quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O DIA EM QUE MORRI

Foi no dia em que fiz aquela pergunta. Poderia tê-la evitado, poderia tê-la ignorado. Poderia, mas não pude. Ela martelava há muito tempo, tinha ficado na berlinda por muitos anos, disfarçada, camuflada pela vida seguindo em correnteza levando tudo a reboque.
Eu ainda não tinha me agarrado ao barranco para dar tempo de puxar o fôlego ao máximo, fosse para avaliar a velocidade da corrente fosse para reconhecer ou admirar o lugar para onde estava indo longe. E a pergunta ficou submersa, distraída entre os apetrechos, até que a pronunciei: “Você tem amor e carinho para me dar?”
Quando disse essas palavras, em voz alta e clara, e firme, e não o grito que pensei fosse dar, tudo veio junto: um amontoado de silêncios trepidantes, pedaços de palavras coladas em pedaços de passado, enxurrada de tempestade. E um mar escuro, escoando de ferida purulenta.
Fazer aquela pergunta me esvaziou das dúvidas tantas pareciam se somar umas às outras, ininterruptamente. Perguntar sobre amor destampou a boca do poço, esse, seco há anos; e descobri que ali tinha crescido alta floresta de ervas daninhas.
E o ímpeto da pergunta fez todo o resto acontecer rapidamente ainda que eu já soubesse a resposta há muito tempo. Não tinha tido ainda coragem de perguntar porque sabia que depois de ouvir a resposta teria que escolher qual parte de mim viveria. Escolhi a parte verdadeira, então, meia de mim se foi com a correnteza, para sempre.
É que, decidida a não continuar no mesmo rumo, me icei à margem: “é aqui que paro!” e o rio seguiu também esvaziado de mim e de minhas mazelas. Mesmo assim, levou muitas coisas minhas, as que não tive forças para segurar. Ainda tentei pegar algo aqui e ali, mas o trabalho no porto era inadiável. Construir um abrigo com o que resgatei era premente. Ainda assim, vez ou outra, perscrutei a correnteza, reconheci a importância de tantos e tantas. E as distribui para os lugares onde cada uma devia ficar.
Também eu fiquei só parte: tive a audácia de trocar de lugar, de escolher, de me reorientar. Tenho saudade da parte que se foi rio abaixo, às vezes. Me lembro dela dependendo de quem vejo, com quem falo e de qual caminho pego.
Entretanto, quando isso começa a incomodar, volto-me para observar a paisagem. É alívio que sinto quando a vejo ligeiramente vazia. Por enquanto, porque estou semeando um novo jardim, erguendo novo tempo para quem está ao meu lado, que seja para mim mesma e meus personagens de recordações. As boas recordações, diga-se, porque as ruins foram tragadas para o fundo das águas velozes, metáfora da vida que não quis mais viver.
É serenidade que sinto quando vejo que preencher esse espaço que escolhi para atracar, pouco a pouco, parece agradável perspectiva.

Por
Magda R M de Castro
Brasília, 11 de agosto de 2008.

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