terça-feira, 26 de julho de 2022

 INVERNO

No meu tempo de menina pequena passeando na roça, me lembro como era difícil a jardineira subir e descer colinas pelas estradas vermelhas barrentas; mesmo assim, depois de apear da condução, tínhamos que caminhar alguns quilômetros até chegar ao destino, à impecável sede da fazenda de meu avô paterno. No tempo do “inverno” quem ia chapinhava os calçados no barro misturado a estrumes. Essa caminhada, às vezes debaixo de chuva, era uma das minhas alegrias; gostava de ir catando muricis, cagaitas e arrancando hastes de capim pra cheirar a seiva fresca. E era morro abaixo até quase na porteira do quintal, desse jeito, não me lembro de canseiras.

De um desses “invernos” me lembro mais por causa da enchente borbulhante que cobria a ponte que dava acesso aos pastos ao redor da casa. Área plana depois de ladeiras, ali meu avô cultivava arroz e enchia as tulhas no porão. Fartura, farturão, como ele dizia orgulhoso. Bem, num desses “invernos”, o ribeirão da divisa transbordou por muitas léguas lavando capinzais, pomares, arrozais e tudo que achava pelo caminho. Foi a primeira vez que tive noção do que era mar. Tínhamos acabado de descer uma colina mais íngreme e ao virar um curva com barranco, demos de cara com o aguaceiro. Me assustei, mas não me lembro de ver se mamãe se assustou. Se foi assim ela disfarçou bem. Acostumada com boi bravo, cobras, galinhas chocas e gente de todo tipo, mamãe não pareceu estar com medo da água de barro que encobria a ponte e parte da porteira do outro lado. Determinada, me lembro que parecia, ela arrancou um ramo grosso de assa-peixe e desceu devagar tateando o caminho submerso. Dava um passo à frente, tateava de novo, outro passo, outra tentativa. Assim foi avançando pra corredeira do meio do redemoinho. Foi então que comecei a gritar de longe, da margem segura, em pé no seco. “Vai não, mamãe, a enchente vai te levar! '' Quando ela achou que eu estava exagerando na gritaria, me deu uma bronca: ”Tem dó, menina, você acha que uma aguinha dessas vai me impedir de chegar em casa?” E voltou pra me buscar. Puxada pelo braço com firmeza, fui seguindo atrás da mulher intrépida medindo a altura da água com um ramo torto até alcançarmos a porteira do outro lado. A água era tanta que não conseguimos abrir a taramela, foi preciso subirmos as ripas e pularmos a cerca. Pouco mais à frente já conseguimos ver o capim debaixo da água e estávamos em segurança pra seguir o traçado da estrada de pedregulhos sob os nossos pes; Estamos salvas, pensava eu aliviada até alcançarmos o chão batido do quintal do casarão.  

Memórias eternas, essas, que esse tempo de verdadeiro inverno traz nítidas em noites cismarentas. O inverno que sei hoje é esse de frio e poeira e não aquele do meu avô que chamava assim os dias de chuvaréu.

Inverno. Sei o que é. mas não o prefiro, respeito sim, em todas as suas cores e dores, mas não digo que gosto, tolero. Porque quando termina o Inverno, irremediavelmente, inexoravelmente, começa a Primavera.


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