quarta-feira, 30 de julho de 2008

O FANTASMA DOS AZULEJOS

Como professora de faculdade, minha vida é sacudida a cada começo de semestre, logo, a regra de “a vida muda a cada sete anos” não vale para mim. Entretanto, há hábitos que ficam enraizados mesmo nessa roda-viva. Ainda tem o agravante de que dou aulas noutra cidade não muito perto e não dá para ir e voltar à noite. Assim, há seis anos viajo duas ou três vezes por semana para cumprir a tarefa, daí me habituei a dormir em hotel e voltar no dia seguinte de madrugada para casa.

Como faço isso há doze semestres, há espaço para hábitos como chegar ao costumeiro hotel depois da escola, deixar as pastas na recepção e correr para o restaurante. O fato é que às onze da noite, apenas com o almoço, a fome aperta. Além disso, o serviço se encerra à meia noite, portanto, não há tempo a perder; e a comida é deliciosa.

Por algum tempo nada mudou nesse hotel de seis andares com quartos aconchegantes mas a cidade efervescia ao redor, então, belo dia, o dono contratou arquiteto e começou a mudança: acrescentou janelas isolando o barulho da rua. Renovou recepção, restaurou pilares, acabamentos, móveis e objetos. Em seguida, o bar veio abaixo: virou ponto panorâmico com mesas personalizadas, telão de LCD e luzes mortiças.

A comida continuou tão boa quanto antes já que o restaurante continuou intacto; e os banheiros também. Sei por que o banheiro feminino do restaurante era ponto de fecho. Explico: a tensão durava por todo o dia da viagem, a viagem em si, as aulas – será que consegui fazer bem meu trabalho hoje? – até a hora de ir jantar. O ritual incluía passar pelo banheiro, tirar o giz das mãos e dar uma olhada no espelho. Depois, delicia, o jantar que muitas vezes era com colegas de trabalho, de modo que abrir a porta do banheiro feminino e encontrar o silêncio, a paz, talvez até a indiferença fria de azulejos antigos me descansava. Era momento especial: passava batom, água para domar os cabelos e saía feliz para saborear o jantar sempre delicioso.

Com o avanço da reforma, o restaurante e os banheiros também caíram. As refeições passaram a ser feitas no bar, já ostentando o frescor das novidades. Note-se que mesmo com o restaurante isolado a comida continuava boa. Já o banheiro feminino do bar não tinha personalidade, nenhuma lembrança e, pior, não despertava o alívio esperado.

Foi difícil esperar o fim da reforma, mas isso só se deu no começo do semestre seguinte quando o restaurante voltou a funcionar. Não ficou nada do antigo: janelas e portas foram trocadas, móveis reformados, parede estilizada de colunas desencontradas que davam estranha sensação de ondas do mar. Foi criada área de fumantes; foi colocado som interno, e outra TV moderna. O piso foi recortado em ambientes alto e baixo; apareceram balcões curvos de granito, espelhos, quadros de vanguarda e flores para todo lado. Era outro restaurante: exótico, luzes indiretas, até chique, diga-se.

O banheiro sofreu o mesmo assalto: não sobrou nada. Agora há pequeno labirinto que separa o feminino do masculino. Um painel de vidro mostra linda mulher enrolada em cachos de cabelo; transparente, mas linda. Dentro, fizeram longa bancada de mármore branco com espelho acompanhando, enfeitaram com flores e luzes sofisticadas. No compartimento íntimo, colocaram todos os apetrechos modernos necessários às mulheres. A pia, quadrada e branca, foi apoiada sobre bancada de granito escuro; ficou bonito. Em moldura, ao redor do espelho, tiras de pastilhas de vidro vinho indicam que quem fez tudo aquilo é competente e tem bom gosto.

Pois bem: reforma pronta, hábitos mantidos? Correr da faculdade pela noite adentro e fechar atrás daquele dia a porta do banheiro do restaurante era hábito meu; mantive. Agora, particularmente, à reforma do hotel juntei reformas pessoais então ando meio reticente: a gente fica insegura quando muda coisas profundas, não é verdade? Pois é, acho que me empolguei com tanta reforma, a minha e a do hotel: parece ambas terem levado embora emoções sentidas por anos.

Em razão disso, nesse semestre, venho entrando com cuidado naquela toalete nova. Tenho medo de encontrar, pregado a um azulejo antigo, pode ser perfeitamente cabível ter sido esquecido no meio dos novos, um fantasma. Um camarada, sim, mas que me traria sensações que se foram com a derrubada geral, mas fantasma é sempre fantasma: assusta. Então, ainda luto entre o medo e o desejo de ver de volta ou esquecer de vez aquilo que eu era, aquilo que fui quando frequentava o banheiro que não existe mais. Recebida agora pelo silêncio gelado dos azulejos novos, só eu tenho sinais de passado. Para alívio meu, o tempo não para, e mesmo que parte de mim não esteja pronta, o movimento do mundo está varrendo para longe a poeira inútil, logo, venho, pacientemente, me esforçando para me habituar às coisas diferentes, para o banheiro e para minha vida.

Em razão desse esforço, sempre que entro no lindo banheiro moderno digo “Boa noite, fantasminha!” E quando saio, aliviada: “Até breve, fantasminha, se comporte!” É brincadeira, claro, mas também pode ser ótimo exercício para enfrentar os verdadeiros fantasmas. Também pode ser loucura, mas quem não é louco hoje em dia?

Magda R M de Castro Brasília, DF, 30 de julho de 2008.

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