nossa Brasília, aos poucos, vem sendo tomada de assalto. Desprovida de vozes autênticas que poderiam manter seu espírito de liberdade e igualdade, o maior sonho humano possível; que poderia torná-la não só patrimônio de todos mas também símbolo de esperança para um mundo melhor para cada mortal, sem distinção, eis que os lobos a assaltam, estupram, deformam o ideal mais sagrado da história do povo brasileiro. Seus pedaços, assim como Roma, vão também enfeitar vilas e impérios para o gosto dos oportunistas.
Primeiro, foram saqueadas as terras do Plano Piloto, que hoje pertencem a apotentados que se esbaldam em construir shoppings, hotéis, se apropriam dos marcos históricos e os exploram a seu bel prazer. Depois, avançaram para as terras ao redor, onde as fontes de água jorravam noite e dia, mas não, é outra voz que precisa ser calada em nome de individuais interesses.
Enquanto o furor pela riqueza sem medida avança em todas as direções, e soterrando nascentes, raízes, sementes assim como emoções, as grandes obras representativas estão assoladas pelo descaso. O que é importante agora é o prédio com seus espelhos esvoaçantes ferindo o olhar, matando os pássaros, trespassando a alma do autêntico brasiliense, roubando, também isso, o seu céu tão único. O que importa é não mais a unidade, o igual, o espaço para sonhar infinitos.
Sim, espaços infinitos, foi essa uma das concepções de Brasília: criada com as formas da natureza, cheia de gramados gentis para que a floresta, os pássaros e as águas também participassem de seu esplendor. Entretanto, a lenta apropriação da Cidade da Paz redunda agora no seu abandono. Brasília é uma órfã. Seus fundadores enriquecem seu solo vermelho agora; e parece que não há sucessores. O descaso é tanto que a cidade se tornou imprópria para sustentar seus, antes doces, apelidos. Não ouso listar os novos nomes pelos quais Brasília é chamada agora; faço isso em sua memória. Respeito suas antigas intenções e conservo por ela especial carinho. Não digo o mesmo de minhas expectativas; pior ainda, tenho medo pelo futuro, da cidade e de seus filhos. Terão eles forças para lutar contra mentes individualistas, retrógradas e coronélicas?
Me pergunto: onde andam os idealistas, os verdadeiros, que poderiam defender essa tão linda concepção? Onde andam as vozes que poderiam dizer coisas diferentes das que se ouve todo dia? Brasília, você autêntica, ainda lhe resta alguma esperança?

Por
Magda R M de Castro
Brasília, DF, 25 de fevereiro de 2010.

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